Por Giuliana Bergamo
Fui a Cuba com meu marido, o cara
que eu amo, que eu escolhi para, junto comigo, fazer, parir e criar duas
pessoas. Meu marido é um dos caras mais sérios, justos e comprometidos com a
verdade dos fatos que já conheci na vida. O mais comprometido provavelmente.
Tanto que, às vezes, acho que ele tem dificuldade de sonhar. E, talvez por
isso, não mede esforços para realizar os meus sonhos. Ir à Cuba era um deles.
Eu devia estar na sétima ou oitava
série quando ouvi falar pela primeira vez de um lugar "onde todos eram iguais",
mas as crianças pediam bala e canetas Bic aos turistas na rua. Lembro bem de
uma professora que hoje, se estiver viva, deve ter uns 80 e tantos anos,
dizendo que, quando menina, sonhava com Fidel fardado chegando em um cavalo
branco para levá-la. Eu não entendia bem aquela paixão, era mais da turma das
amigas da minha professora, as quais, dizia ela, eram apaixonadas por Che.
Aos 15, ganhei dos meus amigos um
pôster do revolucionário argentino clicado por Alberto Korda. Preguei na parte
interna do meu armário, onde ficou até eu deixar a casa da minha mãe, aos 24
anos. Na época em que ganhei o souvenir, nossa curtição era usar boina, fumar
charuto e discutir sobre a revolução e o absurdo do capitalismo. De lá para cá,
já perdi a conta da quantidade de vezes em que participei de discussões
acaloradas entre a turma contra e a favor do (socialismo de) Cuba. Em todas
elas, sempre havia um sujeito que tentava calar o opositor com o argumento: "Você nunca foi para Cuba, não sabe o que está falando!"
Eu precisava ir a Cuba para saber do
que estava falando. Então fomos, um casal de jornalistas, passar nossa nova lua
de mel em Cuba. Lá, vi gente cantando e dançando - muito bem - a cada esquina.
Ouvir música e dançar em Cuba é comer macarrão com vinho na Itália, amar em
Paris, escalar no Himalaia. Em Cuba, vi turistas por todos os lados, carros
antigos (custam cerca de 18 mil dólares e são passados de pai para filho),
casas de pé direito alto onde os andares são divididos em dois para caber mais
gente, casas que desmoronaram de tão velhas, esgoto a céu aberto, mercados só
para cubanos onde a maior transgressão é vender amendoim sem passar pelo
governo. Vi crianças com uniformes impecáveis e escolas cheias com quadras
poliesportivas e prédios não muito diferentes das nossas escolas públicas. Vi
pouca gente doente na rua e banheiros públicos limpos, mesmo que não saísse
água da torneira ou da descarga (no banheiro do Museu da Revolução, uma senhora
abastecia baldes que os visitantes enojados usavam para mandar embora suas
necessidades).
Fiz questão de entrar
no hospital central de Havana para ver a tal fantástica medicina cubana.
Dei de cara com um arremedo de pronto socorro público muito parecido com os que
topei em minhas apurações no Brasil. Gente se desmilinguindo na sala de espera,
chão limpo, mas todo detonado, salas vazias com paredes caindo aos pedaços e um
médico-bedel nervoso com a minha presença. Enfiei a cara dentro do laboratório
e fui imediatamente transportada para a década de 1980, quando visitava minha
mãe no laboratório de análises clínicas onde ela trabalhava. Nostálgico, mas
sei bem o quanto a medicina andou de lá para cá graças aos novos equipamentos
tecnológicos. Na rua, conversei com pessoas que têm esperança no governo de Trump. Para eles, Obama nada fez
pelos cubanos. A retomada das relações foi apenas cosmética.
Fiz também o roteiro de turismo "oficial" e fui aos museus. Circulando pelas centenas de fotos de Fidel, Che e
outros combatentes, suas fardas e pijamas ensanguentados, restos de
equipamentos e pôsteres com palavras de ordem e frases de louvor, não conseguia
parar de pensar nos trechos do texto que lera dias antes de viagem, do livro "A
Verdade das Mentiras", de Mario Vargas Llosa: "Numa sociedade fechada, o poder
não se arregra apenas o privilégio de controlar as ações dos homens, o que
fazem e o que dizem: aspira também governar suas fantasias, seus sonhos e,
evidentemente, suas memórias." Lembrei do mesmo texto quando entrei nas
livrarias, onde os poucos livros exibidos nas estantes quase vazias eram de
autores aliados ao governo cubano.
Não satisfeita, quis ter uma
conversa franca com um cidadão, digamos, mais antenado. Na manhã de nosso
último dia de viagem, W. (a conversa foi absolutamente informal, não me sinto à
vontade de publicar o nome dele aqui), um jornalista cubano que resolveu
desafiar o poder e contar a verdade e, por isso, paga com a própria liberdade,
veio nos encontrar. Dias atrás, depois de cobrir um ato pró-Trump (sim, houve
um ato pró-Trump em Cuba), W. foi preso por uma semana. Para proteger a mulher
e a filha de 4 anos, W. não vive na mesma casa que elas. Vê a família apenas
aos finais de semana.
Quando foi nos encontrar na manhã do
último domingo (20), W. estava tenso. Ele não temia estar sendo seguido. Já
desistiu de se proteger. Sua aflição era pela prima, que estava em trabalho de
parto desde o dia anterior. Eu, que já passei horas parindo por duas vezes,
pensei: "coisa de homem, parto é assim mesmo". Aí ele explicou melhor. Em Cuba,
praticamente não há parto cesáreo. "Tentam o parto normal até o fim."
Cesária é algo raro mesmo quando é necessária. Por isso, uma outra prima de W.
perdeu um bebê que, por complicações de parto, morreu cinco dias depois de
nascer. Só que o priminho de W. foi registrado como natimorto, uma estratégia
safada para camuflar os dados sobre mortalidade infantil. E lembrei de
Llosa novamente: "Em uma sociedade fechada, a história se impregna de ficção, pois
se inventa e reinventa em virtude da ortodoxia religiosa e da política
contemporânea ou, mais grosseiramente, de acordo com os caprichos do poder."
Ao longo de nossa conversa e do
passeio que fizemos pela periferia de Havana, W. criticou a miséria, a insegurança
(a maior parte das casas tem grades), a censura e o povo que não promove a
mudança, ficando à espera de um salvador. Questionei W. sobre a educação, uma
das bandeiras do governo e um dos argumentos mais utilizados pela turma
pró-Fidel nas discussões dos bares da Vila Madalena, onde os protagonistas
costumam pagar fortunas por escolas onde seus filhos aprendam “a pensar”. W.:
“Sim, tem escola para todo mundo. Mas não há educação. Há doutrinação.
Educação, para mim, é ensinar a descobrir, a questionar, a fazer perguntas. Não
é isso o que se ensina às crianças cubanas.”
Naquele ponto da conversa – e da
viagem – já estava tristíssima, mas ainda não havia perdido a esperança de
encontrar aquela partícula animadora dos meus amigos tão encantados pelo país.
Queria ver algo de realmente bom, algo esperançoso. Queria achar o samba e o
futebol dos cubanos. Então perguntei: "W., os cubanos, pelo menos, são felizes
de alguma maneira?" W. deu um sorriso irônico e contou uma história para
responder minha pergunta.
Há pouco tempo, W. foi contratado
por uma agência de notícias para fazer um documentário com o tema "Projeto de
Vida". A ideia era entrevistar conterrâneos para saber quais eram os planos
para o futuro deles. "Todos deram a mesma resposta: 'meu projeto de vida é sair
daqui, quero deixar Cuba'. Não, os cubanos não são felizes", disse W.
Terminamos aquela manhã com
tristeza e um buraco no peito. Eu e meu marido continuamos rodando a
cidade a pé (quase não usamos carro ou outro tipo de transporte), enfrentamos a
fila da chocolataria onde cubanos e turistas esperam um tempão para comer o
chocolate mais doce que eu já provei na minha vida, demos de cara com a loja da
Benetton em Cuba (!!!) e dissemos "não" às crianças que, na rua, pediam "caramelos" (balas, em português). Voltamos ao hotel, jantamos no único lugar
onde encontramos uma comida dessas que acolhem o estômago e a alma, o Paladar
Los Amigos, uma espécie de restaurante que funciona dentro de uma casa. Depois,
não tivemos mais disposição emocional para fazer nada. E fomos dormir para
enfrentar a viagem de volta.
No dia seguinte, na fileira atrás de
nós no avião, uma brasileira chorava copiosamente. Aflitos, os passageiros ao
lado tentavam confortá-la. Parei a leitura que acabara de começar, "A
Insustentável Leveza do Ser", de Milan Kundera, para ouvir o que ela contava.
Chorava porque o "marido" tinha ficado em Cuba. Meses antes, os dois se
conheceram no Brasil. Médico, ele viera trabalhar no Programa Mais Médicos.
Apaixonaram-se, tentaram fazer com que ele ficasse aqui, mas não teve jeito.
Por determinação do governo, ele precisou voltar. Ainda assim, tinha a
esperança de ser enviado para uma nova missão, o que lhe foi negado. A moça
voltava de uma temporada de um mês com seu amor, seu "marido", ela dizia aos companheiros de
voo.
Ouvi a história, abracei meu marido,
trocamos carinhos e retomei minha leitura com o coração apertado. Logo cheguei
à parte do livro em que a Checoslováquia é invadida pelos russos e Tomas, um
dos protagonistas, tem a possibilidade de imigrar para a Suíça. No início,
pensa em ficar. Afinal, Tereza, sua mulher, estava no auge da carreira de
fotojornalista. Surpreendentemente, ela diz que está disposta a se mudar,
apesar de saber que, na Suíça, vivia uma das amantes de Tomas. Sobre isso, Kundera
escreve: "aquele que quer deixar o lugar onde vive não está feliz." E eu
completo: seja ele um personagem de ficção, um venezuelano, um cubano ou eu
mesma, quando, em viagem a trabalho, quero voltar para perto dos meus amores.
Giuliana
Bergamo é jornalista freelancer, escritora e repórter especial do Prêmio
Claudia.
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