Escrito
por rabino Jonathan Sacks
Gostaria
de iniciar contando a história da mais bela ideia na história da civilização: a
ideia do amor que traz uma nova vida ao mundo. Há, é claro, muitas maneiras de
contar a história, e esta é apenas uma delas. Mas para mim é uma história de
momentos chave, cada um deles surpreendente e inesperado.
O
primeiro, de acordo com uma reportagem na imprensa em 20 de outubro do ano
passado, teve lugar num lago na Escócia 385 milhões de anos atrás. Foi quando,
de acordo com esta nova descoberta, dois peixes juntaram-se para realizar o
primeiro exemplo de reprodução sexual conhecido pela ciência. Até então toda a
vida tinha se propagado assexuadamente, por divisão celular, germinação,
fragmentação ou partenogênese, todas as quais são muito mais simples e mais
econômicas que a divisão da vida em macho e fêmea, cada um com um diferente
papel na criação e sustento da vida.
Quando consideramos, mesmo no reino animal, quanto esforço e energia a união de
macho e fêmea requer, em termos de exibição, rituais de corte, rivalidades e
violência, é espantoso que a reprodução sexual tenha acontecido afinal. Os
biólogos ainda não estão completamente seguros de porque ela aconteceu. Alguns
dizem que foi para oferecer proteção contra parasitas, ou imunidades contra
doenças. Outros dizem que é simplesmente que a reunião de opostos gera a
diversidade. Mas de uma forma ou de outra, os peixes na Escócia descobriram algo
novo e belo que tem sido copiado desde então por virtualmente todas as formas
avançadas de vida. A vida começa quando se encontram e se aceitam.
O segundo e inesperado desenvolvimento foi o desafio único posto ao Homo sapiens por dois fatores: nós nos erguemos, o
que estreitou a pélvis feminina, e tínhamos crânios maiores. O resultado foi
que os bebês humanos tiveram que nascer mais prematuramente do que as outras
espécies, e então precisavam de proteção parental por mais tempo. Isto fez com
que a parentalidade fosse mais exigente entre humanos que entre outras
espécies, o trabalho de duas pessoas ao invés de uma. Consequentemente, o
fenômeno, muito raro entre mamíferos, de casais vinculados (diferente de outras
espécies onde a contribuição do macho tende a terminar com o ato de
fecundação). Entre muitos primatas, os pais nem mesmo reconhecem seus filhos
quanto mais cuidar deles. Em toda parte no reino animal a maternidade é quase
universal mas a paternidade é rara.
Então o que emergiu adiante com a pessoa humana foi a união de pai e mãe
biológicos para cuidar de seus filhos. Até agora por natureza, mas então veio a
cultura, e a terceira surpresa.
Parece que entre caçadores e coletores, o vínculo entre casais foi a norma.
Então veio a agricultura, e excedente econômico, e cidades e civilização, e
pela primeira vez desigualdades nítidas começaram a emergir entre ricos e
pobres, poderosos e impotentes. Os grandes zigurates na Mesopotâmia e as
pirâmides do antigo Egito, com sua base ampla e topo estreito, foram
monumentais declarações em pedra de uma sociedade hierárquica na qual uns
poucos tinham poder sobre muitos. E a mais óbvia expressão de poder entre
machos alfa, quer sejam humanos ou primatas, é dominar o acesso para fertilizar
mulheres e então maximizar o alcance de seus genes na próxima geração. Daí a
poligamia, que existe em 95% das espécies mamíferas e 75% das culturas
conhecidas pela antropologia. A poligamia é a expressão máxima da desigualdade
porque significa que muitos machos nunca terão a chance de ter uma esposa e
filhos. E a inveja sexual tem sido, através da história, entre animais assim
como entre humanos, o primeiro motor da violência.
Isto é o que faz o primeiro capítulo do Gênesis tão revolucionário com sua
declaração de que cada ser humano, independente de classe, cor, cultura ou
credo, é feito à imagem e semelhança do próprio Deus. Sabemos que no mundo
antigo eram governantes, reis, imperadores e faraós que se consideravam a
imagem de Deus. Logo o que o Gênesis estava dizendo era que todos somos parte
da realeza. Todos têm igual dignidade no reino da fé sob a soberania de Deus.
Disto segue-se que cada um de nós tem igualdade de direito em ter um casamento
e filhos, e é por isso, independente de como você interpreta a história de Adão
e Eva - e há diferenças de interpretação entre Judeus e Cristãos - a norma
pressuposta pela história é: uma mulher, um homem. Ou como a própria Bíblia
diz: "É por isso que um homem deixa seu pai e sua mãe e é unido a sua esposa, e
eles tornam-se uma só carne".
A monogamia não se tornou imediatamente a norma, mesmo dentro do mundo da
Bíblia. Mas muitas de suas mais famosas histórias, sobre a tensão entre Sara e
Hagar, ou Léa e Raquel e suas crianças, ou Davi e Betsabá, ou as muitas esposas
de Salomão, são todas críticas que apontam o caminho para a monogamia.
E há uma profunda conexão entre monoteísmo e monogamia, assim como há, na
direção oposta, entre idolatria e adultério. Monoteísmo e monogamia dizem
respeito às relações abrangentes entre Eu e Você, Eu e um outro, seja ele
humano ou o divino "Outro".
O que faz o aparecimento da monogamia incomum é o caso de que normalmente os
valores de uma sociedade são aqueles impostos por uma classe governante. E a
classe governante em qualquer sociedade hierárquica candidata-se a obter
vantagem da promiscuidade e da poligamia, ambas as quais multiplicam as chances
de seus genes serem passados à geração seguinte. Na monogamia os ricos e
poderosos perdem e os pobres e sem poder ganham. Então o retorno da monogamia
vai contra a mudança social normal e foi um triunfo real para a igual dignidade
de todos. Cada noiva e cada noivo são a realeza; cada lar é um palácio quando
preenchido com amor.
O quarto desenvolvimento notável foi o modo como isto transformou a vida moral.
Todos tornamo-nos familiarizados com o trabalho de biólogos evolucionistas
usando simulações computadorizadas e repetido o dilema do prisioneiro para
explicar porque o altruísmo recíproco existe entre todos os animais sociais.
Comportamo-nos com os outros como desejaríamos que eles se comportassem
conosco, e respondemos a eles como eles respondem a nós. Como C. S. Lewis
destacou em seu livro 'A Abolição do Homem', a reciprocidade é Regra de Ouro
compartilhada por todas as grandes civilizações.
O que foi novo e notável na Bíblia Hebraica foi a ideia de que o amor, não
apenas justiça, é o princípio condutor da vida moral. Três amores: "Amar o
Senhor seu Deus com todo o seu coração, toda a sua alma e todo o seu poder". "Amar a seu próximo como a si mesmo". E, repetido não menos que 36 vezes nos
livros da Lei Mosaica, "Ame o estrangeiro porque você sabe o que é sentir-se
como um estranho". Ou para colocar de outro modo: Assim como Deus criou o mundo
natural em amor e perdão, somos encarregados de criar o mundo social em amor e
perdão. E que o amor é uma chama que brilha no casamento e na família. A
moralidade é o amor entre marido e mulher, pais e filhos, estendido ao mundo
exterior.
O quinto desenvolvimento moldou a estrutura inteira da experiência Judaica. Na
antiga Israel uma forma originalmente secular de acordo, chamado aliança, foi
tomado e transformado em uma nova forma de pensar a respeito da relação entre
Deus e humanidade, no caso de Noé, e entre Deus e uma pessoa no caso de Abraão
e os Israelitas posteriores no Monte Sinai. Uma aliança é como um casamento. É
um compromisso mútuo de lealdade e confiança entre duas ou mais pessoas, cada
um respeitando a dignidade e a integridade do outro, para trabalharem juntos e
alcançarem juntos o que não alcançariam sozinhos. E há uma coisa que mesmo Deus
não pode alcançar sozinho, que é viver dentro do coração humano. Isto precisa
de nós.
Então a palavra Hebraica emunah - erroneamente traduzida como "fé" -
realmente significa devoção, fidelidade, lealdade, firmeza, não ir embora mesmo
quando as coisas se tornam difíceis, confiando no outro e honrando a confiança
do outro em nós. O que a aliança fez, e vemos isto em quase todos os profetas,
foi compreender a relação entre nós e Deus em termos da relação entre noiva e
noivo, marido e esposa. O amor então torna-se não apenas a única base da
moralidade, mas também da teologia. No Judaísmo fé é casamento. Raramente isto
foi mais lindamente declarado do que por Oséas quando ele disse em nome de
Deus: "Eu te desposarei para sempre; Eu te desposarei com retidão e justiça,
amor e compaixão. Eu te desposarei com devoção, e você conhecerá o Senhor". Os
homens Judeus dizem estas palavras nas manhãs de cada dia e enrolamos a correia
de nosso Tefilin em torno de nosso dedo como um anel de casamento. A cada manhã
renovamos nosso casamento com Deus.
Isto conduz a uma sexta ideia bastante sutil de que verdade, beleza e bondade,
e a própria vida, não existe em nenhuma pessoa ou entidade mas no "entre", o
que Martin Buber chamou Das
Zwischenmenschliche, o interpessoal, o contraponto de falar e ouvir, dar e
receber. Através de toda a Bíblia Hebraica e da literatura rabínica, o veículo
da verdade é a conversação. Na revelação Deus fala e nos convida a ouvir. Na
prece nós falamos e pedimos que Deus ouça. Nunca há apenas uma voz. Na verdade,
algumas vezes penso que a razão de Deus ter escolhido o povo Judeu é que ele
adora um bom argumento. O Judaísmo é uma conversação composta por muitas vozes,
nunca mais apaixonadamente do que no Cântico do Cânticos, um dueto entre um
homem e uma mulher, a amada e seu amante, que o Rabino Akiva chamou de o
sagrado dos sagrados da literatura religiosa.
O profeta Malaquias chamou o sacerdote de o guardião da lei da verdade. O livro
dos Provérbios diz da mulher de valor que "a lei da bondade amorosa está em sua
língua". É que a conversação entre as vozes masculina e feminina - entre
verdade e amor, justiça e misericórdia, lei e perdão - emoldura a vida
espiritual. Em tempos bíblicos cada Judeu tinha que dar meio shekel (moeda de Israel) para o Templo a fim
de lembrar-nos que somos apenas metade. Há algumas culturas que ensinam que
somos nada. Há outras que ensinam que somo tudo. A perspectiva judaica é que
somos metade e precisamos nos abrir para um outro se formos tornamo-nos
completos.
Tudo isto leva-nos ao sétimo resultado, que no lar e na família Judaica
tornou-se a definição central de fé. No único verso na Bíblia Hebraica que
explica porque Deus escolheu Abraão, Ele diz: "Eu conheci-o tanto que ele
instruirá seus filhos e sua família após ele a manterem o caminho do Senhor
fazendo o que é correto e justo". Abraão foi escolhido não para governar um
império, comandar um exército, realizar milagres ou proferir profecias, mas
simplesmente para ser um pai. Numa das mais famosas linhas do Judaísmo, que
dizemos todos os dias e noites, Moisés ordena: "Vocês devem ensinar estas
coisas repetidamente para seus filhos, falando delas quando se sentarem em sua
casa ou quando andarem pelos caminhos, quando se abaixarem e quando se
levantarem". Os pais devem ser educadores, educação é uma conversação entre
gerações, e a primeira escola é o lar.
Então os Judeus tornaram-se pessoas intensamente orientadas à família, e foi
isto que nos salvou da tragédia. Após a destruição do Segundo Templo no ano 70,
os Judeus dispersaram-se por todo o mundo, em toda parte uma minoria, em toda
parte sem direitos, sofrendo algumas das piores perseguições já conhecidas por
um povo, e ainda assim os Judeus sobreviveram porque não perderam três coisas:
seu senso de família, seu senso de comunidade e sua fé.
E eles foram renovados a cada semana especialmente no Shabat, o dia de descanso
quando damos a nossos casamentos e famílias o que eles mais precisam, e do que
estão mais famintos no mundo contemporâneo, a saber: tempo. Certa vez produzi
um documentário de televisão para a BBC sobre a situação da vida familiar na
Bretanha, e levei a pessoa, que era então a principal especialista em cuidados
infantis, Penelope Leach, a uma escola primária Judaica numa manhã de sexta
feira.
Lá ela viu as crianças encenando com antecedência o que elas veriam naquela
noite em torno da mesa da família. Havia mãe e pai de cinco anos, abençoando
filhos de cinco anos, com os avós de cinco anos observando-os. Ela ficou
fascinada com toda a instituição, e perguntou às crianças o que elas mais
apreciavam no Shabat. Um garoto de cinco anos virou-se para ela e disse, "É a
única noite da semana em que papai não tem que se apressar". Quando terminamos
a filmagem e fomos embora da escola ela virou-se para mim e disse: "Rabino, o
Shabat dos seus está salvando os casamentos de seus pais".
Então, esta é uma maneira de contar a história, um modo Judaico, começando com
o primeiro nascimento pela reprodução sexuada, depois a demanda única da parentalidade
humana, depois o eventual triunfo da monogamia como declaração fundamental da
igualdade humana, seguido a propósito, o casamento moldou nossa visão da vida
moral e religiosa como baseada no amor, aliança e devoção, ao ponto mesmo de
pensar a verdade como uma conversação entre amante e amada. No casamento e na
família é onde a fé encontra seu lar, e onde a Divina Presença vive no amor
entre marido e esposa, pais e filhos. O que mudou então? Aqui está uma maneira
de expressar. Escrevi um livro há poucos anos a respeito de religião e ciência,
e resumi a diferença entre elas em duas sentenças. "A ciência toma as coisas
separadas para ver como elas funcionam. A religião toma as coisas juntas para
ver o que elas significam", e esta é uma forma de pensar a respeito de cultura
também. Ela põe as coisas juntas ou as separa?
O que fez a família tradicional notável, um trabalho de elevada arte religiosa,
é o que ela reúne: motivação sexual, desejo físico, amizade, companheirismo,
afinidade emocional e amor, a geração de crianças e sua proteção e cuidado, sua
educação prévia e introdução numa identidade e numa história. Raramente uma
instituição incorporou juntas tantas orientações, desejos, papéis e
responsabilidades. Construiu um sentido de mundo e deu a ele uma face humana, a
face do amor.
Por toda uma variedade de razões, algumas relacionadas a desenvolvimentos
médicos como controle de natalidade, fertilização in vitro e outras
intervenções genéticas, algumas relacionadas a mudanças morais como a ideia de
que somos livres para fazer tudo quanto gostarmos desde que não fira outros,
algumas relacionadas com a transferência de responsabilidades do indivíduo para
o estado, e outras mudanças mais profundas na cultura do Ocidente, quase tudo
que o casamento certa vez reuniu tem sido agora separado. O sexo tem sido
divorciado do amor, o amor do comprometimento, casamento de ter filhos e ter
filhos da responsabilidade de cuidar deles.
O resultado é que na Bretanha, em 2012, 47,5% das crianças nasceram fora do casamento,
espera-se que se tornem a maioria em 2016. Menos pessoas estão se casando, e
aquelas que estão, estão se casando mais tarde, e 42% dos casamentos terminam
em divórcio. Nem a coabitação é um substituto para o casamento. A média de
duração da coabitação na Bretanha e nos Estados Unidos é menos de dois anos. O resultado é
um incremento agudo entre as pessoas jovens de desordens alimentares, abuso de
álcool e drogas, síndromes relacionadas ao estresse, depressão e suicídios
tentados e consumados. O colapso do casamento tem criado uma nova forma de
pobreza concentrada em famílias monoparentais, e destas, o principal encargo é
das mulheres, que em 2011 encabeçavam 92% dos lares monoparentais. Na Bretanha
hoje mais de um milhão de crianças crescerá sem nenhum contato sequer com seus
pais.
Isto está criando uma divisão dentro de nossa sociedade, de um tipo que nunca
foi visto antes. Disraeli falou de "duas nações" um século e meio atrás.
Aqueles que são privilegiados de crescerem numa estável associação amorosa
entre duas pessoas que os trouxeram à existência, na média, serão mais
saudáveis física e emocionalmente. Serão melhores na escola e no trabalho.
Terão mais relacionamentos bem sucedidos, serão mais felizes e terão vidas mais
longas. E sim, há muitas exceções. Mas a injustiça de tudo isso grita aos céus.
Ficará na história como um dos trágicos exemplos do que Friedrich Hayek chamou
de "o conceito fatal", que de algum modo conhecemos melhor que a sabedoria das
eras, e podemos desafiar as lições da biologia e da história. Ninguém deseja,
certamente, retornar aos estreitos preconceitos do passado.
Esta semana, na Bretanha, um novo filme estreia, contando a história de uma das
grandes mentes do século XX, Alan Turing, o matemático de Cambridge que
assentou os fundamentos filosóficos da computação e da inteligência artificial,
e ajudou a vencer a guerra ao decifrar o código naval Alemão, o "Enigma". Após
a guerra, Turing foi preso e julgado por conduta homossexual, submetido à
castração química induzida, e morreu aos 41 anos de envenenamento por cianeto,
muitos consideram que cometeu suicídio. Este é um mundo ao qual não devemos
retornar nunca.
Mas nossa compaixão por aqueles que escolheram viver diferentemente não deveria
inibir-nos de sermos defensores da mais humanizante instituição da história. A
família, homem, mulher e filhos, não é uma escolha de estilo de vida entre
muitos. É o melhor meio que descobrimos para cultivar as futuras gerações e
permitir que as crianças cresçam numa matriz de estabilidade e amor. É onde
aprendemos a delicada coreografia do relacionamento, e como lidar com os
conflitos invitáveis dentro de um grupo humano. É onde uma geração passa seus
valores à próxima, e garante a continuidade de uma civilização. Para qualquer
sociedade, a família é o cadinho de seu futuro, e por causa do futuro de nossas
crianças, devemos ser seus defensores.
Desde que este é um encontro religioso, permitam-me, se eu puder, encerrar com
um trecho de exegese bíblica. A história da primeira família, o primeiro homem
e a primeira mulher no Jardim do Éden, geralmente não é considerada um sucesso.
Acreditemos ou não no pecado original, ela não tem um final feliz. Após muitos
anos estudando o texto, eu gostaria de sugerir uma interpretação diferente. A
história termina com três versos que parecem não ter conexão com nenhum outro.
Nenhuma sequência. Nenhuma lógica. Em Gênesis 3: 19 Deus diz ao homem "Pelo suor
de sua fronte comerás o teu pão até que retornes à terra, porque dela fostes
feito; pois és pó e ao pó retornarás". Então no próximo verso lemos: "O homem
deu a sua esposa o nome de Eva, porque ela seria a mãe de todos os viventes". E
no texto seguinte, "O Senhor Deus fez trajes de pele para Adão e sua esposa e
com eles os vestiu".
Qual a conexão aqui? Por que Deus, dizendo ao homem que era mortal, orientou-o
a dar a sua mulher um novo nome? E por que este parece mudar a atitude de Deus
em relação a ambos, de modo que Ele realiza um ato de ternura, ao fazer-lhes
roupas, quase como se Ele os tivesse parcialmente perdoado? Permita também
acrescentar que a palavra Hebraica para "pele" é quase indistinguível da
palavra Hebraica para "luz", tanto que o Rabino Meir, o grande sábio do século
II, interpretou o texto como dizendo que Deus fez para eles "trajes de luz". O
que ele quis dizer?
Se lermos o texto cuidadosamente, vemos que até agora o primeiro homem tinha
dado a sua esposa um nome puramente genérico. Ele chamou-a ishah, mulher. Lembre-se do que ele disse
quando a viu pela primeira vez: "Esta é agora osso do meus ossos e carne da
minha carne; ela deveria ser chamada mulher pois foi tirada do homem". Para
ele, ela era um tipo, não uma pessoa. Ele deu a ela um substantivo, não um
nome. No mais ele a define como derivada dele próprio: algo tirado do homem.
Ela não é ainda um outro alguém, uma pessoa em seu próprio direito. Ela é
meramente um tipo de reflexo dele próprio.
Enquanto o homem pensou que era imortal, ele basicamente não precisava de
ninguém mais. Mas agora ele sabia que era mortal. Ele poderia um dia morrer e
retornar ao pó. Havia apenas uma maneira pela qual algo dele viveria após a sua
morte. Isto de daria se ele tivesse uma criança. Mas ele não poderia ter uma
criança sozinho. Para isto ele precisava de uma esposa. Somente ela podia dar à
luz. Somente ela podia mitigar sua mortalidade. E não porque ela era como ele,
mas precisamente porque ela era diferente. Neste momento ela deixou de ser,
para ele, um tipo, e tornou-se uma pessoa em seu próprio direito. E uma pessoa
tem um nome apropriado. Isto foi o que ele deu a ela: o nome de Chavah "Eva", quer dizer, "doadora de vida".
Neste momento, em que eles estavam perto de deixar o Éden e enfrentar o mundo
como o conhecemos, um lugar de escuridão, Adão deu a sua esposa o primeiro
presente de amor, um nome pessoal. E naquele momento, Deus respondeu a eles com
amor, e fez para eles trajes para vestir sua nudez, ou como colocou o Rabino
Meir, "trajes de luz".
E tem sido assim desde então, que quando um homem e uma mulher dirigem-se um ao
outro num vínculo de fidelidade, Deus os veste com trajes de luz, e chegamos o
mais próximo que jamais chegaremos do próprio Deus, trazendo nova vida à
existência, transformando a prosa da biologia na poesia do espírito humano,
redimindo a escuridão do mundo pela resplandecência do amor.
Sir Jonathan Sacks é ex-rabino-chefe da Comunidade
Britânica
Publicado em The
European Conservative, o presente artigo é baseado num discurso
pronunciado no colóquio internacional "Humanum", no tópico "A Complementaridade
de Homem e Mulher", realizado entre 17 e 19 de dezembro de 2014 na Cidade do Vaticano.
www.rabbisacks.orgFonte: "Mídia Sem Máscara"
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