viagem sem retorno

por josé umberto

ele viajou a Vitória da Conquista pra assistir ao lançamento de 'Rastros de Ódio' (The Searchers, 1956, EUA), de John Ford na nobre sala do Cine Madrigal

a fita ainda não tinha sido lançada, na capital da Bahia, isso ainda na graça de 1963

- mas rapaz, você não poderia ter esperado mais um pouco?

tentando fazê-lo entender não se passar de uma ansiedade

- quem espera se desespera, sempre assim me respondia o estóico, irônico e tímido André Setaro, figura carioca cavalheiresca por hora abaianado embora, a essas alturas da vida já militante diário da crítica de cinema no jornal Tribuna da Bahia

ele se dirige à antiga Estação Rodoviária de Salvador {nas imediações do Mercado das Sete Portas}, para adquirir as passagens, passando por bondes onde os trilhos brilhantes circundavam os paralelepípedos descompostos das ruas

são 518 km e à época, em estrada de barro, os surrupiados ônibus interestaduais faziam o longo percurso em dez horas aproximadamente

uma senhora viagem! mas ele fazia qualquer sacrifício para assistir e se deliciar com o caubói tão badalado internacionalmente do mestre Ford e com a presença no elenco de John Wayne galopando pelo deserto mítico do Monument Valey, no Arizona, em Technicolor e no panorâmico Vistavision

era um atrativo, sem dúvida

e o meu amigo enfrentou a odisséica viagem sertão à dentro com bravura, disposição e coragem: um périplo de aventura extracinematográfica que poderíamos classificá-lo, em metalinguagem, de um 'filme' existencial dentro de uma marinete

André Setaro comeu o pão que o diabo amassou nesse trânsito, a maior parte noturno; teve dor de barriga, insônia, incidentes e conheceu passageiros, alguns divertidos, outros insuportáveis, podendo inclusive serem 'personagens' de uma dramaturgia picaresca, bizarra e licenciosa; padeceu em companhias desarmoniosas (para seu estilo cosmopolita soteropolitano) até despontar no nevoeiro gélido de Conquista (e André só levara cueca, meias e seu indefectível guarda-chuva), foi um sofrimento climático

passou à base de sanduíches e refrescos de caju

até chegar o instante magno de adentrar, enfim, o templo do Cine Madrigal, na sua imponência majestosa, no seu acolhimento e no seu sossego; buscou uma poltrona ao centro da sala, distanciado de poucos espectadores estranhos, ao que a seguir, segundo o ritual previsto, as luzes do ambiente começam a apagar paulatinamente enquanto o gongo bate com gravidade e a cortina diante da tela vai-se abrindo, se abrindo até a atmosfera do breu quase total

há um relaxamento de fundo similar ao onírico

a tela se projeta sobre o público na narrativa melancólica de um western moderno em que o personagem, anti-herói da jornada de nascimento de uma nação, se desloca no deserto carregando a sua sombra similar ao condenado Sísifo, antigo mito grego

josé umberto é cineasta e escritor