Por
Percival Puggina
Ontem, enquanto assistia, com minha mulher, a um vídeo do III Festival de MPB da TV Record (1967), experimentei instantes daquela emoção em que chorar parece escandaloso e as lágrimas, por isso, deslizam silenciosas pelos cantos dos olhos.
Ontem, enquanto assistia, com minha mulher, a um vídeo do III Festival de MPB da TV Record (1967), experimentei instantes daquela emoção em que chorar parece escandaloso e as lágrimas, por isso, deslizam silenciosas pelos cantos dos olhos.
Qual
sua causa? Seriam pequenas gotas de saudade dos anos 60? Do reencontro com as
canções da minha juventude? Era isso, também, mas não era só isso. Refletindo
sobre aqueles sentimentos, resultou impossível não considerar que era saudade
de algo mais, saudade de uma juventude mais sadia, de um respeito ao belo, de
uma reverência ao talento, à harmonia, à boa música e à poesia.
Havia
isso, naqueles anos distantes. Letras que faziam pensar e sentir. Composições
musicais que mobilizavam emoções de uma forma quase metafísica. Todas atravessaram
mais de meio século na memória de uma geração inteira. Era música, era popular,
por vezes revolucionária, mas era brasileira e tinha o perfume do amor ao
Brasil e à nossa cultura.
Há
quem descreva aqueles anos como os anos da inibição criativa, do amordaçamento
de uma geração, mas o que vi e trago na memória são anos de extraordinária
criatividade de jovens, muitos dos quais se alinhavam entre os principais
críticos do regime. Não nego a censura política, nem as burras restrições à
livre expressão das opiniões. O que nego é que de algum modo tenhamos avançado
a partir do instante em que os instrumentos da cultura passaram a ser usados
para destruir a cultura, degradar o gosto estético, refugar a beleza que, nas
almas nobres, é zeladora de tantos bens imateriais.
Interrogo-me:
como saímos de Ponteio, Roda Viva, Domingo no Parque; ou, mais expressivo
ainda, de Caymi, Vinicius, Edu Lobo, Elis, para os padrões atuais? Quem não tem
mente, faz do corpo seu alfarrábio e o transforma em outdoor de um indefinido
protesto que nem desenhado se entende. Confirmam-no meio século de
contracultura, de tribos urbanas e de desconstrução até as pessoas se
desconjuntarem de sua própria natureza.
Hoje,
dançar é agitar braços em ritmos frenéticos, ao ruído cavo e repetitivo de
aborrecidas percussões. Percussões que atravessam paredes, vencem quarteirões,
prolongam-se noite adentro e tornam sonolento o cotidiano dos cães.
Por
isso, tudo isso e muito mais (a feiúra das picadas, das cheiradas, das fumadas,
do alcoolismo, da negação do eterno, da supressão do sentido da vida), meus
olhos úmidos desta noite celebravam a beleza e recriminavam a feiúra neste
tempo em que o importante é chamar a atenção, ainda que para isso o senso de
ridículo seja perdido. Resulta impossível, então, não trazer à superfície a
cadeia de tragédias sucessivas traçada por Theodore Dalrymple. Saindo-se do
ridículo de si mesmo, da arte ridícula, da promoção do hediondo, do
naturalmente embaraçoso, segundo ele, a perda da vergonha significa a perda da
privacidade, que faz sumir a intimidade, sem a qual vai-se a profundidade. As
pessoas se tornam rasas. E tudo fica mais sombrio.
Percival Puggina (74), membro da Academia
Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site
www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de
"Crônicas Contra o Totalitarismo", "Cuba, a Tragédia da Utopia", "Pombas e Gaviões",
"A Tomada do Brasil". Integrante do grupo Pensar+.
Fonte: http://www.puggina.org
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