"É forçoso concluir que o lulismo não tem conteúdo,
não é nada além do permanente empenho em manter
o ex-presidente numa posição de poder e influência"
Na semana passada, li um artigo do
professor Marco Antonio Villa, que não conheço pessoalmente, mostrando, em
última análise, como a era Lula está passando, ou até já passou quase
inteiramente, o que talvez venha a ser sublinhado pelos resultados das eleições.
Achei-o muito oportuno e necessário, porque mostra algo que muita gente,
inclusive os políticos não comprometidos diretamente com o ex-presidente, já
está observando há algum tempo, mas ainda não juntou todos os indícios, nem
traçou o panorama completo.
O PT que nós conhecíamos, de
princípios bem definidos e inabaláveis e de uma postura ética quase
santimonial, constituindo uma identidade clara, acabou de desaparecer depois da
primeira posse do ex-presidente. Hoje sua identidade é a mesma de qualquer dos
outros partidos brasileiros, todos peças da mesma máquina pervertida, sem
perfil ideológico ou programático, declamando objetivos vagos e fáceis, tais
como "vamos cuidar da população carente", "investiremos em saneamento básico e
saúde", "levaremos educação a todos os brasileiros" e outras banalidades
genéricas, com as quais todo mundo concorda sem nem pensar.
No terreno prático, a luta não é pelo
bem público, nem para efetivamente mudar coisa alguma, mas para chegar ao poder
pelo poder, não importando se com isso se incorre em traição a ideais antes
apregoados com fervor e se celebram acordos interesseiros e indecentes.
A famosa governabilidade levou o PT,
capitaneado por seu líder, a alianças, acordos e práticas veementemente
condenadas e denunciadas por ele, antes de chegar ao poder. O "todo mundo faz"
passou a ser explicação e justificativa para atos ilegítimos, ilegais ou
indecorosos.
O presidente, à testa de uma votação
consagradora, não trouxe consigo a vontade de verdadeiramente realizar as
reformas de que todos sabemos que o Brasil precisa - e o PT ostentava saber
mais do que ninguém.
No entanto, cadê reforma tributária,
reforma política, reforma administrativa, cadê as antigas reformas de base,
enfim? O ex-presidente não foi levado ao poder por uma revolução, mas num
contexto democrático e teria de vencer sérios obstáculos para a consecução
dessas reformas.
Mas tais obstáculos sempre existem
para quem pretende mudanças e, afinal, foi para isso que muitos de seus
eleitores votaram nele.
O resultado logo se fez ver.
Extinguiu-se a chama inovadora do PT, sobrou o lulismo. Mas que é o lulismo? A
que corpo de ideias aderem aqueles que abraçam o lulismo? Que valores prezam,
que pretendem para o país, que programa ou filosofia de governo abraçam, que
bandeiras desfraldam além do Bolsa Família (de cujo crescimento em número de
beneficiados os governantes petistas se gabam, quando o lógico seria que se
envergonhassem, pois esse número devia diminuir e não aumentar, se bolsa
família realmente resolvesse alguma coisa) e de outras ações pontuais e quase
de improviso?
É forçoso concluir que o lulismo não
tem conteúdo, não é nada além do permanente empenho em manter o ex-presidente
numa posição de poder e influência. O lulismo é Lula, o que ele fizer, o que
quiser, o que preferir.
Isso não se sustenta, a não ser num
regime totalitário ou de culto à personalidade semirreligioso. No momento em
que o ex-presidente não for mais percebido como detentor de uma boa chave para
posições de prestígio, seu abandono será crescente, pois nem mesmo implica
renegar princípios ou ideais. Ele agora é político de um partido como qualquer
outro e, se deixou alguma marca na vida política brasileira, esta terá sido,
essencialmente, a tal "visão pragmática", que na verdade consiste em fazer
praticamente qualquer negócio para se sustentar no poder e que ele levou a
extremos, principalmente considerando as longínquas raízes éticas do PT. Para
não falar nas consequências do mensalão, cujo desenrolar ainda pode revelar
muitas surpresas.
O lulismo, não o hoje desfigurado
petismo, tem reagido, é natural. Os muitos que ainda se beneficiam dele
obviamente não querem abdicar do que conquistaram. Mas encontram dificuldades
em admitir que sua motivação é essa, fica meio chato. E não vêm obtendo muito êxito
em seus esforços, porque apoiar o lulismo significa não apoiar nada, a não ser
o próprio Lula e seu projeto pessoal de continuar mandando e, juntamente com
seu círculo de acólitos, fazendo o que estiver de acordo com esse projeto.
Chegam mesmo à esquisita alegação de
que há um golpe em andamento, como se alguém estivesse sugerindo a deposição da
presidente Dilma. Que golpe? Um processo legítimo, conduzido dentro dos limites
institucionais?
Então foi golpe o impeachment de
Collor e haverá golpe sempre que um governante for legitimamente cassado? Os
alarmes de golpe, parecendo tirados de um jornal de trinta ou quarenta anos
atrás, são um pseudoargumento patético e até suspeito, mesmo porque o
ex-presidente não está ocupando nenhum cargo público.
É triste sair do poder, como se
infere da resistência renhida, obstinada e muitas vezes melancólica que seus
ocupantes opõem a deixar de exercê-lo. O poder político não é conferido por
resultados de pesquisas de popularidade; deve-se, em nosso caso presente, aos resultados
de eleições.
O lulismo talvez acredite possuir
alguma substância, mas os acontecimentos terminarão por evidenciar o oposto
dessa presunção voluntarista. Trata-se apenas de um homem - e de um homem cujas
prioridades parecem encerrar-se nele mesmo. Mas sua saída de cena não deverá
ser levada a cabo com resignação.
Ele insistirá e talvez ainda o
vejamos perder outra eleição em São Paulo. Não a do Haddad, que aparentemente
já perdeu. Mas a dele mesmo, depois que o mundo der mais algumas voltas e ele quiser
iniciar uma jornada de volta ao topo, com esse fito candidatando-se à
prefeitura de São Paulo.
* João Ubaldo Ribeiro é escritorFonte: "O Globo"
Um comentário:
Muito bom artigo de João Ubaldo; não é outra coisa. Tomara suas palavras sejam proféticas e o "cara" caminhe para o ostracismo político, depois de tantas traições e mentiras. Tudo dependerá da compreensão(ou falta de) do povo brasileiro, o que nos deve encher de preocupação.
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