Por Marco Antonio Villa
Jango
era um cardiopata. E de longa data. No México, a 10 de abril de 1962, em visita
oficial, assistindo a uma exibição do balé folclórico mexicano, no Teatro Belas
Artes, o presidente teve um ataque cardíaco. Ficou desfalecido por um minuto.
Atendido por médicos mexicanos, ficou impossibilitado de continuar a cumprir a
agenda presidencial, sendo substituído por San Tiago Dantas. No retorno ao
Brasil, o grande assunto era o estado de saúde de Jango e a possibilidade de
que renunciasse à Presidência. Afinal, era o segundo ataque cardíaco em apenas
oito meses. Dois meses depois, quando da recepção em palácio da seleção
brasileira que partiria para a Copa do Mundo no Chile, Pelé manifestou
preocupação com a saúde do presidente: "Presidente, como vão estas coronárias?"
E Jango respondeu: "Estão boas, mas não tanto quanto as suas."
Às
vésperas do célebre comício da Central (13 de março de 1964), seu estado de
saúde inspirava cuidados. Foi advertido que poderia ter sérias complicações com
o coração. Jango desdenhou e manteve seu ritmo costumeiro de vida sedentária,
alimentação inadequada, excesso no consumo de bebidas e vivendo em permanente
estresse. No exílio uruguaio, também devido aos problemas com o coração, foi
atendido pelo dr. Zerbini. Na França, onde esteve várias vezes, foi cuidar do
coração e chegou a tentar uma consulta com o dr. Christian Barnard, na África
do Sul, médico que dirigiu a equipe que fez o primeiro transplante de coração.
A
transformação de Jango em um perigoso adversário do regime militar - tanto que
o seu assassinato teria sido planejado pela Operação Condor - não passa de uma
farsa. No exílio uruguaio, especialmente nos anos 1970, não tinha qualquer
atuação política.
Tudo
não passa de mais uma tentativa de mitificação, da hagiografia política sempre
tão presente no Brasil. O figurino de democrata, reformista e comprometido com
os deserdados foi novamente retirado do empoeirado armário. Agora pelos seus
antigos adversários, os petistas. Mero oportunismo. É que a secretária dos
Direitos Humanos, Maria do Rosário, pretende ser candidata ao Senado pelo Rio
Grande do Sul. E, como boa petista, não se importa de reescrever a história ao
seu bel-prazer.
O
cinquentenário dos acontecimentos de março/abril de 1964 é uma boa oportunidade
para rever o governo Jango. O início dos anos 1960 esteve marcado pela agudização
das mais variadas contradições. O esgotamento do ciclo econômico que alcançou
seu auge na presidência JK era evidente. A grande migração tinha criado uma
sociedade urbana e novas demandas que os governos não sabiam como atender. A
tensão gerada pela Guerra Fria azedava qualquer conflito, por mais comezinho
que fosse.
É
nesta conjuntura que Jango tentou governar. E foi um desastre. Raciocinava
sempre imaginando algum tipo de ação que significasse o abandono da política,
do convencimento do adversário. Era tributário de uma tradição golpista, típica
da política brasileira da época.
Nunca
fez questão de esconder seu absoluto desinteresse pelas questões mais complexas
da administração pública, distantes da politicagem do dia a dia. Celso Furtado,
nas suas memórias (A fantasia desorganizada),
relatou que entregou o Plano Trienal - que buscava planejar a economia nos anos
1963-1965 - ao presidente depois de exaustivas semanas de trabalho. Jango mal
passou os olhos pela primeira página. Em entrevista à revista Playboy, em abril de 1999, Furtado foi
direto: Jango "era um primitivo, um pobre de caráter".
No
polo ideológico oposto, o embaixador Roberto Campos, também nas suas memórias (A lanterna na popa), contou que escreveu
um documento de 30 páginas relatando os contenciosos do Brasil com os Estados
Unidos, em 1962, quando da visita do presidente a Washington. San Tiago Dantas,
ministro das Relações Exteriores, pediu ao embaixador que reduzisse ao máximo a
extensão do texto, pois com aquele volume de páginas o presidente não leria.
Obediente, o embaixador sintetizou os problemas em cinco páginas, que foram
consideradas excessivas. Diminuiu para três páginas. Mesmo assim, segundo
Campos, Jango não leu o documento.
As
reformas de base, palavra de ordem repetida à exaustão naqueles tempos, nunca
foram apresentadas no seu conjunto. A definição - ainda que vaga - apareceu
somente na mensagem presidencial encaminhada ao Congresso Nacional quando do
início do ano legislativo, a 15 de março de 1964. E lembrar que foram apresentadas
como soluções de curto prazo - mesmo sendo mudanças estruturais - durante três
anos…
Deixou
um país dividido, uma economia em estado caótico e com as instituições
desmoralizadas. E abriu caminho para duas décadas de arbítrio.
Fonte: "O Globo"
Nenhum comentário:
Postar um comentário