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quinta-feira, 28 de maio de 2009

Uma visita pedagógica a Canudos

Por Fernando Munaretto, outono de MMIX. a.D.

A aurora da manhã de 23 de maio passado nos encontrou despertos, e um primeiro olhar para o céu nos encheu de alento, pois depois de dias de chuva torrencial, pudemos ver Júpiter próximo ao zênite, entre as estrelas do Aquário. Nosso grupo, liderado pelo professor de geografia Bruno Borges, era formado por 20 universitários do curso de Serviços Sociais da FAN, o motorista Almir e o palestrante convidado, Fernando Munaretto. Enquanto nos reunimos, em frente à sede da Faculdade, pudemos ainda observar Marte, o Senhor da Guerra no politeísmo greco-romano, com seu brilho rubro contrastando os primeiros tons de azul do dia que nascia. Logo acima de Marte, Vênus, a Deusa do Amor, ofuscava-o, como um farol erguido sobre o crepúsculo matutino. Com o grupo todo reunido, partimos rumo a Canudos, no momento em que a Lua ascendia sobre o oriente, em conjunção com o Sol, entre as Plêiades e a estrela Alfa do Touro.
O início auspicioso foi apenas o prelúdio de um passeio que iria marcar de maneira indelével a todos os integrantes daquela expedição a Canudos. Às dez horas da manhã, após uma viagem tranqüila, chegamos à pequena cidade, e seguimos direto para o Memorial Antônio Conselheiro. Trata-se de uma ampla área pavimentada, no alto de um elevado proeminente onde se ergue uma capela. Desde ali, uma escadaria conduz a um mirante coberto, construído no ponto mais alto do promontório, donde se tem uma linda vista panorâmica da belíssima geografia de Canudos, e onde se eleva uma grande estátua do Conselheiro, com mais de quatro metros de altura. Nesta estátua, Antônio Conselheiro foi reproduzido vestindo sua tradicional túnica azul, que era de brim americano, usando sandálias, cajado em punho e a face voltada para a nova Canudos. Devido a sua altura, a estátua oscila com o vento forte, constante na região, dando alguma dinâmica à figura, o que pode causar espanto em um observador desavisado. Ali, no mirante, fizemos uma preleção do assunto, com destaque para o comentário do motorista Almir. Almir, ex-soldado do Exército Brasileiro, contou-nos que em 1996 havia estado em Canudos, em missão do Exército, que na época deslocou para a região mais de 100 soldados, com o objetivo de realizar benfeitorias na cidade, uma vez que no ano seguinte se comemorariam os 100 anos desde o fim da Guerra de Canudos.
Seguimos então para o Museu Memorial Antônio Conselheiro, na entrada da cidade. Reaberto recentemente, é um lugar agradável e arejado, possui objetos originais do tempo da guerra, um interessante acervo fotográfico em exposição, livros e dvd's para consulta e elementos cenográficos da super produção do cinema nacional, "A Guerra de Canudos", de Sérgio Rezende. Ali estava havendo um encontro de entidades governamentais e movimentos culturais, com o apoio da Uneb, no intuito de debater assuntos ligados aos interesses de Canudos. Uma chuva torrencial nos encontrou ali abrigados, depois seguimos para a casa de dona Joselina, que nos aguardava com um almoço gostoso, onde não poderia faltar a típica carne de bode.
Logo após o almoço, prontamente seguimos para o Parque Estadual de Canudos, localizado a cinco quilômetros da atual Canudos. Em 1893, quando a República tinha apenas quatro anos, o lugar era uma fazenda arruinada, às margens do rio Vaza Barris, onde haviam algumas casas e moradores remanescentes. Tinha este nome por ali abundar uma planta cujo caule era usado como canudo para cachimbos de pito, justamente por isso chamada de Canudos de Pito. Foi quando o já famoso peregrino Antônio Vicente Mendes Maciel, Conselheiro, no dito popular, decidiu-se ali se estabelecer com seus seguidores, fundando a cidade que ele batizou com o nome de Belo Monte. Belo Monte prosperou e cresceu de maneira lancinante, alcançando, talvez, 25.000 habitantes. Esta estimativa foi feita pelo Exército ao início do que ficou conhecida como a 4º Expedição, em 1897, e se estiver próxima da realidade, coloca a então chamada Belo Monte, entre as aglomerações urbanas mais populosas da Bahia na época, só ficando atrás, neste caso, de Salvador, que então contava cerca de 180 mil habitantes.
Dominando geograficamente o arraial de Belo Monte, estava o Morro da Favela. A favela é uma leguminosa, comum em Canudos, que chama muita atenção pelas características peculiares de sua folha; para as tropas que vinham de Monte Santo, o Morro da Favela era o ponto mais estratégico para o assédio ao arraial. Dali os soldados, ao voltarem para o Rio de Janeiro, então capital federal, levaram o nome que usariam ironicamente para designar as novas habitações que iam surgindo nas encostas da capital. O Morro da Favela, em Canudos, foi a casa das tropas federais naquele ano, de abril a novembro, e ali os soldados viviam em barracas de campanha ou barracos precários feitos com a vegetação disponível no local.
O Morro da Favela foi justamente o cenário escolhido para nossa palestra. De onde outrora se via todo o arraial, agora vislumbrávamos um lindo visual do açude do Cocorobó, com a serra da Canabrava ao fundo. Com a construção da represa, Belo Monte, destruída a ferro e fogo no passado, foi inundada com as águas de março de 1969, em plena ditadura militar. As lascas de talcoxisto citadas por Euclides da Cunha em "Os Sertões", refratando a incidência vespertina da luz, espalhavam os raios de sol como se houvessem deitado purpurina sobre a terra vermelha, e o céu se abriu num lindo azul. De repente, Almir, o motorista e ex-soldado, encontrou um cartucho deflagrado de fuzil. Seu aspecto era bastante antigo, como os que vimos no museu.
A palestra transcorreu bem, contextualizamos os personagens e a época dentro do que acontecia no cenário nacional e internacional. O que pensavam e diziam intelectuais da época, como os poetas Olavo Bilac e Machado de Assis, ou o senador Rui Barbosa; abordamos aspectos geográficos e culturais, importantes na compreensão das derrotas militares anteriores à tomada de Belo Monte pela 4ª Expedição; o extermínio de centenas de prisioneiros e o pós-guerra. Analisamos as fotos da campanha, tiradas pelo fotógrafo Flávio de Barros, em uma apresentação de power point, e por fim fizemos a leitura de trechos escolhidos de dois dos mais importantes livros a respeito da guerra: "Os Sertões", de Euclides da Cunha, que é a maior referência em nível literário sobre o assunto, e "O Histórico e Relatório do Comitê Patriótico do Estado da Bahia", redigido por Lélis Piedade, que é um dos registros documentais mais ricos sobre o teatro da guerra, contendo descrições de dezenas de testemunhas oculares da época. Também, nosso grupo decidiu iniciar um movimento, a princípio na forma de abaixo assinado, no sentido de fazer voltar à região o meteorito de Bendegó, o maior já encontrado no Brasil e transladado para o Rio de Janeiro por ordem do imperador e astrônomo D. Pedro II, bem como documentos e objetos relativos e retirados do sítio histórico da guerra. Esta iniciativa vai de encontro a idéia da promoção de Canudos como destino turístico educacional e relevante sítio histórico, fomentando a economia local e agregando o devido valor à história nacional.
Após a palestra, nosso grupo, consciente da possível importância histórica que representava o cartucho achado, especialmente por ter sido encontrado em pleno sítio histórico e arqueológico, fez questão de voltar até o Museu, na cidade, para registrar o achado e doá-lo. No Museu, nosso cartucho foi identificado como original da guerra, restando dúvidas se se tratava de um cartucho de um rifle Comblain (uma arma xixilada), ou de um Manlicher (este sim, um clavinote de talento)*.
Assim, registramos o fato no livro de registro de visitas do Museu, e entregamos o cartucho deflagrado ao seu diretor, Sr. Isaílton, que, por fim, elogiou a atitude e a consciência do grupo.
O ocaso do Sol já nos encontrou em caminho de casa; chegamos à sede da Faculdade antes de 21 horas. Estávamos todos bastante cansados, mas muito felizes pela intensa experiência. Em nossa bagagem trazíamos uma indelével lembrança daquele dia maravilhoso, em que sentamo-nos ao alto do legendário Morro da Favela, para repensar-mos 112 anos de história.
Fernando Munaretto é astrônomo amador, da Astronomia na Escola - Mil Produções

* Ver “Nova faze da luta: Outra criança”, em "Os Sertões", de Euclides da Cunha.

2 comentários:

Fernando Minaretto disse...

Olá Dimas,
Tudo bem?
Espero que sim. Escrevo porque neste sábado passado, estive acompanhando uma turma de universitários de Feira em viagem a Canudos.
O resultado não poderia ser melhor, e sobre a viagem escrevi um texto, que segue anexo. Imaginei que se achar apropriado, poderíamos publicá-lo em seu blog, agregando a ele algumas fotos da atividade.
Este ano se completam 100 anos da morte de Euclides da Cunha, e este texto poderia ser o primeiro de uma pequena série, ou algo assim, que eu me proponho, na qualidade de estudioso do assunto, a escrever.
Caso lhe pareça interessante, entre em contato.
Desde já agradeço sua atenção.
Forte abraço,
Fernando.

Rui Aragão disse...

Eu leio o Blog Demais!
Mas, moro em Salvador!
Abraços,
Rui Aragão