Por Fernando
Henrique Cardoso
A presidenta Dilma Rousseff
recebeu uma herança pesada de seu antecessor. Obviamente, ninguém é responsável
pela maré negativa da economia internacional, nem ela nem o antecessor. Mas há
muito mais do que só o infortúnio dos ciclos do capitalismo.
Comecemos pelo mais óbvio: a
crise moral. Nem bem completado um ano de governo e lá se foram oito ministros,
sete dos quais por suspeitas de corrupção. Pode-se alegar que quem nomeia
ministros deve saber o que faz. Sem dúvidas, mas há circunstâncias. No entanto,
como o antecessor desempenhou papel eleitoral decisivo, seria difícil recusar
de plano seus afilhados. Suspeitas, antes de se materializarem em indícios, são
frágeis diante da obsessão por formar maiorias hegemônicas, enfermidade petista
incurável.
Mas não foi só isso: o mensalão
é outra dor de cabeça. De tal desvio de conduta a presidenta passou longe e
continua se distanciando. Mas seu partido não tem jeito. Invoca a prática de um
delito para encobertar outro: o dinheiro desviado seria "apenas" para
o caixa 2 eleitoral, como disse Lula em tenebrosa entrevista dada em Paris,
versão recém-reiterada ao jornal 'The New York Times'. Pouco a pouco, vai-se
formando o consenso jurídico, de resto já formado na sociedade, de que desviar
dinheiro é crime, tanto para caixa 2 como para comprar apoio político no
Congresso Nacional. Houve mesmo busca de hegemonia a peso de ouro alheio.
Mas não foi só isso que Lula
deixou como herança à sucessora. Nos anos de bonança, em vez de aproveitar as
taxas razoáveis de crescimento para tentar aumentar a poupança pública e
investir no que é necessário para dar continuidade ao crescimento produtivo,
preferiu governar ao sabor da popularidade. Aumentou os salários e expandiu o
crédito, medidas que, se acompanhadas de outras, seriam positivas. Deixou de
lado as reformas politicamente custosas: não enfrentou as questões regulatórias
para acelerar as parcerias público-privadas e retomar as concessões de certos
serviços públicos. A despeito da abundância de recursos fiscais, deixou de
racionalizar as práticas tributárias, num momento em que a eliminação de
impostos se poderia fazer sem consequências negativas: a oposição conseguiu
suprimir a CPMF, cortando R$ 50 bilhões de impostos, e a derrama continuou
impávida.
É longa a lista do que faltou
fazer quando seria mais fácil. Na questão previdenciária, o único
"avanço" não se concretizou: a criação de uma previdência
complementar para os funcionários públicos que viessem a ingressar depois da
reforma. A medida foi aprovada, mas sua consecução dependia de lei subsequente,
para regulamentar os fundos suplementares, que nunca foi aprovada. As centenas
de milhares de recém-ingressados no serviço público na era lulista continuaram a
se beneficiar da regra anterior. Foi preciso que novo passo fosse dado pelo
governo atual para reduzir, no futuro, o déficit da Previdência. Que dizer,
então, de modificações para flexibilizar a legislação trabalhista e incentivar
o emprego formal? A proposta enviada pelo meu governo com esse objetivo, embora
assegurando todos os direitos trabalhistas previstos na Constituição, foi
retirada do Senado pelo governo Lula em 2003. Agora é o próprio Sindicato
Metalúrgico de São Bernardo do Campo que pede a mesma coisa...
Mas o "hegemonismo" e
a popularidade à custa do futuro forçaram outro caminho: o dos "projetos
de impacto", como certos períodos do autoritarismo militar tanto prezaram.
Projetos que não saem do papel ou, quando saem, custam caríssimo ao Tesouro e
têm utilidade relativa. O exemplo clássico foi a formação a fórceps de
estaleiros nacionais para produzirem navios-tanque para a Petrobrás (pagos,
naturalmente, pelos contribuintes, seja por meio do BNDES, seja pelos altos
preços desembolsados pela Petrobrás). Depois do lançamento ao mar do primeiro
navio, com fanfarras e discursos presidenciais, passaram-se meses para se
descobrir que o custo não fez jus a tanta louvação. Que dizer dos atrasos da
transposição do São Francisco, ou da Transnordestina, ou ainda da fábrica de
diesel à base de mamona? Tudo relegado aos restos a pagar do esquecimento.
O que mais pesa como herança é
a desorientação da política energética. Calemos sobre as usinas movidas "a
fio d'água", cuja eletricidade para viabilizar o empreendimento terá de
ser vendida como se a produção fosse firme o ano inteiro, e não sazonal. Foi
preciso substituir o companheiro que dirigia a Petrobrás para que o País
descobrisse o que o mercado já sabia, havendo reduzido quase pela metade o
valor da empresa. O custo da refinaria de Pernambuco será dez vezes maior do
que previsto; há mais três refinarias prometidas que deverão ser postergadas ad
infinitum. O preço da gasolina, controlado pelo governo, não é compatível com
os esforços de capitalização da Petrobrás. Como consequência de seu
barateamento forçado - que ajuda a política de expansão ilimitada de carros com
a coorte de congestionamentos e poluição - a produção de etanol se desorganizou
a tal ponto que estamos importando etanol de milho dos Estados Unidos!
Com isso tudo, e apesar de
estarmos gastando mais divisas do que antes com a importação de óleo, o
presidente Lula não se pejou em ser fotografado com as mãos lambuzadas de
petróleo para proclamar a autossuficiência de produção, no exato momento em que
a produtividade da extração se reduzia. No rosário de desatinos, os poços
secos, ocorrência normal nesse tipo de exploração, deixaram de ser lançados
como prejuízo, para que o País continuasse embevecido com as riquezas do
pré-sal, que só se materializarão quando a tecnologia permitir que o óleo seja
extraído a preços competitivos, que poderão tornar-se difíceis com as novas
tecnologias de extração de gás e óleo dos americanos.
É pesada como chumbo a herança
desse estilo bombástico de governar que esconde males morais e prejuízos
materiais sensíveis para o futuro da Nação.
* Fernando Henrique Cardoso é
sociólogo, foi presidente da República
Fonte: "O Estado de S. Paulo"
Um comentário:
É o govêrno do faz de conta! Da mentira!
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