Por J.
R. Guzzo
A elite brasileira é acusada todo santo dia
pelo ex-presidente Lula de ser a inimiga número 1 do Brasil - uma espécie de
mistura da saúva com as dez pragas do Egito, e culpada direta por tudo o que já
aconteceu, acontece e vai acontecer de ruim neste país. É possível até que
tenha razão, pois se há alguma coisa acima de qualquer discussão é a inépcia, a
ignorância e a devastadora compulsão por ganhar dinheiro do Erário que inspiram
há 500 anos, inclusive os últimos dez e meio, a conduta de quem manda no país,
dentro e fora do governo.
O diabo do problema é que jamais se soube
exatamente quem é a elite que faz a desgraça do Brasil. Seria indispensável
saber: sabendo-se quem é a elite, ela poderia ser eliminada, como a febre
amarela, e tudo estaria resolvido. Mas continuamos não sabendo, porque Lula e o
PT não contam. Falam do pecado, mas não falam dos pecadores; até hoje o
ex-presidente conseguiu a mágica de fazer discursos cada vez mais enfurecidos
contra a elite, sem jamais citar, uma vez que fosse, o nome, sobrenome,
endereço e CPF de um único de seus integrantes em carne e osso. Aí fica
difícil.
Mas a vida é assim mesmo, rica em perguntas e
pobre em respostas; a única saída é partir atrás delas. Na tarefa de descobrir
quem é a elite brasileira, seria razoável começar por uma indagação que permite
a utilização de números: as elites seriam, como Lula e o PT frequentemente dão
a entender, os que votam contra eles nas eleições?
Não pode ser. Na última vez em que foi
possível medir isso com precisão, no segundo turno das eleições presidenciais
de 2010, cerca de 80 milhões de brasileiros não quiseram votar na candidata de
Lula, Dilma Rousseff: num eleitorado total pouco abaixo dos 136 milhões de
pessoas, menos de 56 milhões votaram nela. É gente que não acaba mais. Nenhum
país do mundo, por mais poderoso que seja, tem uma elite com 80 milhões de
indivíduos. Fica então eliminada, logo de cara, a hipótese de os inimigos da
pátria serem os brasileiros que não votam no PT.
As elites seriam os ricos, talvez? De novo,
não faz sentido: os ricos do Brasil não têm o menor motivo para se queixar de
Lula, dos seus oito anos de governo ou da atuação de sua sucessora. Ao
contrário, nunca ganharam tanto dinheiro como nos últimos dez anos, segundo diz
o próprio Lula. Ninguém foi expropriado sequer em 1 centavo, ou perdeu
patrimônio, ou ficou mais pobre em consequência de qualquer ato direto do
governo.
Os empresários vivem encantados, na vida
real, com o petismo; um dos seus maiores orgulhos é serem "chamados a Brasília"
ou alcançarem a graça máxima de uma convocação da presidente em pessoa. No puro
campo dos números, também aqui, não dá para entender como os ricos possam ser a
elite tão amaldiçoada por Lula e seus devotos.
De 2003 para cá, o número de milionários
brasileiros (gente que tem pelo menos 2 milhões de reais, além do valor de sua
residência) só aumentou. Na verdade, segundo estimativas do consórcio Merrill Lynch
Capgemini, apoiado pelo Royal Bank of Canada e tido como o grande perito
mundial na área, essa gente vem crescendo cada vez mais rápido. Pelos seus
cálculos, surgem dezenove novos milionários por dia no Brasil, o que dá quase
um por hora, ou cerca de 7 000 por ano; em 2011, o último período medido, o
Brasil foi o país que teve o maior crescimento de HNWIs - no dialeto dos
pesquisadores, "High Net Worth Individuais", ou "milionários".
O resultado é que há hoje no Brasil 170 000
HNWIs - os 156 000 que havia no levantamento de 2011 mais os 14 000 que vieram
se somar a eles, dentro da tal conta dos dezenove milionários a mais por dia.
Não dá para entender bem essa história. O
número de milionários brasileiros, após dez anos de governo popular, não
deveria estar diminuindo, em vez de aumentar? Deveria, mas não foi o que
aconteceu. A sempre citada frota de helicópteros de São Paulo, com 420 aparelhos, é a
segunda maior do mundo; no Brasil já são quase 2000, alugados por até 3 000
reais a hora.
Os 800 000 brasileiros, ou pouco mais, que
estiveram em Nova York no ano passado foram os turistas estrangeiros que mais
gastaram ali: quase 2 bilhões de dólares. Na soma total de visitantes, só
ficaram abaixo de canadenses e ingleses - e seu número, hoje, é dez vezes maior
do que era dez anos atrás, início da era Lula.
O eixo formado pela Avenida Europa, em São
Paulo, é um feirão de carros Maserati, Lamborghini, Ferrari, Aston Martin,
Rolls-Royce, Bentley, e por aí afora. Então não podem ser os ricos os cidadãos
que formam a elite brasileira - se fossem, estariam sendo combatidos dia e
noite, em vez de viverem nesse clima de refrigério, luz e paz.
Um outro complicador são as ligações de Lula
com a nossa vasta armada de HNWIs, como diriam os rapazes da Merrill Lynch. É
um mistério. Como ele consegue, ao mesmo tempo, ser o generalíssimo da guerra
contra as elites e ter tantos amigos do peito entre os mais óbvios arquiduques
dessa mesmíssima elite? Ou será que bilionários e outros potentados deixam de
ser da elite e recebem automaticamente uma carteirinha de “homem do povo”
quando viram amigos do ex-presidente?
Para ficar num exemplo bem fácil de entender,
veja-se o caso do ex-governador de Mato Grosso Blairo Maggi, uma das estrelas
do círculo de amizades políticas de Lula. O homem é o maior produtor individual
de soja do mundo, e a extensão das suas terras o qualifica como o suprassumo do "latifundiário" brasileiro. É detentor, também, do título de "Motosserra de
Ouro", dado anos atrás pelo Greenpeace - grupo extremista e frequentemente
estúpido, mas que ainda faz a cabeça de muita gente boa pelo mundo afora.
É claro que não há nada de errado com Blairo:
junto com seu pai, André, fundador da empresa hoje chamada Amaggi, é um dos
heróis do progresso do Brasil Central e da transformação do país em potência
agrícola mundial. Mas, se Blairo Maggi não é elite em estado puro, o que seria?
Um pilar das massas trabalhadoras do Brasil? Lula anda de mãos dadas com
Marcelo Odebrecht, presidente de uma das maiores empreiteiras de obras do
Brasil e do vasto complexo industrial que crescerem torno dela.
Ainda há pouco foi fotografado em companhia
do inevitável Eike Batista, cuja fortuna acaba de desabar para meros 10 bilhões
de dólares, numa visita a um desses seus empreendimentos que nunca decolam; foi
seu advogado, logo em seguida, para conseguir-lhe um ajutório do governo. É um
fato inseparável de sua biografia, desde o ano passado, o beija-mão que fez a
Paulo Maluf, hoje um aliado político com direito a pedir cargos no governo -
assim como Maggi, que ainda recentemente foi cotado para ser nada menos, que o
ministro da Agricultura de Dilma.
Dize-me com quem andas e eu te direi quem
andas e te direi quem és, ensina o provérbio. Talvez não dê, só por aí, para
saber quem é realmente Lula. Mas, com certeza, está bem claro com quem ele
anda.
As classes que Lula e o PT descrevem a "elite
brasileira" não são suas amigas só de conversa - estão sempre prontas para
abrir o bolso e encher de dinheiro a companheirada. Nas últimas eleições
presidenciais, presentearam a candidata oficial Dilma Rousseff quase 160
milhões de reais - mais do que deram a todos os outros candidatos somados. Há
de tudo nesses amigos dos amigos: empreiteiros de obras, é claro, banqueiros de
primeira, frigoríficos empenhados até a alma no BNDES, siderúrgicas, fábricas
de tecidos, indústrias metalúrgicas, mineradoras. É o que a imprensa gosta de
chamar de "pesos-pesados do PIB".
Ninguém, nessa turma, faz mais bonito que as
empreiteiras, que dependem do Tesouro Nacional como nós dependemos do ar. Foram
as maiores doadoras privadas às eleições municipais do ano passado: torraram
ali quase 200 milhões de reais, e o PT foi o partido que mais recebeu. Ficou
com cerca de 30% da bolada distribuída pelas quatro maiores empreiteiras do
país, e junto com seu grande sócio da "base aliada", o PMDB, raspou metade do
dinheiro colocado nesse tacho.
Todo mundo sabe quem são: Andrade Gutierrez,
Queiroz Galvão, OAS e Camargo Corrêa. Mas esses nomes não resolvem o enigma que
continua a ocultar a identidade dos membros da elite. Com certeza, nenhum dos
quatro citados acima pertence a ela, já que dão tanto dinheiro assim ao
ex-presidente, seu partido e seus candidatos. Devem ser, ao contrário, a
vanguarda classes populares.
Restariam como membros da elite, enfim "inconformados" com o fato de que "um operário chegou à Presidência" ou que a "classe melhorou de vida". Mais uma vez, não dá para levar a sério. Por que
raios essa gente toda está inconformada, se não perdeu nada com isso? Qual
diferença prática lhes fez a eleição de presidente de origem operária, ou por
que sofreriam vendo um trabalhador viajar de avião?
Num país com 190 milhões de habitantes, é
óbvio há muita gente que detesta o ex-presidente, ou simplesmente não gosta
dele. E daí? Que lei os obriga a gostar? Acontece com qualquer grande nome da
política, em qualquer lugar do mundo. Ainda outro dia, milhares de pessoas
foram às ruas de de Londres para festejar alegremente a morte da ex-líder
britânica Margaret Thatcher - que já não estava mais no governo havia 23 anos.
É a vida.
Por que Lula e seus crentes não se conformam
com isso e param de encher a paciência dos de outros com sua choradeira sem
fim? O resumo dessa ópera é uma palavra só: hipocrisia. Lula bate tanto assim
na "elite" para esconder o fato de que ele é hoje, na vida real, o rei da elite
brasileira. O ex-presidente diz o tempo todo que saiu do povo. De fato, saiu -
mas depois que saiu não voltou nunca mais. Falemos sério: ninguém consegue
viver todos os dias como rico, viajar como rico, tratar-se em hospital de rico,
ganhar como rico (200 000 reais por palestra, e já houve pagamentos maiores),
comer e beber como rico, hospedar-se em hotel de rico e, com tudo isso, querer
que os outros acreditem que não é rico.
Lula exige jato particular para ir às suas conferências
e Johnnie Walker Rótulo Azul no cardápio de bordo. Quando tem problemas de
saúde, interna-se no Hospital Sírio-Libanês de São Paulo, um dos mais caros do
mundo. Sempre chega ali de helicóptero. Vive cercado por um regimento de
seguranças que só o típico magnata brasileiro costuma ter.
O ex-presidente sempre comenta que só falam
dessas coisas porque "não admitem" que um "operário" possa desfrutar delas. Mas
onde está o operário nisso tudo? É como se o banqueiro Amador Aguiar, que foi
operário numa gráfica do interior de São Paulo e ali perdeu, exatamente como
Lula, um dos dedos num acidente com a máquina que operava, continuasse dizendo,
sentado na cadeira de presidente do Bradesco, que era um trabalhador manual.
Lula não trabalha, não no sentido que a
palavra "trabalho" tem para o brasileiro comum, desde os 29 anos de idade,
quando virou dirigente sindical e ganhou o direito legal de não comparecer mais
ao serviço. Está a caminho de completar 68 e, depois que passou a fazer
política em tempo integral, nunca mais tomou um ônibus, fez uma fila ou ficou
sem dinheiro no fim do mês. Melhor para ele, é claro. Mas a vida que leva é um
igualzinha à de qualquer cidadão da elite. O centro da questão está aí, e só
aí. Todo o resto é puro conto do vigário.
Fonte:
Revista "Veja"
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