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sábado, 31 de agosto de 2024

“Nordestern”


Por Albenísio Fonseca

O movimento da câmera aproxima, afasta, percorre o ambiente, capta a cena, leva a imagem de um lado para o outro, seja vertical ou horizontalmente. O enquadramento especifica que tipo de recorte a imagem terá: mais aberto ou fechado, de cima para baixo, de baixo para cima ou no mesmo plano do espectador. 

Seja um plongée ou um contreplongée, palavras francesas que, adequadas ao processo cinematográfico, significam "ângulo alto" e "ângulo baixo". Ou seja, um enquadramento de cima para baixo, como se a câmera estivesse mergulhando, ou de baixo para cima, como se estivesse emergindo.

O cinema é uma arte sui generis. Representa a realidade, como diríamos da pintura e da escultura, mas também consegue efetuar movimentos, como a dança e encenações como no teatro. Consegue, além do mais, encaixar a música na representação da beleza que se une intimamente com a cena que ele retrata. Dirigir um filme envolve toda uma gama de conhecimentos e técnicas, seja no uso das câmeras, seja nos procedimentos dos atores. 


A genuína brasilidade do cangaço

Em Revoada - a última vingança do cangaço, filme que está em cartaz em diversas salas de várias capitais e cidades do país, carregado da dramaticidade genuinamente brasileira do cangaço, podemos conhecer um pouco do que pensam sobre esses aspectos o seu diretor e roteirista, José Umberto Dias e atores deste que foi o último filme rodado em película color Super16mm na Bahia. 

Conforme o cineasta,  "cinema é como uma orquestra com o maestro em cena produzindo mise-en-scène, se aplicamos o método de cinema de autor ou cinema de poesia, na inclinação do filme independente moderno".


Para Umberto, "o set de filmagem é sempre uma zona de energia: uma ambiência de repertório aberto, inventivo. O diretor transpira a ignição do motor que gera imagem e som". Ele revela que, "em Revoada, como laboratório de dramaturgia-histórica, apliquei com síntese os métodos propostos por Stanislavski, Grotowski, Brecht e do Actors Studio, de uma forma livre e eclética, além dos ensinamentos sábios de Jung com os seus arquétipos poderosos".

Quanto ao trabalho com o elenco disse que "foi sobretudo focado no corpo, bem como na fala. A intervenção no corpo atua como tabu, na medida em que há muitas defesas,  couraças pessoais, nessa área". Geralmente, ainda segundo José Umberto, "atores e atrizes resistem na manutenção da persona, já outros se entregam aos perigos, aos abismos, aos riscos e desafios da arte, de modo libertário e criador, como vemos bem no desempenho deles no filme".  

Todo o trabalho foi elaborado antes das filmagens e em leituras quentes do roteiro, em laboratórios de cenas. "Só nos lançamos nas filmagens, propriamente ditas, quando sentia que o pessoal já se encontrava apto para a recriação no cenário das paisagens, para a improvisação e para a relação vital com o outro", revela. 

Ainda segundo Umberto, "outro elemento básico foi o entrosamento intenso com o diretor de fotografia Mush Emmons, levando a câmera a funcionar como uma personagem oculta e direta. Uma câmera ágil e em sintonia com a mobilidade das cenas", em travellings de catinga no agreste da Chapada Diamantina. 

O diretor assegura que "toda a equipe técnica esteve motivada porque acreditava no dia-a-dia da agitação criadora. Era uma comunidade atuando em ação conjunta, colocando os seus potenciais em ação. E é visível o quanto isso funcionou. Algo como o cinema sob investimento da vontade".

Atores ampliaram vocabulário do roteiro


Para o ator Jackson Costa, protagonista do filme, "é bom falar sempre sobre essa forma, essa maneira com que o diretor José Umberto regeu essa orquestra". Segundo ele, "porque nós sabemos que se  pegarmos dez diretores e der o mesmo roteiro, a gente vai ver nuances bem distintas nesses dez filmes, porque cada cabeça vai para um canto, mas eu  penso que não tem muitas cabeças pensantes como a de José Umberto para abordar esse tema dessa forma".  

Como diretor, conforme Jackson Costa, "José Umberto nos proporcionou toda uma liberdade interpretativa, notadamente porque ele não se restringia aos fatos históricos, como eles foram, ele é um artista que recria, que abre uma margem de inventividade para os atores, até para que o público também imagine situações, gere expectativas a partir daquilo que está vendo… então, ele é um filósofo, um pensador, um poeta. Não se atém só à condição de ser um diretor que vai saber conduzir tecnicamente uma câmera. Afinal, o diretor é fundamental no cinema, mas não é só isso…".

Portanto, continua Jackson, "é importante o dado dele gostar de atores de teatro que possibilitam a regência para qualquer dinâmica da orquestra".

A Baronesa, "o poder do latifúndio"

Professora de expressão vocal e corporal, coreógrafa e atriz, Christiane Veigga diz que Revoada foi seu primeiro trabalho em um longa. Ela já tinha atuado em curtas, peças comerciais, institucionais, documentários. 


Conforme Christiane, "construir a Baronesa foi um desafio maravilhoso. Inspirei-me na minha bisavó Mariana Ferreira, em sua altivez, força e autoridade; em sua postura, gestos e modo de falar; em minha mãe, Yvone de Oliveira Veiga, na sua essência guerreira, mártir e mãe, capaz de muitos sacrifícios pelos seus".

Fazer Revoada para a atriz "foi um misto de emoções. José Umberto tem uma direção muito precisa, sempre indicando exatamente o que queria. Algumas vezes ele dizia o detalhe da mão, do rosto, e outras vezes deixava a gente fazer livremente como na contracena do estupro com Nelito Reis". 

Ainda segundo ela, seu desafio maior nesse filme foi "mostrar o poder do latifúndio de forma diferenciada, quis desvelar a mulher no poder, em contraponto com a cangaceira Jurema (vivida pela Analu Tavares), em perspectivas sociais, políticas e de gênero tão diferentes, mas sob determinados aspectos semelhantes". 

Christiane Veigga observa o quanto "não se trata de um documentário, evidentemente, mas a pesquisa de José Umberto foi tão profunda que trouxe essa sensação para mim". A energia nos sets de filmagem, de acordo com ela, "era tão precisa que sentia o peso, a dor, a luta, numa intensidade que só em poucas peças teatrais pude vivenciar". Sem dúvida, assegurou, "Revoada será para mim um marco na minha vida pessoal e profissional". 

Da história ao realismo fantástico


Analu Tavares (eleita Melhor Atriz, no 10° Encontro de Cinema e Vídeo dos Sertões, em Floriano, no Piauí, pelo desempenho como a cangaceira Jurema), arremata: "eu vejo isso tudo com muita naturalidade, assistindo o filme… o sotaque, a maneira da gente falar, aquela forma, aquilo ali é muito familiar pra mim, acho até que para todos nós, então  não teve surpresa nenhuma, surpresa seria a percepção de outra pessoa que seja de outro Estado, de outra cultura, entende?… O mais forte para mim, no contexto do cangaço, foi a presença guerreira das mulheres".

Para o ator Nelito Reis, "muito do nosso linguajar era textual também. José Umberto ao escrever o roteiro utilizou muitas expressões típicas da época e da região. Já estavam ali. A exemplo do termo "quilariá", o "quilariá da lua cheia", estava assim no roteiro: quilariá. Então tem muita coisa que já estava no roteiro, e muita coisa que a gente trouxe também…"

Sou uma pessoa urbana, diz Nelito, "nasci em Salvador, mas me criei frequentando a família no interior, na região de Capim Grosso, de Jacobina. Vaca Brava era um distrito de Capim Grosso, então eu convivi com os tipos e expressões rurais. Quando eu construí o personagem Gavião, todos aqueles aspectos e relações vinham à lembrança". 

"Em nenhum momento - prosseguiu - me preocupei em estar caricato, porque tinha uma convicção muito profunda de que estava conseguindo imprimir verossimilhança com o que presenciei quando criança, e o estipulado no roteiro". 


Uma faceta da humanidade

O ator Carlos Betão, que vive um vaqueiro a serviço do coronelismo, avalia que "esse filme beira um pouco o 'realismo fantástico'. Tem um namoro com o realismo fantástico…".  Ele sugere que "nós estávamos em contato com uma faceta da humanidade. Para mim, o caricato é quando você não tem essa intimidade com a humanidade… quando não se tem essa intimidade,  essa aproximação com a humanidade, seja de que forma for, entendeu?" 

Segundo ele, "alguém me falou, nas minhas andanças pelo mundo fazendo teatro, que 'o ator não pode passar ao largo da vida', então essa observação que o Nelito traz, é necessária". Quando fiz "Sargento Getúlio, espetáculo e monólogo, diz Betão, tinha várias pessoas que eu observava em Itabuna, cidade onde me criei, tive muitos contatos com essas pessoas… por mais que eu quisesse não ficaria caricato, como não ficou caricato você, Nelito, cuspir na mão e passar no cabelo não, porque aquilo é de uma verdade absoluta, cara… 

Agora se você não tivesse contato com esses indivíduos, com essas  matizes, com essa geografia humana que nós temos que estar sempre observando, aí você pode fazer qualquer desgraça,  menos aquele gesto naturalíssimo do cuspe na mão, que já começa o filme com isso, você está se embelezando, ali é o maior creme Helena Rubinstein, ao menos à moda dos cangaceiros". 


Narrativa impactante e liberdade criativa

O ator e apresentador de TV Aldri Anunciação, que vive o cangaceiro Gitirana em Revoada disse de o quanto a personagem o ajudou a explorar aspectos da sociedade em que vivemos: "Encarei Gitirana não apenas como uma personagem fictícia, mas como um reflexo das lutas e resistências que vemos todos os dias ao nosso redor". 

Interpretar Girana, para ele, "foi um desafio e, ao mesmo tempo, uma experiência enriquecedora, pois me conectei com a sua força e determinação em meio às adversidades". É certo, conforme Aldri, que "existem muitas mensagens e reflexões a serem tiradas dessa história", e ele acentua o quanto é "grato por ter tido a oportunidade de dar vida a Gitirana e contribuir para essa narrativa tão impactante do filme de José Umberto". 

A propósito  da cena em que Gitirana mata a facadas o personagem Gavião, segundo Aldri, "foi um trabalho em conjunto e de troca  com o colega de cena Nelito Reis, sob o estímulo da liberdade criativa proporcionada pelo diretor José Umberto". Para quem, vale destacar, "o ator ou a atriz estão ali criando a partir de uma concepção gerada por mise-en-scène elaborada pela direção do filme".

Já o ator lembra ter começado a construção da relação dos dois à parte da cena da morte. "Depois fomos criando as outras  cenas. Víamos nessa episódio uma tragédia das relações humanas. Um colega  de cangaço matar o outro tem uma potência narrativa muito grande", conforme o próprio roteiro de Umberto. Ainda segundo Aldri, "nosso cuidado com a coreografia e nuances da cena foi algo que me deixou lembranças muito fortes". 

Metáfora sonora e dialeto do Sertão

Responsável pela direção musical e trilha sonora do filme, João Omar não titubeia: "Até hoje só vi duas pessoas tratarem com propriedade o dialeto do Sertão: Meu pai, Elomar Figueira e José Umberto". Omar conta que ao ler o roteiro, "ficou muito impressionado com o tratamento perfeito do texto". Segundo ele, "a narrativa me emocionou ainda mais ao me deparar com essa potência histórica do próprio Cangaço e seus símbolos, que ali nos chegavam repletos de imagens e metáforas sonoras". 

Omar revela ter se sentido "muito honrado em participar de Revoada fazendo a trilha sonora". Para tanto, destaca ter contado com o apoio do também músico João Liberato, em um filme que considera ser de "suma importância", e que "vai além das telas, resistindo e emergindo nessa memória ainda parda das nossas história e cultura, para as quais - evocou - urge reunirmos forças". Sim, e ele propõe que seja "pra engrossar nossas 'filêra' na luta contra o esquecimento e a indiferença ante essa história tão formidável quanto memorável". 

Fonte: https://bahiarevista.home.blog/

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