Por Marco Antonio Villa
O julgamento do mensalão é a mais
perfeita tradução de como funciona a Justiça brasileira. O recebimento da
denúncia pelo Supremo Tribunal Federal ocorreu em agosto de 2007. Antes, em
julho de 2005, foi aberto o inquérito na Justiça Federal de Minas Gerais. Na
instrução da ação penal 470 foram mais cinco anos. O julgamento já ocupou 57
sessões do STF. Somando o processo e a sentença, o total das páginas chega
próximo a 60 mil. E até hoje não temos a conclusão do julgamento.
Os mais otimistas acreditam que tudo
deve terminar até dezembro e o eventual cumprimento das penas ficaria para
2014. E isto graças à celeridade dada à ação penal pelo presidente Joaquim
Barbosa e que também acumula a relatoria. Ou seja, poderia ser pior, caso não
tivesse ocorrido esta feliz coincidência, além do desejo de Barbosa de terminar
ainda este ano o processo.
A longevidade do julgamento, porém,
permite observar como funciona mal a Justiça. Apesar da atenção nacional, da
cobertura da imprensa e excelente infraestrutura - são milhares de
funcionários, a maioria deles regiamente paga -, o ritmo é lentíssimo.
Tudo é motivo para deixar para a
próxima sessão, que, como virou hábito, vai começar atrasada e com intervalos
longuíssimos. Os ministros falam, falam e dizem pouco ou quase nada que se
possa aproveitar. A linguagem embolada encobre o vazio. O latim de cura de
aldeia é patético.
A discussão "teórica" proposta por
Ricardo Lewandowski sobre o crime de corrupção e qual a legislação a ser
aplicada teve a profundidade de um pires. Mas haja vaidade. Um exemplo é o
ministro Roberto Barroso. Diria um antigo jogador de futebol: ele acabou de
chegar e já quer sentar na janelinha do ônibus. Faz questão de falar sobre
tudo. Adora o som da própria voz.
Se o julgamento permite constatar que
o Judiciário está mais preocupado com o formalismo - não há nada mais
antirrepublicano que o "capinha", o funcionário que empurra a cadeira para o
ministro sentar - do que com a aplicação das leis, é na indústria dos recursos
que a perversidade chega ao cume. É evidente que o advogado tem de defender seu
cliente. Mas há uma clara diferença entre a defesa e a mera procrastinação que
visa, simplesmente, a adiar a conclusão do processo.
É inadmissível que um advogado, como
ocorreu em uma das sessões da semana passada, solicite que o seu cliente seja
julgado em primeira instância pois não teria foro privilegiado. Esta questão
foi discutida três vezes e a Corte, em todas elas, tomou a mesma decisão: que o
processo deveria ser julgado em bloco no STF.
O advogado não sabia? Claro que
sabia. Por que agiu assim? Porque faz parte do jogo - triste jogo da Justiça
brasileira. Quanto mais tempo levar para a efetivação do cumprimento da pena,
melhor.
A sucessão de recursos desmoraliza a
Justiça. Deixou de ser instrumento de defesa do cidadão contra possível
injustiça do Estado. Virou um mecanismo para - como no caso do mensalão - estimular a impunidade. E, se através dos sucessivos recursos, o defensor
conseguir que seu cliente não cumpra a pena, ele acaba - absurdo dos absurdos - sendo uma referência para seus pares, um símbolo de esperteza, como se
Macunaíma tivesse se transformado em patrono dos advogados brasileiros.
É um terreno perigoso, mas não custa
especular até onde vão o direito de defesa - legítimo e parte essencial da
democracia - e a associação entre defensor e cliente. É ético um advogado
elaborar conscientemente uma linha de defesa para encobrir um ato criminoso do
seu cliente e lesivo ao interesse público? É ético receber honorários de um
cliente sabidamente corrupto? É ético participar de um julgamento como advogado
de um réu acusado de ter cometido diversos crimes que envolveram autoridades de
um governo do qual o defensor participou?
A indústria dos recursos acabou
ganhando legitimidade. As diversas corporações que fazem parte do mundo do
Direito não desejam qualquer mudança de fundo na legislação. Esporadicamente
fazem alguma declaração criticando a proliferação dos recursos simplesmente
para "cumprir tabela", pois sabem que, neste ponto, contam com a simpatia da
opinião pública.
Da forma como vigoram no Brasil, os
recursos e a impunidade caminham juntos. E cabe ao Congresso Nacional aprovar
novos códigos que permitam uma tramitação mais rápida dos processos e o efetivo
cumprimento das penas. Caso contrário, continuaremos com a Justiça de
mentirinha que temos - e que desmoraliza a democracia.
O STF ao longo da sua história,
infelizmente, não foi um exemplo de defesa do Estado Democrático de Direito.
Basta recordar o silêncio frente à violência estatal na República Velha, no
Estado Novo ou na ditadura militar. Daí a importância do julgamento do
mensalão. Pode ser uma ruptura com o passado. Demonstrar que o tribunal não é
suscetível às pressões políticas, especialmente aquelas advindas do Executivo.
Que julga de acordo com os autos e não pela importância política dos réus. Quem
repudia a impunidade e a chicana. Que não tem compromisso com os marginais do
poder. Que, enfim, cumpre suas atribuições constitucionais.
Todas estas observações só foram
possíveis graças à transmissão das sessões pela televisão. Foi uma sábia
medida. Ver como funciona a Suprema Corte, acompanhar os debates, as
altercações, polêmicas, pilhérias. A transmissão tem ajudado a explicar o
funcionamento do STF, suas mazelas, seus momentos de encontro com a cidadania,
suas qualidades e fraquezas. É um ensinamento do papel e da importância do
Judiciário.
* Marco Antonio Villa é historiador
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