Por Fernando Gabeira
"A Hora do Lobo" é
um filme de Ingmar Bergman. Os antigos a chamavam assim porque é a hora em que
a maioria das pessoas morre... e a maioria nasce. Nessa hora os pesadelos nos
invadem, como o fizeram com o personagem Johan Borg, interpretado por Max von Sydow.
Como projeto destinado a
mudar a cultura política do País, o PT fracassou no início de 2003. Para mim,
que desejava uma trajetória renovadora, o PT sobrevive como um fósforo frio.
Entretanto, na realidade, é uma força indiscutível. Detém o poder central,
ocupou a máquina do Estado, criou um razoável aparato de propaganda e parece
que o dinheiro chove em sua horta com a regularidade das chuvas vespertinas na
Floresta Amazônica.
Mas o PT está diante de um novo momento
que poderia levá-lo a uma crise existencial, como o personagem de Bergman,
atormentado pelos pesadelos. Pode também empurrá-lo mais ainda para o
pragmatismo que cavou o abismo entre as propostas do passado e a realidade do
presente.
O PT sempre usou duas táticas combinadas
para enfrentar as denúncias de corrupção. A primeira é enfatizar seu objetivo:
uma política social que distribui renda e reduz as grandes desigualdades nacionais.
Diante dessa equação que enfatiza os fins e relativiza os meios, alguns quadros
chegam a desprezar as críticas, atribuindo-as às obsessões da classe média,
etiquetando-as como um comportamento da velha UDN, partido marcado pela
oposição a Getúlio Vargas e pela proximidade com o golpe que derrubou João
Goulart.
A segunda é criar uma versão corrigida
para os fatos negativos, certo de que a opinião pública ficará perdida na
guerra de versões. Esta tática é a que enfatiza o desprezo da política moderna
pelas evidências, como se o confronto fosse uma guerra em que a verdade é
vitimada por ambos os lados.
Acontece que essa fuga das evidências
encontra seu teste máximo no julgamento do mensalão. O ministro Joaquim Barbosa
apresenta as acusações com grande riqueza de detalhes. As teses corrigidas
foram sendo atropeladas pelos fatos. Não era dinheiro público?
Ficou claro que sim, era dinheiro público
circulando no mensalão. Ninguém comprou ninguém, eram apenas empréstimos entre
aliados. Teses que se tornam risíveis diante da origem e do volume do dinheiro.
O PT salvando o PP de José Janene, Pedro Correa e Pedro Henry da fúria dos
credores?
O relatório de Joaquim Barbosa apresenta o
mensalão como uma evidência reconhecida pela maioria do Supremo, dos órgãos de
comunicação e dos brasileiros. Como ficará a tática do PT diante dessa
realidade? Negar a evidência? É um tipo de reação que, mesmo em tempo de
prosperidade econômica, não funciona quando os fatos são inequívocos.
Ao longo de minhas viagens observei que o
mensalão não havia afetado as eleições municipais. Mas o processo está em
curso. Algumas cidades já estão afetadas, como São Paulo e Curitiba. Nesta
ocorre algo bastante irônico: o candidato Gustavo Fruet (PDT) é acusado de ter
o apoio do PT e por isso perde votos. Fruet foi um dos deputados que
investigaram o mensalão na CPI dos Correios.
A reação do PT diante da possível
condenação de seus líderes vai ser decisiva. Encontrará forças para reconhecer
seu erro, aceitar o julgamento do STF e iniciar um processo de autocrítica?
Tudo indica que não. A teoria conspiratória domina suas declarações. O mensalão
foi uma invenção da mídia golpista, dizem alguns. Na nota dos partidos aliados,
que deviam ser chamados de partidos submissos, acusa-se uma manobra da oposição,
como se tudo isso tivesse sido construído por ela, que descansa em berço
esplêndido.
Numa entrevista raivosa, um dos réus,
Paulo Rocha (PT-PA), alega que as denúncias do mensalão ocorrem porque Lula
abriu o mercado brasileiro aos países árabes. A tese conspiratória é tão
clássica que os judeus não poderiam ser esquecidos.
O ex-presidente Lula parece viver
realmente a hora do lobo. Percorre o Brasil atacando adversários e diz que, tal
como venceu o câncer, vai derrotar os candidatos de oposição. Se o ressentimento
e o rancor brotam com tanta facilidade dos lábios do líder máximo, o que
esperar do exército virtual de combatentes pagos para atirar pedras?
Este é um momento crítico na história do
PT. Deve contestar estas evidências com a mesma eloquência com que contestou
outras. Mas as de agora são transmitidas ao vivo, foram submetidas ao exame de
ministros do Supremo, estão coalhadas de fatos, depoimentos, provas.
Ao contestar as evidências o PT não
inventa um caminho. Paulo Maluf foi acusado durante anos de desviar dinheiro
para o exterior e sempre negou. A condenação e a eventual prisão de líderes não
afastam o PT do poder, mas transformam o encontro nos jardins da casa de Maluf
em algo mais que uma simples oportunidade fotográfica. O PT não só verteu milhões
para os caixas do partido Maluf, como aceitará a tática malufista de negar as
evidências, mesmo quando são esmagadoras.
Em defesa de Maluf pode-se dizer que ele
nunca prometeu a renovação ética da política brasileira. Usa apenas um mesmo e
fiel assessor de imprensa para rebater críticas nos espaços de cartas de
leitores. Descendente de árabes, Maluf jamais, ao que me consta, culpou uma
conspiração sionista por sua desgraça. Sempre foi o Maluf apenas, sem maiores
mistificações.
Montado numa máquina publicitária, apoiado
por uma miríade de intelectuais, orientado por competentes marqueteiros, o PT
viverá em escala partidária a aventura individual de Maluf: negar as
evidências. Até o momento nada indica que assumirá a realidade. Seu caminho
deve ser negar, negar, como o marido infiel nas peças de Nelson Rodrigues - por
sinal, o inventor da expressão "óbvio ululante".
O mensalão não é um cadáver no armário,
invenção de opositores ou da imprensa. Nasceu, cresceu e implodiu nas entranhas
do governo. É difícil sentar-se em cima dos fatos. Ele são como uma baioneta:
espetam.
Fonte: "O Estado de S. Paulo"
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