Por
Rolf Kuntz
Burrada gera burrada e tende a crescer em
espiral, como os preços inflados, quando a besteira é realimentada pela
mentira. No Brasil, essa combinação de erros levou à superinflação, nome
inventado para marcar a tênue diferença entre a hiperinflação e o desastre
brasileiro dos anos 80 e começo dos 90. Proscrito por algum tempo, o jogo está
consagrado, novamente, na rotina brasiliense. O socorro de R$ 12 bilhões às
elétricas, para atenuar os efeitos de uma política populista de tarifas, é o
mais novo lance desse jogo. O Tesouro gastará R$ 4 bilhões além dos R$ 9
bilhões previstos no Orçamento e a Câmara de Comercialização de Energia, um
ente privado, tentará obter no mercado um financiamento de R$ 8 bilhões,
pagando juros, naturalmente. Os consumidores serão mais uma vez poupados, neste
ano, e só depois de votar receberão a conta aumentada.
Mentira é uma boa palavra para designar a
maquiagem das contas fiscais e a tentativa de reprimir - e falsificar, portanto
- os índices de preços. No caso das contas públicas, também tem sido usada, com
sucesso internacional, uma expressão mais suave: contabilidade criativa. A
nomenclatura faz pouca diferença. O importante é reconhecer a realimentação e a
multiplicação dos erros quando se tenta disfarçar os problemas, em vez de
resolvê-los. O efeito circular é claríssimo na crise argentina. Também é
indisfarçável na baderna econômica da Venezuela, marcada nas páginas da História,
de forma indelével, pela escassez de papel higiênico. Haja páginas.
O exemplo argentino é um modelo para os
governantes populistas, em geral muito interessados nos benefícios políticos e
pouco preocupados com os custos efetivos para a economia. Para disfarçar a
inflação o governo da Argentina tem falsificado os indicadores e tentado
tabelar ou congelar os preços. Como o fracasso é inevitável, amplia a
vigilância e tenta levar o controle até a origem dos produtos. Com isso, impõe
perdas a agricultores e pecuaristas e cria um conflito entre a administração
central e o setor mais eficiente da economia. De passagem, cria algum obstáculo
à exportação de alimentos, para derrubar os preços internos, e compromete a
receita cambial. Como o Executivo também usa os dólares da reserva para
liquidar contas fiscais, a combinação das trapalhadas produz ao mesmo tempo
inflação crescente, insegurança na produção e escassez de moeda para os
pagamentos internacionais.
Para poupar reservas o governo impõe
controles severos às compras de moeda estrangeira e aumenta o protecionismo.
Também esse esquema tende ao fracasso, mas produz algum efeito quando um
governo amigo se dispõe a aceitar o desaforo comercial. Neste caso, esse
governo amigo tem como endereço principal o Palácio do Planalto, em Brasília. A
tolerância é praticada em nome de uma solidariedade nunca retribuída e, de
forma implícita, de uma liderança regional imaginária e sempre desmentida na
prática.
A solidariedade tem um claro componente
ideológico. O estilo dos Kirchners tem sido uma evidente inspiração para o
governo brasileiro. Mas as condições no Brasil são um tanto diferentes e têm
sido menos propícias, pelo menos até agora, a algumas iniciativas mais
audaciosas. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ainda
funciona sem interferência do Executivo. O PT conseguiu, pelo menos durante
algum tempo, impor sua marca ao velho e respeitável Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea), mas a ação foi desastrada e desmoralizante. Não se
conhece, até hoje, nenhuma tentativa semelhante em relação ao IBGE.
Sem manipulação direta dos índices, a
maquiagem da inflação ocorre diretamente nos preços, por meio, por exemplo, da
redução das contas de eletricidade, da imposição de perdas à Petrobrás e do
congelamento das tarifas de transporte urbano. Seria politicamente muito mais
complicado tentar mexer nos indicadores produzidos pelo IBGE. Mas a
interferência direta na fixação de preços dispensa o governo desse risco.
Impõe, em contrapartida, uma porção de outros problemas.
O congelamento de tarifas de transporte
público resultou em perdas para governos municipais e estaduais, incluídos os
do PT. Recursos para investimentos e até para ações rotineiras tornaram-se mais
escassos, mas o reajuste de tarifas é hoje politicamente mais difícil do que no
ano passado.
O esperado socorro do governo federal - uma
das apostas do prefeito Fernando Haddad - também está atrasado e é pouco
provável, porque as contas do Tesouro Nacional estão em más condições. Se algum
socorro aparecer, será uma surpresa, porque a meta fiscal anunciada no mês
passado pelo ministro da Fazenda parece cada dia mais inacessível. O aumento
das despesas para socorrer o setor elétrico é uma sangria a mais para o
Orçamento federal.
Se a presidente insistir em poupar os
consumidores, será preciso compensar os gastos adicionais do subsídio às contas
de eletricidade. O ministro da Fazenda mencionou o possível aumento de impostos
e a reabertura do Refis, o refinanciamento de dívidas tributárias. Mais uma vez
o balanço fiscal dependerá de receitas especiais, como os pagamentos iniciais
do Refis, os dividendos do BNDES e o pedágio pago pelas concessões de
infraestrutura. Se as agências classificadoras aceitarem a jogada, talvez se
possa evitar a redução da nota de crédito soberano.
Um pouco mais de seriedade na gestão das
contas públicas e no combate à inflação pouparia ao governo muitas complicações
e livraria o País de perdas injustificáveis. Combate sério à inflação inclui o
uso mais eficiente do dinheiro público e a ação realmente autônoma do Banco
Central. O Brasil nada ganhou com a redução voluntarista dos juros. A inflação
subiu e foi preciso apertar de novo a política monetária. Também nada ganhou
com a manipulação de preços e tarifas. Burradas só geram problemas e o esforço
para disfarçá-los envolve novas burradas, como a solução improvisada para o
problema das elétricas.
Fonte: "O Estado de S. Paulo"
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