Por Arnaldo Jabor
O Brasil está
irreconhecível. Nunca pensei que a incompetência casada com o delírio
ideológico promoveria este caos. Há uma mutação histórica em andamento. Não é
uma fase transitória; nos últimos 12 anos, os donos do poder estão a criar um
sinistro "espírito do tempo" que talvez seja irreversível. A velha
"esquerda" sempre foi um sarapatel de populismo, getulismo tardio,
leninismo de galinheiro e agora um desenvolvimentismo fora de época. A velha
"direita", o atraso feudal de nossos patrimonialistas, sempre loteou
o Estado pelos interesses oligárquicos.
A chegada do PT ao governo
reuniu em frente única os dois desvios: a aliança das oligarquias com o
patrimonialismo do Estado petista. Foi o pior cenário para o retrocesso a que
assistimos.
Antes dessa terrível
dualidade secular, a mudança de agenda do governo FHC por sorte criou um
pensamento mais "presentista", começando com o fim da inflação, com a
ideia de que a administração pública é mais importante que utopias, de que as
reformas do Estado eram fundamentais. Medidas simples, óbvias, indutivas,
tentaram nos tirar da eterna "anestesia sem cirurgia". Foi o Plano
Real que tirou 28 milhões de pessoas da pobreza e não este refrão mentiroso que
os petistas repetem sobre o Bolsa Família ou sobre o PAC imaginário.
Foi um período renegado
pelo PT como "neoliberal" ou besteiras assim, mas deixou, para nossa
sorte, algumas migalhas progressistas.
Tudo foi ignorado e
substituído pelo pensamento voluntarista de que "sujeitos da
história" fariam uma remodelagem da realidade, de modo a fazê-la caber em
suas premissas ideológicas. Aí começou o desastre que me lembra a metáfora de
Oswald de Andrade, de que "as locomotivas estavam prontas para partir, mas
alguém torceu uma alavanca e elas partiram na direção oposta".
Isso causa não apenas o
caos administrativo com a infraestrutura morta, como também está provocando uma
mutação na psicologia e no comportamento das pessoas. O Brasil está sendo
desfigurado dentro de nossas cabeças, o imaginário nacional está se deformando.
Há uma grande neurose no
ar. E isso nos alarma como a profecia de Lévi-Strauss de "que chegaríamos
à barbárie sem conhecer a civilização". Cenas como os 30 cadáveres ao sol
no pátio do necrotério de Natal, onde os corpos são cortados com peixeiras,
fazem nossa pele mais dura e o coração mais frio. Defeitos e doçuras do povo,
que eram nossa marca, estão dando lugar a sentimentos inesperados, dores nunca
antes sentidas. Quais são os sintomas mais visíveis desse trauma histórico?
Por exemplo, o conceito de
solidariedade natural, quase 'instintiva', está acabando. Já há uma grande
violência do povo contra si mesmo.
Garotos decapitam outros
numa prisão, ônibus são queimados por nada, com os passageiros dentro, meninas
em fogo, presos massacrados, crianças assassinadas por pais e mães, uma revolta
sem rumo, um rancor geral contra tudo. O Brasil está com ódio de si mesmo.
Cria-se um desespero de autodestruição e o País começa a se atacar.
Outro nítido efeito na
cabeça das pessoas é o fatalismo: "É assim mesmo, não tem jeito não".
O fatalismo é a aceitação da desgraça. E vêm a desesperança e a tristeza. O
Brasil está triste e envergonhado.
Outro sintoma claro é que
as instituições democráticas estão sem força, se desmoralizando, já que o
próprio governo as desrespeita. Essa fragilização da democracia traz de volta
um desejo de autoritarismo na base do "tem de botar para quebrar!".
Já vi muito chofer de táxi com saudades da ditadura.
A influência do petismo
também recriou a cultura do maniqueísmo: o mal está sempre no outro. Alguém é
culpado disso tudo, ou seja, a 'media conservadora' e a oposição.
A ausência de uma política
contra a violência e a ligação de muitos políticos com o tráfico estimula a
organização do crime, que comanda as cadeias e já demonstra uma busca explícita
do horror. A crueldade é uma nova arte incorporada em nossas cabeças, por tudo
que vemos no dia a dia dos jornais e TV. Ninguém mata mais sem tortura. O horror
está ficando aceitável, potável.
O desgoverno, os crimes sem
solução, a corrupção escancarada deixam de ser desvios da norma e vão criando
uma nova cultura: a cultura da marginalidade, a "normalização" do
crime.
Uma grande surpresa foi a
condenação da Copa. Logo por nós, brasileiros boleiros. Recusaram o 'pão e
circo' que Dilma/Lula bolaram, gastando mais de 30 bilhões em estádios para
"impressionar os imperialistas" e bajular as massas. Pelo menos isso
foi um aumento da consciência política.
Artistas e intelectuais não
sabem o que pensar - como refletir sem uma ponta de esperança? Temos aí a
"contemporaneidade" pessimista.
Cria-se uma indiferença
progressiva e vontade de fuga. Nunca vi tanta gente falando em deixar o País e
ir morar fora. As mutações mentais são visíveis: nos rostos tristes nos ônibus
abarrotados, na rápida cachaça às 6 da manhã dos operários antes de enfrentar
mais um dia de inferno, nos feios, nos obesos, no desânimo das pessoas nas
ruas, no pessimismo como único assunto em mesas de bar.
Vimos em junho passado
manifestações bacanas, mas sem rumo; contra o quê? Um mal-estar generalizado e
sem clareza, logo escrachado pelos black blocs, a prova estúpida de nosso
infantilismo político.
É difícil botar a pasta de
dente para dentro do tubo. Há uma retroalimentação da esculhambação
generalizada que vai destruindo as formas de combatê-la. Tecnicamente, não
estamos equipados para resolver as deformações que se acumulam como enchentes,
como um rio sem foz.
E o pior é que, por trás da
cultura do crime e da corrupção, consolida-se a cultura da mentira, do
bolivarianismo, da preguiça incompetente e da irresponsabilidade pública.
O Brasil está sofrendo uma
mutação gravíssima e nossas cabeças também. É preciso tirar do poder esses
caras que se julgam os "sujeitos da história". Até que são mesmo, só
que de uma história suja e calamitosa.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, edição deste sábado, 10
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