Artigo de Fabio Zanini, em "Novo em Folha":
Duas estatísticas negativas chamaram a atenção sobre a África na semana passada.
A primeira é nada menos do que chocante. Um estudo do Conselho de Pesquisa Médica da África do Sul concluiu que 27% dos homens do país já estupraram uma mulher.
A outra é da FAO, o órgão das Nações Unidas sobre agricultura e alimentação. Diz que 1 bilhão de pessoas no mundo passa fome. Não é exclusiva sobre a África, portanto, mas foram imagens de africanos esqueléticos que rechearam as reportagens de TV sobre o estudo. Quando se fala em fome, se fala em África.
Deixemos de lado a lamentável constatação de que mais uma vez o que gera notícia na África são duas desgraças. Não há muito que fazer quanto a isso.
Chama a atenção em um caso e no outro a beleza dos números arredondados. Veja que coincidência feliz para os pesquisadores e para nós, jornalistas. 1 bilhão que passam fome é um número deliciosamente fácil de ser entendido: melhor ainda, é 1 em casa 6 habitantes do planeta. Muito mais apropriado do que falar em 875 mil, ou 1.135.000, e muito mais fácil de manchetar.
E o caso da África do Sul? 27% é um número interessante também. A BBC arredondou para baixo, dizendo que “1 em cada 4” sul-africanos já estuprou. Outros veículos arredondaram para cima, preferindo a expressão “quase um terço”.
Onde estou querendo chegar? Uma das máximas do jornalismo é que números, se bem torturados, dizem qualquer coisa. De posse de uma mesma planilha de dados, se faz “n” matérias diferentes, algumas indo em direções totalmente opostas.
A FAO e a entidade sul-africana provavelmente são entidades sérias que jamais falsificariam dados. Não duvido que tenham pesquisadores sérios e criteriosos em seus quadros. Mas também desconfio que não resistiram à tentação da manchete fácil.
Desconfie de números redondos. Numa análise superficial, é possível estabelecer fragilidades nas duas pesquisas.
A da fome no mundo é uma aproximação (admitida, aliás, pela própria organização). Outros poderiam dizer que se trata de um chute, mas não chego tão longe. É simplesmente impossível sabermos quantas pessoas passam fome no mundo, porque diferentes indivíduos numa mesma área têm acesso diferenciado à comida. Não basta pegar uma região como Darfur, ou um país como o Zimbábue e colocar sua população toda na coluna dos que passam fome. A FAO, então, trabalhou com uma faixa estatística de probabilidade e resolveu cravar o número de 1 bilhão, por uma incrível “coincidência”.
A pesquisa sul-africana, por outro lado, tem uma limitação óbvia. Foi realizada em apenas duas das nove províncias (Estados) sul-africanos, o Cabo Oriental e Kwa-Zulu Natal. Que são basicamente as duas mais violentas do país. É como fazer uma pesquisa sobre violência no Rio de Janeiro analisando apenas o Complexo do Alemão.
ONGs humanitárias e organizações internacionais prestam serviços inestimáveis na África e em outras partes do mundo subdesenvolvido, mas podem também se tornar parte do problema quando passam a depender desse problema. Tendem a exagerar dados negativos e realçar dados catastrofistas porque precisam justificar sua existência e seu trabalho.
Sergio Vieira de Mello, o grande diplomata brasileiro que trabalhava na ONU (e perdeu a vida no Iraque) costumava se dizer chocado com as brigas que precisava travar com colegas da organização que relutavam em fechar campos de refugiados em países que haviam conquistado um grau de estabilidade. Um campo de refugiados a menos significava a perda de milhares de empregos para ONGs e para a própria ONU.
Ninguém duvida que a fome no mundo e os estupros na África do Sul são dramáticos. A crise econômica mundial certamente atrasou o combate à miséria. Décadas de impunidade e de uma sociedade desajustada, em que prevalece a cultura do machão, levaram a violência contra a mulher sul-africana a níveis astronômicos.
Mas quando aparecer um número chocante, redondinho, bonitinho, é saudável desconfiar.
A primeira é nada menos do que chocante. Um estudo do Conselho de Pesquisa Médica da África do Sul concluiu que 27% dos homens do país já estupraram uma mulher.
A outra é da FAO, o órgão das Nações Unidas sobre agricultura e alimentação. Diz que 1 bilhão de pessoas no mundo passa fome. Não é exclusiva sobre a África, portanto, mas foram imagens de africanos esqueléticos que rechearam as reportagens de TV sobre o estudo. Quando se fala em fome, se fala em África.
Deixemos de lado a lamentável constatação de que mais uma vez o que gera notícia na África são duas desgraças. Não há muito que fazer quanto a isso.
Chama a atenção em um caso e no outro a beleza dos números arredondados. Veja que coincidência feliz para os pesquisadores e para nós, jornalistas. 1 bilhão que passam fome é um número deliciosamente fácil de ser entendido: melhor ainda, é 1 em casa 6 habitantes do planeta. Muito mais apropriado do que falar em 875 mil, ou 1.135.000, e muito mais fácil de manchetar.
E o caso da África do Sul? 27% é um número interessante também. A BBC arredondou para baixo, dizendo que “1 em cada 4” sul-africanos já estuprou. Outros veículos arredondaram para cima, preferindo a expressão “quase um terço”.
Onde estou querendo chegar? Uma das máximas do jornalismo é que números, se bem torturados, dizem qualquer coisa. De posse de uma mesma planilha de dados, se faz “n” matérias diferentes, algumas indo em direções totalmente opostas.
A FAO e a entidade sul-africana provavelmente são entidades sérias que jamais falsificariam dados. Não duvido que tenham pesquisadores sérios e criteriosos em seus quadros. Mas também desconfio que não resistiram à tentação da manchete fácil.
Desconfie de números redondos. Numa análise superficial, é possível estabelecer fragilidades nas duas pesquisas.
A da fome no mundo é uma aproximação (admitida, aliás, pela própria organização). Outros poderiam dizer que se trata de um chute, mas não chego tão longe. É simplesmente impossível sabermos quantas pessoas passam fome no mundo, porque diferentes indivíduos numa mesma área têm acesso diferenciado à comida. Não basta pegar uma região como Darfur, ou um país como o Zimbábue e colocar sua população toda na coluna dos que passam fome. A FAO, então, trabalhou com uma faixa estatística de probabilidade e resolveu cravar o número de 1 bilhão, por uma incrível “coincidência”.
A pesquisa sul-africana, por outro lado, tem uma limitação óbvia. Foi realizada em apenas duas das nove províncias (Estados) sul-africanos, o Cabo Oriental e Kwa-Zulu Natal. Que são basicamente as duas mais violentas do país. É como fazer uma pesquisa sobre violência no Rio de Janeiro analisando apenas o Complexo do Alemão.
ONGs humanitárias e organizações internacionais prestam serviços inestimáveis na África e em outras partes do mundo subdesenvolvido, mas podem também se tornar parte do problema quando passam a depender desse problema. Tendem a exagerar dados negativos e realçar dados catastrofistas porque precisam justificar sua existência e seu trabalho.
Sergio Vieira de Mello, o grande diplomata brasileiro que trabalhava na ONU (e perdeu a vida no Iraque) costumava se dizer chocado com as brigas que precisava travar com colegas da organização que relutavam em fechar campos de refugiados em países que haviam conquistado um grau de estabilidade. Um campo de refugiados a menos significava a perda de milhares de empregos para ONGs e para a própria ONU.
Ninguém duvida que a fome no mundo e os estupros na África do Sul são dramáticos. A crise econômica mundial certamente atrasou o combate à miséria. Décadas de impunidade e de uma sociedade desajustada, em que prevalece a cultura do machão, levaram a violência contra a mulher sul-africana a níveis astronômicos.
Mas quando aparecer um número chocante, redondinho, bonitinho, é saudável desconfiar.
Um comentário:
Tem razão e nem preciso falar mais nada sobre esses números terríveis sobre a África, mas esse outro aspecto, o do "arredondamento" dos números, às vezes chega a parecer absurdo. Lembrei-me de quantas vezes vi na imprensa, notícias sobre alguma ossada ou alguma pedrinha encontrada no subsolo de algum lugar e, de repente, aparecer algum "inteligente" e de cara, chutar que aquela "coisa" tem 300milhões de anos...tudo arredondado e em MILHÕES DE ANOS!!!Mariana
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