Por Arnaldo Jabor
A burrice é diferente da ignorância. A
ignorância é o desconhecimento dos fatos e das possibilidades. A burrice é uma
força da natureza (Nelson Rodrigues).
A ignorância quer aprender. A burrice
acha que já sabe. A burrice, antes de tudo, é uma couraça. A burrice é um
mecanismo de defesa. O burro detesta a dúvida e se fecha.
O ignorante se abre e o burro esperto
aproveita. A ignorância do povo brasileiro foi planejada desde a colônia. Até o
século XIX era proibido publicar livros sem licença da Igreja ou do governo. A
burrice tem avançado muito; a burrice ganhou status de sabedoria, porque com o
mundo muito complexo, os burros anseiam por um simplismo salvador. Os grandes
burros têm uma confiança em si que os ignorantes não têm. Os ignorantes,
coitados, são trêmulos, nervosos, humildemente obedecem a ordens, porque pensam
que são burros, mas não são; se bem que os burros de carteirinha estimulam esse
complexo de inferioridade.
A ignorância é muito lucrativa para os
burros poderosos. Os burros são potentes, militantes, têm fé em si mesmos e têm
a ousadia que os inteligentes não têm. Na percentagem de cérebros, eles têm uma
grande parcela na liderança do país. No caso da política, a ignorância forma um
contingente imenso de eleitores, e sua ignorância é cultivada como flores
preciosas pelos donos do poder. Quanto mais ignorantes melhor. Já pensaram se a
ignorância diminuísse, se os ignorantes fossem educados? Que fariam os senhores
feudais do Nordeste em cidades tomadas como Murici ou o município rebatizado de
cidade Edson Lobão, antiga Ribeirinha? A ignorância do povo é um tesouro; lá,
são recrutados os utilíssimos "laranjas" para a boa circulação das verbas
tiradas dos fundos de pensão e empresas públicas.
Como é o "design" da burrice? A burrice
é o bloqueio de qualquer dúvida de fora para dentro, é uma escuridão interna
desejada, é o ódio a qualquer diferença, a qualquer luz que possa clarear a
deliciosa sombra onde vivem. O burro é sempre igual a si mesmo, a burrice é
eterna como a Pedra da Gávea. De certa forma eu invejo os burros. Como é
seu mundo? Seu mundo é doce e uno, é uma coisa só. O burro sofre menos,
encastela-se numa só ideia e fica ali, no conforto, feliz com suas certezas. O
burro é mais feliz.
A burrice não é democrática, porque a
democracia tem vozes divergentes, instila dúvidas e o burro não tem ouvidos. O
verdadeiro burro é surdo. E autoritário: quer enfiar burrices à força na cabeça
dos ignorantes. O sujeito pode ser culto e burro. Quantos filósofos sabem tudo
de Hegel ou Espinoza e são bestas quadradas? Seu mundo tem três ou quatro
verdades que ele chupa como picolés. O burro dorme bem e não tem inveja do
inteligente, porque ele "é" o inteligente.
Mesmo inconscientemente, aqui e lá
fora, a sociedade está faminta de algum tipo de autoritarismo. A democracia é
mais lenta que regimes autoritários. Sente-se um vazio com a democracia - ela
decepciona um pouco as massas. Assim, apelos populistas, a invenção de "inimigos" do povo, divisão entre "bons" e "maus" surtem efeito. Surge, na política,
a restauração alegre da burrice. Isso é internacional. Bush se orgulhava de sua
burrice. Uma vez ele disse em Yale: "Eu sou a prova de que os maus estudantes
podem ser presidentes dos USA". E, aí, invadiu o Iraque e escangalhou o
Ocidente. E está impune, quando deveria estar em cana perpétua. Aqui, também
assistimos à vitória da testa curta, o triunfo das toupeiras.
O bom asno é sempre bem-vindo, enquanto
o "pernóstico" inteligente é olhado de esguelha. A burrice organiza o mundo:
princípio, meio e fim. A burrice dá mais ibope, é mais fácil de entender. A
burrice dá mais dinheiro; é mais "comercial".
Em nossa cultura, achamos que há algo
de sagrado na ignorância dos pobres, uma "sabedoria" que pode desmascarar a
mentira "inteligente" do mundo. Só os pobres de espírito verão a Deus, reza
nossa tradição. Existe na base do populismo brasileiro uma crença lusitana,
contrarreformista, de que a pobreza é a moradia da verdade.
No Brasil, há uma grande fome de "regressismo", de voltar para a "taba" ou para o casebre com farinha, paçoca e
violinha. E daí viria a solidariedade, a paz, num doce rebanho político que
deteria a marcha das coisas do mundo, do mercado voraz, das pestes e, claro,
dos "canalhas" neoliberais. É a utopia de cabeça para baixo, o culto populista
da marcha à ré.
Nosso grande crítico literário Agripino
Grieco tinha frases perfeitas sobre os burros. "A burrice é contagiosa; o
talento não" ou "Para os burros, o 'etc' é uma comodidade..." ou "Ele não tem
ouvidos, tem orelhas e dava a impressão de tornar inteligente todos os que se
avizinhavam dele", "Passou a vida correndo atrás de uma ideia, mas não
conseguiu alcançá-la", "Ele é mais mentiroso que elogio de epitáfio", "No dia
em que ele tiver uma ideia, morrerá de apoplexia fulminante".
Vi na TV um daqueles bispos de Jesus,
de terno e gravata, clamando para uma multidão de fiéis: "Não tenham pensamentos
livres; o Diabo é que os inventa!". Entendi que a liberdade é uma tortura para
desamparados. Inteligência é chata; traz angústia, com seus labirintos.
Inteligência nos desorganiza; burrice consola. A burrice é a ignorância ativa,
é a ignorância com fome de sentido.
Nosso futuro será pautado pelos burros
espertos, manipulando os pobres ignorantes. Nosso futuro está sendo determinado
pelos burros da elite intelectual numa fervorosa aliança com os analfabetos.
Como disse acima, a liberdade é chata,
dá angústia. A burrice tem a "vantagem" de "explicar" o mundo. O diabo é que a
burrice no poder chama-se "fascismo".
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