Por André Setaro
"…E o Vento Levou" (Gone With the Wind, 1939) está a completar
74 anos de existência. Filme emblemático como espetáculo cinematográfico,
característico da escola idealista do cinema no modo de representação da
realidade, marcou época e, talvez, tenha sido o mais visto em todos os tempos.
As constantes listas que aferem os campeões de bilheteria já não o têm entre os
seus dez maiores, porque a aferição é feita em termos dos lucros auferidos e,
assim, os ingressos antigamente eram muito mais baratos.
Ainda que hoje a nova geração não o veja mais, o fato é que durante as
décadas de 40, 50 e 60,…E o
vento levou era uma referência constante, e não havia cinéfilo, que
se quisesse prezar, que não o tivesse visto. Acredito que se, atualmente, os
campeões de bilheteria, "Titanic" ou, já
a o superar, "Batman, O Cavaleiro das Trevas",
tenham obtido as maiores bilheterias da história do cinema, por outro lado,
nenhum filme como "…E o Vento Levou" tenha ficado
três décadas em cartaz (com as constantes reprises habituais daquela época) e
no imaginário dos amantes do cinema. Os espetáculos cinematográficos atualmente
são lançados e logo retirados de cartaz e esquecidos com muita facilidade.
Emblemático como obra cinematográfica típica da indústria hollywoodiana
da época, cujos sustentáculos estavam em três pilares básicos, o star system, o studio system, e a
divisão dos filmes em gêneros específicos, "…E o Vento Levou" é um filme de autor às avessas, a contrariar em gênero, número e grau, a Política de Autores (Politique des auteurs) formulada
pelos jovens turcos da revista francesa Cahiers du Cinema,
para os quais o verdadeiro criador de um filme era o seu diretor (embora a
admitir também que havia obras nas quais o diretor era apenas administrativo,
mas, para os turcos os melhores eram aqueles que se podiam definir como de
autores). Porque o verdadeiro autor de "…E o Vento Levou" é
o seu produtor supremo David Selznick e seus diretores não passam de meros
diretores administrativos, coordenadores de elenco, diretores de cena.
Adaptação do romance bastante popular de Margaret Mitchell, "…E o Vento Levou" apresenta os estertores da época
esplendorosa do Sul dos Estados Unidos e sua derrocada quando da eclosão da
Guerra de Secessão. Obra essencialmente intimista (idealista), que foge aos
cânones do realismo cinematográfico, tem seu interesse centrado na
espetacularidade e no violento choque de personalidades entre os personagens
vividos por Vivien Leigh, Clark Gable, Olivia de Havilland e Leslie Howard. O
conflito bélico que se instaura, como em todo filme característico do idealismo,
serve apenas como pano de fundo. O centro de tudo é a personagem de Scarlett
O'Hara (Vivien Leigh) e suas ambiguidades em relação aos mistérios do amor e
sua esfuziante personalidade. Pese à acusação de excessiva espetacularização,
não se pode negar que algumas sequências são antológicas e, mesmo com a
tecnologia atual, difíceis de serem vistas atualmente com tal força de impacto,
a exemplo do baile aristocrático e a do incêndio de Atlanta.
Uma rica herdeira sulista, Scarlett O'Hara, apaixona-se por seu primo (o
ator inglês Leslie Howard que viria a morrer em acidente poucos anos depois de
ter participado do filme), mas este dá preferência à sua irmã Melanie (Olivia
de Havilland). Ao estourar a guerra, Scarlett vê-se obrigada a assumir a
direção da família, e é cortejada por Rhett Butler (Clark Gable), comerciante,
e bon vivant, que a salva do incêndio de Atlanta.
Assediada por Rhett (no bom sentido do assédio sem as conotações perversas do
estabelecido pela onda politicamente correta atual), termina por se render a
seus encantos e se casa com ele. O beijo na carroça, quando ela é salva do
incêndio, tendo ao fundo as chamas, que o technicolor de então oferece num tom
vermelho é um assombro, para os padrões da época, entre ela e Rhett, é
antológico, e figura em qualquer livro que se queira abrir sobre cinema. O
caráter rebelde e instável, porém, e sua insistência no amor ao primo, e a
morte de seu filho (acidente num cavalo) terminam por conduzir o matrimônio a
um beco sem saída.
"…E o Vento Levou" é a mais gigantesca
superprodução do cinema americano da primeira fase do sonoro. Mesmo para os
padrões atuais, não se pode imaginar o êxito de seu lançamento com uma multidão
de pessoas diariamente em filas quilométricas nas portas dos cinemas. Um
verdadeiro fenômeno que marcou definitivamente um tempo em que o sistema de
estúdios dava as cartas para o sucesso dos filmes. E, além do mais, "Gone With the Wind" representa bem um estilo de
representação não somente da realidade focada, mas um estilo de cinema que se
fazia no período.
Neste particular, a obra cinematográfica mais representativa, embora
excelentes filmes foram realizados neste magnífico ano de 1939, cristalização
da arte clássica, segundo escreveu André Bazin: "O Morro
dos Ventos Uivantes" (Wuthering Heights), de William Wyler, "No Tempo das Diligências" (Stagecoach), de John Ford, "A Mulher Faz o Homem" (Mr. Smith Goes To Washington), de
Frank Capra, "A Regra do Jogo" (La Règle de Jeu),
de Jean Renoir, "O Mágico de Oz (The Wizard of Oz),
de Victor Fleming, "Jesse James", de Henry King, entre muitos outros.
"…E o Vento Levou" teve vários diretores, entre
eles George Cukor (que filmou quase toda a primeira parte antes da guerra), Sam
Wood, e Victor Fleming (que, afinal, ficou com os créditos). Mas apesar do
controle absoluto e obsessivo de David Selznick, o filme, sempre um trabalho de
equipe, não seria o mesmo sem a contribuição, mesmo que administrativa, dos
diretores citados, e, principalmente, de seu diretor de arte William Cameron
Menzies. Vale ressaltar que entre os roteiristas de "…E o Vento Levou" há contribuições nos diálogos de
William Faulkner e F. Scott Fitzgerald. A atriz negra Hattie McDaniel, que faz
a criada de Scarlett, foi indicada para o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante (e
ganhou), mas não pôde receber o prêmio, porque um negro não podia entrar,
segundo as leis racistas da época, no teatro da entrega dos Oscar.
Para se ter uma idéia, "…E o Vento Levou",
considerado uma fortuna para a época, custou aos cofres da produtora de
Selznick apenas cinco milhões de dólares e rendeu trinta e dois. Atualmente o
salário de uma atriz como Julia Roberts não sai por menos de vinte milhões (de
dólares, de dólares!).
A melhor maneira de se comemorar os 74 anos de "…E o Vento Levou" é através de sua visão. Há DVDs
em profusão nas locadores: simples e em edições de luxo para colecionadores com
ótimos extras.
* André Setaro é crítico de cinema e professor de Comunicação da Universidade
Federal da Bahia (Ufba)
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