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segunda-feira, 1 de outubro de 2007

O Supremo e os infiéis

Por Denis Lerrer Rosenfield (*)

O Supremo soube pôr-se em diapasão com a sociedade ao acatar a denúncia do procurador-geral da República que fez os envolvidos na operação “mensalão” se tornarem réus, devendo responder por seus atos. Dentro da lógica de impunidade reinante, tal decisão foi como um sopro vital num país em que o crime e a corrupção vieram a ser chamados de “erros”. Erro maior não poderia ter sido cometido contra os cidadãos que, pagando uma elevada carga tributária, ainda têm de ouvir despropósitos desse tipo.
A Câmara de Deputados já estava com sua imagem extremamente desgastada perante a opinião pública por ter escancarado um balcão de negócios onde a “coisa pública” foi tratada apenas como a “coisa de alguns”, que podiam dela dispor como se fosse algo privado, algo que poderia ser simplesmente comprado e vendido. Uma expressão particularmente visível de tal situação consistiu na troca de parlamentares das legendas pelas quais foram eleitos, como se o sistema partidário fosse apenas um objeto de troca. Tais deputados e aqueles que os apadrinharam e incentivaram cometeram um enorme dano à democracia brasileira, pois partidos são instâncias da representação política, sem as quais as portas ficam escancaradas para projetos políticos autoritários. Uma Câmara de Deputados enfraquecida é o sintoma de uma democracia doente.
O Senado havia conseguido passar incólume desse processo de desprestigiamento do Poder Legislativo. Episódios anteriores, como o da quebra do sigilo do painel eletrônico, se traduziram pela renúncia de senadores que temiam por seus mandatos. Retrospectivamente, parece brincadeira de moleque. Até então, era considerado como uma Casa sênior, com membros cuja reputação era, em linhas gerais, bem aceita pela sociedade, que nela se sentia representada. Com o “affaire” Renan Calheiros, viu-se um processo despudorado de pressões, com senadores - alguns, suplentes - fazendo um papel lamentável, como se a dignidade e a correção fossem palavras sem nenhum sentido. Numa espécie de vale-tudo, até um bordel seria considerado lugar de recato. O Senado teve uma oportunidade única de se colocar no nível do Supremo, consoante com a opinião pública deste país, no comum objetivo de mostrar em funcionamento uma instituição verdadeiramente republicana. O que se viu, no entanto, foi esse Poder Legislativo se equiparando ao que de pior já tinha feito a Câmara dos Deputados. Os senadores, salvo as exceções, não souberam se nivelar ao momento histórico. Perdeu o Senado.
O projeto governamental de aprovação, a todo custo, da CPMF, pondo-se de costas para a sociedade, está também sendo objeto de intensas “negociações”, em que cargos e emendas parecem ser comprados e vendidos. O mais espantoso, no entanto, consiste em que se abriu novamente o período de um obsceno troca-troca partidário, como se os partidos fossem apenas instrumentos dos parlamentares, que poderiam deles prescindir segundo as suas mais distintas formas de conveniência. No afã do Palácio do Planalto de aprovar essa contribuição, os senadores são agora incentivados e motivados a mudar de partido, pelos mesmos atores que corromperam a representatividade da Câmara. A condição, evidente, é a de que votem novamente a favor do governo. As convicções desaparecem sem deixar rastros, como se os discursos de ontem fossem palavras vazias, moedas de troca elas também.
A posição desses parlamentares não deixa, porém, de surpreender, apesar de que, hoje, nada pareça causar impacto nesta lógica reinante do vale-tudo. Na verdade, em março deste ano, o Superior Tribunal Eleitoral (TSE) julgou que o mandato dos parlamentares não pertence aos indivíduos, mas aos partidos. A fidelidade partidária seria, portanto, uma regra que deveria ser, por todos, seguida, sob pena de perda do mandato. O TSE extraiu uma conseqüência, ela, sim, lógica, de um sistema democrático de governo, apoiado num sistema de representação política que tem nos partidos um de seus pilares de sustentação. Se os mandatos fossem dos parlamentares, não haveria por que existirem partidos políticos. Os candidatos se apresentariam por si mesmos, apresentando tão-somente os seus currículos e, quiçá, seus apoios.
Ora, deputados e senadores não parecem minimamente inibidos por essa decisão do TSE, continuando num troca-troca que só tende a debilitar ainda mais o Poder Legislativo. Para guardar as aparências o governo não cessa de proclamar que tenciona fazer a reforma política, enquanto o PT advoga por uma Assembléia Constituinte exclusiva para essa mesma reforma. Mera encenação, pois eles são os maiores beneficiários da situação atual, criada por eles mesmos, a despeito de tudo o que diziam quando esse partido se encontrava na oposição. A submissão do Poder Legislativo corresponde plenamente aos seus objetivos, tanto no que diz respeito à aprovação de seus projetos específicos quanto ao fortalecimento de seu poder propriamente dito. Alguns membros do PT chegaram a propor, inclusive, a supressão do Senado enquanto instituição, como se ele fosse um mero empecilho que deveria ser eliminado. O que viria depois?
O Supremo defronta-se, agora, com uma outra grande questão. Deverá ele confirmar ou não a decisão do TSE, no dia 3 de outubro, num julgamento que pode mudar a cara deste país, que está cada vez mais feia, por obra e graça dos seus representantes, que estão em dissintonia com a sociedade. Se o Supremo validar a fidelidade partidária, ele continuará fiel ao espírito que presidiu a sua decisão relativa à culpabilidade dos envolvidos no mensalão. Ele se colocará, então, em uníssono com uma sociedade que clama por justiça e pela responsabilização dos que desrespeitam as regras e leis, tendo pouco apreço pela coisa pública, que deveria, aliás, ser a coisa de todos nós. Se não seguir o TSE, tenderá a cair na vala comum.

* Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS

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