Esses dias, um camarada meu, um pouco
cheio de dedos para não transparecer invasivo, me indagou o quanto eu teria
faturado de direitos autorais com a execução, nos anos 1992 a 1994, da música "Porrada
de Polícia", uma das parcerias com Dionorina que fez um relativo sucesso
nas ondas dos rádios baianos, e acabou ganhando o Troféu Caymmi de Melhor
Composição, em 1993.
Indo ainda mais fundo em sua sondagem,
ele também especulou sobre o que teria me inspirado ao compor a letra deste
reggae, sendo uma das suas hipóteses, o fato consumado de que eu tirei os
versos da canção brilhantemente musicada por Dionorina de um cenário
existencial vivido por mim, no ato da criação.
Se valendo do meu silêncio momentâneo,
ante a abundância do seu inesperado interrogatório, o nobre camarada
lembrou-me, com certa ênfase, que "Porrada de Polícia" além de ter tocado em
todas as rádios de Feira de Santana de forma massificada, teve a sua reprodução
potencializada pela TV Subaé, como de fato o foi, através de um clipe muito bem
produzido pela afiliada feirense da Rede Globo, onde a letra da música
foi editada simultaneamente a imagens de fome e de violência do nosso
cotidiano, inclusive com cenas reais da ação policial sobre alguns movimentos
grevistas, naquele então.
Dando azo à sua fértil e criativa
imaginação, este camarada meu, meio que tentando inflar-me o ego e se dizendo
fã dos meus escritos - aí incluindo letras de música, poesias, matérias,
crônicas, artigos jornalísticos e roteiros - neste último item lembrou-me
o que escrevi sobre o Mosteiro de São Bento, em Salvador,
filmado, produzido e veiculado pela Bahia Cinema e Vídeo e vertido para
três idiomas sob a edição da competentíssima jornalista Soraya Mesquita.
Mas, o foco principal da sua sondagem
era mesmo a música "Porrada de Polícia", para ele um "hino contra as
desigualdades sociais; uma abordagem sociológica crua e fiel sobre a
realidade das populações favelizadas pela ausência de Estado", etc. etc... Enfim,
para o meu espanto absoluto, o dileto camarada afirmara, de forma peremptória,
que eu teria "faturado uma graninha legal" com os direitos autorais desta
canção, a julgar, segundo ele, "pelo tempo que ela foi levada ao ar pela TV
Subaé e pelos shows que abriram portas à carreira de Dionorina".
Emergindo do silêncio abissal em que
até então me mantive, e, confesso, um tanto quanto absurdado, disse-lhe, de
saída, que desde os 20 anos de idade tenho sobrevivido do que tenho amealhado
como jornalista, passando, nesta condição, por vários órgãos de imprensa e
assessorias de comunicação.
Revelei, em seguida, que o mote de "Porrada de Polícia" me veio de um episódio corriqueiro na vida de qualquer
cidadão, de qualquer família, e que me fez tomar do lápis e do papel, ao
chegar em casa, após um dos meus notívagos e fatigantes plantões
na TV Subaé (onde tive a honra de atuar como pauteiro) e, ao ligar
o fogão para esquentar o jantar preparado com esmero por Selma, o gás foi-se
findando em câmara lenta, instigando a fome canina e aguçando, ainda
mais, o senso crítico e a minha veia poética.
Disse-lhe, pausadamente, que no tocante
aos direitos autorais, sim, pingaram e pingam alguns caraminguás na minha
conta na Amar, uma das afiliadas do Escritório Central de Arrecadação e
Distribuição (Ecad), desta e de outras parcerias, mas nada que me permitisse
botar o burro na sombra, já que até aqui tenho sido gravado por poucos cantores
e nenhum, infelizmente, com o calibre de uma grande gravadora para gerar dividendos
autorais com a veiculação, circulação e vendagem das minhas composições.
Quanto a veiculação de "Porrada de
Polícia" pela TV Subaé, ponderei-lhe que vivi experiência similar com o clipe
de "Cheiros e Temperos", parceria com Rá Nascimento, gravado por
Danny Nascimento (ex-Fama, hoje vocal de Daniela Mercury), especialmente
para a TVE, o seu primeiro clipe institucional a ser levado ao ar no
verão de 2002. Lembrei-lhe, ainda, da música "Flor Cristalina", minha e de Rá,
gravada por Luiz Caldas e Tontom Flores, até hoje veiculada na grade de
programação da FM Educadora.
O que há de comum nos três casos, é que
em nenhum deles recebi um centavo de direito autoral, mas, como criador, sou
infinitamente grato à sensibilidade destas emissoras por ter me dado esta
inefável, esta incomensurável oportunidade de divulgar o meu trabalho, levando
sua mensagem para milhões de mentes e corações nos mais longínquos rincões,
graças ao milagre multiplicador das telecomunicações.
Pacientemente, também lhe fiz compreender,
que diferentemente dos cantores que gravam vários compositores,
parceiros ou não, é natural que todas as luzes se voltem para o artista que
sobe ao palco e defende suas canções, são eles os mensageiros, os
intérpretes dos sentimentos que tomam de assalto os nossos corações
inebriados com a candura e a plasticidades imantrada dos seus cantares. Quanto
aos letristas? Estes sequer são citados nas vozes empavonadas dos
locutores de rádio, sempre às voltas com o tempo e a próxima canção. É cultural,
entre nós... é do jogo.
Para por um ponto final na minha curta
explicação e, antecipando-me a uma possível recarga do velho camarada,
sublinhei, para voltar ao porto de partida das suas especulações:
"Imagine, mano velho, uma ampla avenida
com mais de 20 mil pessoas cantando em uníssono os versos que você os construiu
no silencio da noite, você, as suas agonias e reminiscências, na solidão do seu
pensamento, agora vocalizado por milhares de almas que se identificaram com a
sua mensagem, com a sua alegria, com a sua dor. Gente de todos os matizes,
independente de cor, classe social, unidos pelas notas de uma simples
canção, fruto da sua inspiração, filha do seu ventre, do seu intelecto..."
Então, ele abriu os olhos e eu disse: "É esta fortuna que trago impregnada em minha alma, desde que ouvi Dionorina
dar os primeiros acordes de 'Porrada de Polícia', na Micareta de l993, e vi
este povão que amo entoar do início ao fim os meus versos
como se fossem seus, enquanto uns externavam na cara o drama contido em
cada palavra, outros tantos acrescia aos esgares do rosto uma evolução corporal
qualquer, indizível para a emoção que me invadira naquele momento. Será que
isto tem preço, meu bom camarada?" Ele estendeu-me a mão e, dos seus olhos
intrépidos e interrogativos, deixou rolar uma lágrima.
"Porrada de Polícia/ É no fundo da fome
que a boca lambe a mesa farta de pavor/ É na fome, é na dor, como porrada de
polícia/ Quem mora no morro, mora no morro/ Tristes projetos de vida/ Se corre
pro osso é presunto na pista/ Se fica é pirão pra polícia/ Ninguém quer polícia
pra ordenar a fila/ Ninguém quer representantes armados do sistema/ Por que não
param o trem da Babilônia/ Guerreiros da redenção da raça humana/ Detenham o
trem da Babilônia..."
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