Por Lya Luft, na revista "Veja" desta semana:
Da primeira vez em que estive nos Estados Unidos, a trabalho, no começo da década de 80, hospedada com minha tradutora e amiga, comentei com ela e suas filhas adolescentes que estranhava que lá, bairro residencial bastante isolado em Athens, na Geórgia, praticamente no meio de um bosque, nem ao menos trancavam a porta a chave. Minha casa no Brasil tinha grades nas janelas. Uma das meninas me olhou, espantada: "Nossa! Eu teria medo de ficar numa casa gradeada. Ia pensar: de que tenho de me proteger dessa maneira?".
Não sei como andam as coisas por lá. Aqui, estão inimagináveis. Não existe segurança nas ruas, não há bairros tranqüilos nem condomínios ou edifícios à prova de assalto. Quem pode investe em proteção particular, cara, melancólica e também duvidosa. Antigamente, narcotráfico e bandidagem eram coisa remota, aconteciam em outros estados, em grandes cidades. Meus filhos, há trinta e poucos anos, no bairro onde ainda moro aqui no Sul, jogavam bola com a meninada da vila próxima até o escurecer, e ninguém se preocupava. Eram amigos: pobres e remediados, brancos, pretos e pardos, os filhos do verdureiro ou do professor, como os meus. Eram apenas "a turma". Entre outras razões, os movimentos contra a discriminação racial ainda não tinham começado a promover o ódio racial, e a politicagem ainda não fomentava o rancor de classes como se faz agora – pelos piores motivos. Bandos de jovens desempregados, drogados e bandidos não vagavam por nossas ruas, crianças pedintes não rolavam em nossas esquinas, nossa meninada brincava na calçada e as casas não tinham cerca. Os primeiros que botaram cerca ou muro em torno de sua casa, no meu bairro, foram considerados antipáticos. Compramos a nossa já com janelas gradeadas. Plantamos uma sebe florida anos depois, por razões de privacidade. Hoje, eu possivelmente teria cerca, e eletrificada. Com mais grana, até um guarda no portão. Que tristeza.
Vivemos numa Idade Média higienizada e cibernética: os feudos são os edifícios e condomínios fechados, guardas nas cabines, bandidagem rondando. Cada dia mais gente com carros blindados, crianças com motorista que tem curso de direção defensiva, gente armada sempre por perto. Nós que não temos dinheiro para esses recursos andamos mais do que inquietos. Outro dia, o neto de uma amiga foi assaltado. Seu carrinho foi fechado por um carrão (roubado, claro): três homens armados saltaram, revólver na cabeça dele e de seus dois amigos. As vítimas eram estudantes tranqüilos, saudáveis, tipo "família". Os bandidos levaram carro, celulares, carteiras. (A vida, ah, essa lhes deixaram. A gente ainda tem de agradecer?) No almoço do dia seguinte, na casa deles, tensos e tristes comentaram o assunto, e alguém disse: "Bastava um deles ter dobrado um pouco o dedo, apertado o gatilho, e em lugar de almoço em família estaríamos num velório". É verdade. Teria bastado um pequeno movimento de um dedo indicador na noite para que tudo fosse destroçado.
Alguma coisa mudou nessa família, e mais uma vez se acendeu em mim o doloroso alerta: não podemos colocar filhos e netos debaixo de nossa asa protetora. Não há como erguer uma cerca, nem metafórica, de amor e cuidados. Não podemos – nem devemos – tentar impedir que vivam, cresçam, saiam pelo mundo, batalhem suas batalhas, construam sua família. É bom que façam isso. Mas, ao mesmo tempo, ficamos mais vulneráveis diante deste mundo nosso.
Mundo besta: por um lado produz esses jovens que fazem a vida valer mais a pena, por outro lado cria uma sociedade na qual não valemos nada. Quer dizer: às vezes temos um preço. No cenário (e no Senado) brasileiro, neste momento em que escrevo, um homem pode valer 40 bilhões, pode valer a CPMF (que só para os muito bobos é imposto de rico). Entre nós, cidadãos que usamos a canga, puxamos a carroça e pagamos as contas, o valor da vida pode ser uma bala, o mínimo movimento de um dedo no gatilho. É a total banalização da morte, que se tornou um mero incidente cotidiano.
E ninguém faz nada?
Da primeira vez em que estive nos Estados Unidos, a trabalho, no começo da década de 80, hospedada com minha tradutora e amiga, comentei com ela e suas filhas adolescentes que estranhava que lá, bairro residencial bastante isolado em Athens, na Geórgia, praticamente no meio de um bosque, nem ao menos trancavam a porta a chave. Minha casa no Brasil tinha grades nas janelas. Uma das meninas me olhou, espantada: "Nossa! Eu teria medo de ficar numa casa gradeada. Ia pensar: de que tenho de me proteger dessa maneira?".
Não sei como andam as coisas por lá. Aqui, estão inimagináveis. Não existe segurança nas ruas, não há bairros tranqüilos nem condomínios ou edifícios à prova de assalto. Quem pode investe em proteção particular, cara, melancólica e também duvidosa. Antigamente, narcotráfico e bandidagem eram coisa remota, aconteciam em outros estados, em grandes cidades. Meus filhos, há trinta e poucos anos, no bairro onde ainda moro aqui no Sul, jogavam bola com a meninada da vila próxima até o escurecer, e ninguém se preocupava. Eram amigos: pobres e remediados, brancos, pretos e pardos, os filhos do verdureiro ou do professor, como os meus. Eram apenas "a turma". Entre outras razões, os movimentos contra a discriminação racial ainda não tinham começado a promover o ódio racial, e a politicagem ainda não fomentava o rancor de classes como se faz agora – pelos piores motivos. Bandos de jovens desempregados, drogados e bandidos não vagavam por nossas ruas, crianças pedintes não rolavam em nossas esquinas, nossa meninada brincava na calçada e as casas não tinham cerca. Os primeiros que botaram cerca ou muro em torno de sua casa, no meu bairro, foram considerados antipáticos. Compramos a nossa já com janelas gradeadas. Plantamos uma sebe florida anos depois, por razões de privacidade. Hoje, eu possivelmente teria cerca, e eletrificada. Com mais grana, até um guarda no portão. Que tristeza.
Vivemos numa Idade Média higienizada e cibernética: os feudos são os edifícios e condomínios fechados, guardas nas cabines, bandidagem rondando. Cada dia mais gente com carros blindados, crianças com motorista que tem curso de direção defensiva, gente armada sempre por perto. Nós que não temos dinheiro para esses recursos andamos mais do que inquietos. Outro dia, o neto de uma amiga foi assaltado. Seu carrinho foi fechado por um carrão (roubado, claro): três homens armados saltaram, revólver na cabeça dele e de seus dois amigos. As vítimas eram estudantes tranqüilos, saudáveis, tipo "família". Os bandidos levaram carro, celulares, carteiras. (A vida, ah, essa lhes deixaram. A gente ainda tem de agradecer?) No almoço do dia seguinte, na casa deles, tensos e tristes comentaram o assunto, e alguém disse: "Bastava um deles ter dobrado um pouco o dedo, apertado o gatilho, e em lugar de almoço em família estaríamos num velório". É verdade. Teria bastado um pequeno movimento de um dedo indicador na noite para que tudo fosse destroçado.
Alguma coisa mudou nessa família, e mais uma vez se acendeu em mim o doloroso alerta: não podemos colocar filhos e netos debaixo de nossa asa protetora. Não há como erguer uma cerca, nem metafórica, de amor e cuidados. Não podemos – nem devemos – tentar impedir que vivam, cresçam, saiam pelo mundo, batalhem suas batalhas, construam sua família. É bom que façam isso. Mas, ao mesmo tempo, ficamos mais vulneráveis diante deste mundo nosso.
Mundo besta: por um lado produz esses jovens que fazem a vida valer mais a pena, por outro lado cria uma sociedade na qual não valemos nada. Quer dizer: às vezes temos um preço. No cenário (e no Senado) brasileiro, neste momento em que escrevo, um homem pode valer 40 bilhões, pode valer a CPMF (que só para os muito bobos é imposto de rico). Entre nós, cidadãos que usamos a canga, puxamos a carroça e pagamos as contas, o valor da vida pode ser uma bala, o mínimo movimento de um dedo no gatilho. É a total banalização da morte, que se tornou um mero incidente cotidiano.
E ninguém faz nada?
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