Pelo que se tem observado
com as reações à vinda para o país de médicos cubanos, pode-se dizer que o
regime petista se meteu num aranzel cabeludo. As críticas que têm pipocado
contra as medidas governamentais não possuem, verdade seja dita, qualquer tipo
de aversão xenófoba. A xenofobia não é marca distintiva de nossos costumes,
reitere-se. Os atletas de Cuba que praticam o vôlei, por exemplo, são admirados
pelos torcedores dos times onde jogam aqui no Brasil.
Aquilo
que está sendo objeto de polêmica, de fato, é o método, a maneira como os
governos - brasileiro e cubano - estão a tratar da questão. Médicos de outros
países (Portugal, Espanha, Argentina e outros) vêm para o Brasil como resultado
de uma escolha pessoal livre e independente. Iguais a outros tipos de
profissionais, sabem que precisam obedecer à legislação local caso queiram se
estabelecer para ganhar o pão de cada dia. Podem receber até algum benefício
que estimule sua vinda, sem que isso signifique algo reprovável.
O problema atual com os
cubanos é, portanto, a maroteira como sua vinda está sendo tratada. O governo
brasileiro está, sim, realmente, patrocinando um negócio jurídico internacional
com o governo cubano eivado de ilicitude e de ilegitimidade. Com o pretexto de
atender a uma necessidade de serviços de saúde em áreas desassistidas no
Brasil, o regime petista criou um acordo de natureza mercenária que viola
frontalmente o espírito de programas de intercâmbio e de assistência mútua que
sociedades livres e democráticas estabelecem entre si ou com entidades
internacionais.
O ministro Carlos Ayres
Britto, na cerimônia de abertura do I Encontro Nacional pela Erradicação do
Trabalho Escravo, algum tempo atrás, disse claramente que o poder público tem a
obrigação de enfrentar esse crime em prol de uma sociedade livre, justa e
solidária - em sintonia com o previsto na Carta Magna. O ex-presidente do STF
condenou o resquício renitente e teimoso, estrutural, histórico e cultural dos
quase quatro séculos de escravidão e admitiu, inclusive, a contaminação do
Poder Judiciário por meio de interpretações lenientes e frouxas, para não dizer
cúmplices da escravidão.
As decisões do governo
brasileiro, por outro lado, flertam de maneira indecorosa com transgressões que
vão além da dimensão trabalhista. Elas são mais sérias e mais rombudas, estando
capituladas no artigo 149 do Código Penal Brasileiro que reza:
"Reduzir alguém à condição
análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada
exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer
restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com
o empregador ou preposto".
Esta é, pois, uma situação
aberrante em termos históricos e civilizatórios, considerando-se o já
enfadonho, rebarbativo mesmo, marco do Estado Democrático de Direito. A
doutrina e a jurisprudência costumam se referir a casos de violação ao artigo
149 do Código Penal de maneira restritiva, apontando, como sujeitos ativos do
crime, brutais empreiteiros, carvoeiros, fazendeiros e outros proprietários
agrícolas moradores nos fundos rincões do país, herdeiros presumidos das
práticas cruéis de seus ancestrais contra a força de trabalho - a que
subjugavam - constrangendo-a a servi-los compulsoriamente por meio de
incontáveis subterfúgios.
Se aquela gente truculenta
se comporta assim de maneira tão ignóbil, pelo bem da verdade histórica haveria
que se considerar, então, a chance do próprio Estado, na atualidade, agir de
modo similar ao de proprietários privados, quando reduzem outrem à situação
análoga à de trabalhador escravo. Afinal há precedentes. Não era incomum, à
época da escravidão legal, que existisse uma categoria específica de cativos -
denominada "escravos da nação" - assim compreendidos aqueles que eram
propriedade de entes do poder público com o mesmo status de semoventes como
bois, cavalos e muares.
Qual o significado da
expressão "trabalhos forçados" contida logo no início do artigo 149 do Código
Penal? A resposta é indubitável: sua ocorrência fere de morte a liberdade
individual, na medida em que obriga alguém a fazer o que não está obrigado pela
lei. Impedir quem quer que seja de exercer seus direitos deambulatórios, ou de
trabalhar para quem e onde quiser é, sem dúvida, a essência, o cerne da
escravização. Contemporaneamente, situações vexatórias equivalentes foram, ou
são, observadas em países de natureza totalitária sempre sob o aplauso
entusiástico de epígonos do stalinismo, surpreendentemente vivo e atuante nas
hostes do PT e do PC do B.
Nem o fato das vítimas reduzidas
à condição análoga à de escravo - neste Gulag pós-moderno que parece estar se
experimentando no país - receber pecúnia ou salário em pagamento, modifica sua
situação infamante. Não era difícil observar, na tradição escravocrata
brasileira, que os chamados "escravos ou negros de ganho" fossem remunerados
com alguma quantia, o que chegou a possibilitar a muitos cativos acumular o
suficiente para obter a própria alforria.
Medida extrema de fuga
poderia ser tomada pelo cativo, inclusive com trágico apelo à via do suicídio,
ato a que muitos perseguidos e espoliados se viram, se vêem, tentados a aderir,
materializando a maneira última de escapar dos constrangimentos a que são
submetidos. Vejamos o desenrolar dos fatos e os desdobramentos políticos e
sociais que deles certamente derivarão.
Fonte: "Feira Livre", na Coluna de Augusto Nunes
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