De um País irreverente, que proibiu a censura a biografias, vamos admitindo mais e mais a tutela do Estado sobre a cultura.
Fernando Schüler para o Estadão:
Retratações públicas por "incorreção política" são uma espécie de marca universal das autocracias. Nos tempos duros da União Soviética, uma crítica a Stalin rendia uma expiação pública, e depois coisa pior. Em Cuba, nos anos setenta, ficou famosa a "retratação" do poeta Heberto Padilla, por suas críticas à ditadura castrista, que levou a ruptura de tantos intelectuais com Fidel, como Llosa e Octavio Paz.
Me lembro disso quando vejo o País bizarro em que vamos nos convertendo. País que exige uma retratação pública de uma cantora de Axé, a Claudia Leitte, por cantar "meu rei Yeshua", ao invés de "rainha Iemanjá", na música "Caranguejo", num show de verão. Retratação e multa de 2 milhões.
Claudia trocou as palavras por sua religiosidade. Porque fazer isso é um direito seu, garantido pela Constituição. Se os autores quisessem mover um processo de direitos de autor, ok. Mas não o Estado. O Brasil não tem religião oficial, e nem o Estado um mandato para se intrometer nas escolhas religiosas das pessoas.
Este caso vai em linha com a ação movida pela AGU contra uma produtora de vídeos pelo documentário sobre o julgamento de Maria da Penha. Cidadãos são livres para produzir suas interpretações sobre a história. O próprio Supremo foi nesta linha quando garantiu a liberdade para as biografias. É evidente que qualquer pessoa que se sentir ofendida pode mover um processo. São os crimes contra a honra. O absurdo é o Estado congelar uma visão da história, num exercício à la Orwell, no 1984, e mandar punir qualquer desviante.
Se a moda pega, qualquer releitura histórica seria um crime em potencial. Que tal contar a história de Tiradentes de um jeito pouco respeitoso? E um filme satirizando Carlota Joaquina? Alguém se lembra de uma coisa dessas? De um País irreverente, em que mesmo a sátira politicamente incorreta fazia algum sentido?
Caso similar ocorreu no sul do País. A Universidade de Caxias, privada, fez um memorial com um acervo do ex-presidente Geisel. Não era proselitismo político, mas uma exposição histórica, na biblioteca. Adivinhem? Ação do Ministério Público para proibir, multa de R$ 1 milhão e obrigação de colocar no lugar uma mostra sobre as vítimas da ditadura. Muita gente acha ótimo estas coisas. Um leviatã gigante pairando sobre o País, higienizando nossa cultura de tudo que é coisa ruim. A história errada, palavra errada, piada errada, exposição errada, filme errado, religião errada. Um belo país, vamos nos tornando. O País da liberdade sem erro. Do Estado tutor da nossa cabeça.
Como gosto de história, me lembrei da França de Luiz XIV, depois de Fontainebleau. O catolicismo oficial, os reformados e outros errados celebrando seu culto às escondidas. Quem sabe seja nosso destino. Cantar o "Caranguejo" baixinho, do jeito que se deseja, à luz de velas, pra ninguém notar. De minha parte, quero distância desse destino. Liberdade sem a chance do erro não é liberdade. Que a gente possa refletir sobre isso são meus votos, neste quase 2026.

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