Por Juliana Mynssen da Fonseca
Cardoso
Há alguns meses eu fiz um plantão em que
chorei. Não contei à ninguém (é nada fácil compartilhar isso numa mídia
social). Eu, cirurgiã-geral, "do trauma", médica
"chatinha", preceptora "bruxa", que carrego no carro o
manual da equipe militar cirúrgica americana que atendia no Afeganistão,
chorei.
Na frente da sala da sutura tinha um paciente
idoso internado. Numa cadeira. Com o soro pendurado na parede num prego
similiar aos que prendemos plantas (diga-se: samambaias). Ao seu lado, seu
filho. Bem vestido. Com fala pausada, calmo e educado. Como eu. Como você. Como
nós.
Perguntava pela possibilidade de internação
do seu pai numa maca, que estava há mais de um dia na cadeira. Ia desmaiar.
Esperou, esperou, e toda vez que abria a portinha da sutura ele estava lá.
Esperando. Como eu. Como você. Como nós.
Teve um momento que ele desmoronou. Se
ajoelhou no chão, começou a chorar, olhou para mim e disse "não é para
mim, é para o meu pai, uma maca". Como eu faria. Como você. Como nós.
Pensei "meudeusdocéu, com todos que
passam aqui, justo eu... Nãoooo..... Porque se chorar eu choro, se falar do seu
pai eu choro, se me der um desafio vou brigar com 5 até tirá-lo daqui".
E saí, chorei, voltei, briguei e o coloquei
numa maca retirada da ala feminina.
Já levei meu pai para fazer exame no meu HU.
O endoscopista quando soube que era meu pai, disse "por que não me falou,
levava no privado, Juliana!" Não precisamos, acredito nas pessoas que
trabalham comigo. Que me ensinaram e ainda ensinam. Confio. Meu irmão precisou
e o levei lá.
Todos os nossos médicos são de hospitais
públicos que conhecemos, e, se não os usamos mais, é porque as instituições
públicas carecem. Carecem e padecem de leitos, aparelhos, materiais e
medicamentos.
Uma vez fiz um risco cirúrgico e colhi sangue
no meu hospital universitário. No consultório de um professor ele me pergunta:
"e você confia?".
"Se confio para os meus pacientes tenho
que confiar para mim."
Eu pratico a medicina. Ela pisa em mim alguns
dias, me machuca, tira o sono, dá rugas, lágrimas, mas eu ainda acredito na
medicina. Me faz melhor. Aprendo, cresço, me torna humana. Se tenho dívidas,
pago-as assim. Faço porque acredito.
Nesses últimos dias de protestos nas ruas e
nas mídias brigamos por um país melhor. Menos corrupto. Transparente. Menos
populista. Com mais qualidade. Com mais macas. Com hospitais melhores, mais
equipamentos e que não faltem medicamentos. Um SUS melhor.
Briguei pelo filho do paciente ajoelhado. Por
todos os meus pacientes. Por mim. Por você. Por nós. O SUS é nosso.
Não tenho palavras para descrever o que penso
da "presidenta" Dilma. (Uma figura que se proclama "a
presidenta" já não merece minha atenção).
Mas hoje, por mim, por você, pelo meu
paciente na cadeira, eu a ouvi.
A ouvi dizendo que escutou "o povo
democrático brasileiro". Que escutou que queremos educação, saúde e
segurança de qualidades. "Qualidade"... Ela disse.
E disse que importará médicos para melhorar a
saúde do Brasil....
Para melhorar a qualidade...?
Sra "presidenta", eu sou uma médica
de qualidade. Meus pais são médicos de qualidade. Meus professores são médicos
de qualidade. Meus amigos de faculdade. Meus colegas de plantão. O médico
brasileiro é de qualidade.
Os seus hospitais é que não são. O seu SUS é
que não tem qualidade. O seu governo é que não tem qualidade.
O dia em que a Sra "presidenta"
abrir uma ficha numa UPA, for internada num Hospital Estadual, pegar um remédio
na fila do SUS e falar que isso é de qualidade, aí conversaremos.
Não cuspa na minha cara, não pise no meu
diploma. Não me culpe da sua incompetência.
Somos quase 400 mil, não nos ofenda. Estou
amanhã de plantão, abra uma ficha, eu te atendo. Não demora, não.
Não faltam médicos, mas não garanto que tenha
onde sentar. Afinal, a cadeira é prioridade dos internados.
Hoje, eu chorei de novo.
Juliana Mynssen da Fonseca Cardoso
é cirurgiã geral no Hospital Estadual Azevedo Lima,
no Rio de Janeiro
Fonte: "Blog do Noblat"
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