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No Domingo de Páscoa

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sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Lucas da Feira: a verdade sobre o salteador sangrento

Estou de posse do livro "Municípios da Bahia", escrito em 1907 por Guimarães Cova, que foi delegado nesta cidade no final do século XIX e inicio do século XX. Trata sobre Feira de Santana e relata a respeito de Lucas da Feira - são 14 páginas. Material cedido por Carlos Brito, da Fundação Senhor dos Passos, e secretário de Planejamento.
Diz o autor: "Se Roma mandasse apagar de seus annaes a mínima narração dos factos que praticaram Augusto, Nero, Commodo, Heliogabalo e Tibério naquele período de decadencia moral da raça romana, a história da grande pátria de Dante não estaria completa.
É uma página negra, não há duvida, a que descreve a vida dissoluta daqueles imperadores degenerados; no entanto, é uma página dessa mesma história, que segundo a opinião do Bispo Estromaia, "dela não se apagará uma só letra, mesmo caindo-lhe em cima todos os oceanos do mundo".
Nas mesmas circunstancias consideramos a história do rico município feirense.
Não se apagará o borrão da vida de Lucas, o salteador, sem que não fique uma grande falha na história de Feira,
Demais, ella se afastaria da norma que traçamos, porque só conhecemos, unicamente, como inspiradoras, as injunções da verdade para narrarmos desapaixonadamente a vida dos bons e dos maus, no presente livro, que é um fragmento de história e uma migalha de geografia.
Feitas essas explicações, comecemos a narração dos factos principaes da vida de Lucas e de sua quadrilha."
A grafia está conforme o original e em vermelho, como o sangue que ele derramou:
A 18 de Outubro de 1807, nasceu Lucas Evangelista, na fazenda "Sacco do Limão", do município da Feira de Sant'Anna.
Produziram o temível facínora os africanos Ignácio e Maria.
Captivo de nascimento, Lucas pertenceu, a princípio, a D. Anna Pereira do Lage, e por fallecimento desta senhora passou ao domínio do Padre José Alves Franco, vindo mais tarde a caber, em nova partilha, ao pae deste sacerdote, Alferos José Alves Franco.
Ao tempo em que se deu o traspasse do maldicto escravo ao novo senhorio, elle já havia fugido para as mattas da Feira, mais ou menos em meiados de 1828.
Uma vez no goso daquella conquista de liberdade, a índole perversa do bandido entrou, desde logo, em cogitações diabólicas de que resultou a organisação da célebre quadrilha de salteadores, da qual faziam parte os escravos também fugidos, de nomes: Flaviano, Nicolau, Bernardino, Januário, José e Joaquim.
Inspirada nos sentimentos sanguíneos do bandido que a chefiava, essa malta de terríveis assassinos e ladrões commetteu, livremente, toda sorte de crimes nas estradas do famoso município, até o dia 28 de Janeiro de 1848, data da prisão do célebre salteador chefe da quadrilha.
Para que o leitor fique conhecendo a série de crimes praticados por Lucas e seus cúmplices, esses bandidos que trouxeram, por 20 annos, a população da Feira em constante sobresalto, vamos transcrever o interrogatório a que foi submettido no tribunal do jury o chefe desses miseráveis.
O Juiz de Direito da Comarca e Presidente do julgamento era o Dr. Innocencio Marques de Araújo Góes que fez do seguinte modo o interrogatório ao réu:
- Perguntado o seu nome, naturalidade, edade e profissão?
- Respondeu chamar-se Lucas, ter sido escravo do fallecido Padre José Alves, nascido na fazenda do "Sacco do Limão", frequezia de São José maior de 35 annos e que era empregado no serviço da lavoura e carpina.
- Perguntou-lhe se sabe o motivo por eu foi preso e o que vem fazer neste tribunal?
- Respondeu que tendo fugido da companhia de seu senhor há quase dezoito annos e commettido em todo esse tempo algumas acções más, pelo que tem sido processado pela Justiça, pensa ter sido preso para dar contas do seu procedimento e julgado como merece.
- Perguntou em que empregava-se durante tanto tempo que viveu nas mattas, como sustentava-se e obtinha aquillo de que carecia?
- Respondeu que até certo tempo matava seus bichinhos para sustentar-se, e pedia algumas coisas que precisava a pessoas de seu conhecimento e amisade, mas que passando a ser perseguido pela Justiça, vendo-se desesperado, como ainda se acha, começou a offender e fazer mal ao povo.
- Perguntado quaes os conhecidos e amigos que lhe devam objectos que elle pedia?
- Respondeu que não tinha empenho em declarar nomes, que por estar perdido não queria perder outros christãos que lhe haviam feito benefícios.
- Perguntado se esses amigos e conhecidos a que se refere lhe forneciam também algumas porções de polvora e de chumbo e algumas armas?
- Respondeu que há mais de quatro annos tomara na estrada um barril de pólvora e uma grande porção de chumbo de que usou até agora.
- Perguntou-lhe onde e como obtinha os mesmos objetos, antes dessa tomada de que fala?
- Respondeu que nas estradas tomava a uns á força e outros voluntariamente lhe davam, e que também algumas vezes comprava, não declarando seus nomes, porque, já disse, não queria perder outros.
- Perguntou-lhe mais como offendia geralmente ao povo, segundo disse, quando affirma que só queria offender àquelles que o perseguiam e o insultavam nas estradas?
- Respondeu que somente maltratava e offendia aquelles de quem receiava que o atraiçoassem ou perseguissem por qualquer forma.
- Perguntado si tem noticia dos tiros dados no guarda policial Joaquim Romão e Manoel Antonio Leite, resultando a morte deste, que também foi roubado?
- Respondeu negativamente.
- Perguntou-lhe si não tem noticia de Antonio Correia Pessoa, que foi morto e roubado em sua própria casa?
- Respondeu saber desse facto, e que foram autores elle respondente e seus companheiros, Nicoláo, Joaquim e Januário e que assim procederam porque esse Pessoa os perseguia e que já lhes havia dado dois tiros.
- Perguntado como foi morto esse homem?
- Respondeu que fora com pancadas e couces.
- Perguntou-lhe si tinha lembrança da morte de Ventura Ferreira de Oliveira, na Lagoa do Peixe?
- Respondeu que fora morto por seu camarada Nicolau, estando presente elle interrogado.
- Perguntou-lhe si tem noticia das mortes de Alexandre Felippe de Lima e de José Francisco Caboclo e quaes os autores?
- Disse, quanto à primeira, nada sabe e quanto á segunda foi elle interrogado quem matou, porque esse José Francisco recusava-se a pagar-lhe um dinheiro e também o queria matar.
- Perguntou si tinha noticia da morte do Antonio, escravo de José Antonio da Silva, que teve lugar na fazenda Sobradinho, próximo a esta villa?
- Respondeu que passando elle e alguns companheiros pela estrada, o dito Silva e outros lhe dirigiram insultos, pelo que elle respondente para desaffrontar se dera uns tiros contra aquelles, de um dos quaes resultou a morte do crioulinho.
- Perguntou mais si tem noticia da morte de Antonio Bonifácio e quem foi o autor?
- Respondeu ter sido elle interrogado, porque esse Bonifácio andava o perseguindo, pelo que o matou antes que lhe dizesse o mesmo.
- Perguntou si tem noticia da morte de Theotonio, escravo de Victorino Alves e qual o motivo? Respondeu que estando elle e alguns companheiros procurando a vida, o seu camarada de nome Joaquim matara e dito Theotonio.
- Perguntado si também tem noticia da morte de Alexandrina de tal, escrava de Manoel Joaquim?
- Respondeu ter sido elle quem a matou na occasião da morte do seu companheiro Nicoláo.
- Perguntou-lhe mais si tem noticia da morte de Manoel Lima, que também foi roubado, em uma das estradas desta villa?
- Respondeu negativamente.
- Perguntou-lhe si tem noticia da facada e pancadas que soffreu João Gomes de Oliveira, levando as também duas filhas?
- Respondeu que só lhe deu pancadass com o couce da arma porque elle sabia do rancho em que se escondiam, e que as filhas foram somente conduzidas até a beira do rio Jachuype onde elle as deixou.
- Perguntou mais se tem notícia da morte de João Vicente e qual o motivo?
- Respondeu que esse João Vicente também sabia do seu rancho, e tendo dado lá uma tropa, entendeu que foi elle o denunciante, por isso o matou.
- Perguntou-lhe mais si também tem noticia da morte de Joaquim Romão?
- Respondeu negativamente.
- Perguntou-lhe mais si sabe da morte feita em João de tal, morador no lugar denominado Papagaio?
- Respondeu ter sido o autor, porque elle sabia, e effectivamente mostrou, o logar em que tinha o seu rancho e de seus companheiros.
- Perguntou-lhe também si fora o autor da morte de Alexandre de tal, filho de Antonio Felippe?
- Respondeu que elle e seu companheiro Nicoláo fora os autores, porque os ditos Alexandre o seu pai Antonio Felippe constantemente os perseguiam.
- Perguntou-lhe si sabe quem deu as cutiladas no crioulo Manoel João?
- Respondeu que foram elle e seu companheiro Nicoláo, porque receiavam desse individuo.
- Perguntou-lhe sei tem noticia dos tiros dados no capitão Gregório do Nascimento?
- Respondeu que fora elle e seus companheiros, porque Gregório também os perseguia.
- Perguntou se tem noticia dos tiros dado em Manoel das Chagas e qual o motivo?
- Respondeu que foi elle por ver que esse homem merecia e assim quis quebrar-lhe as pernas.
- Perguntou-lhe mais, porque?
- Respondeu que por ter promettido pical-o em postas, assim elle respondente quis ensinal-o.
- Perguntou si tem noticia do roubo feito a José Dionysio, morador nas Campas?
- Respondeu que fora feito por seus companheiros Nicolau e Manoel, estando elle também presente.
- Perguntou o que roubaram nessa occasião?
- Respondeu que três colheres de prata.
- Perguntou-lhe si teve noticia do roubo feito a Vicente de tal, das Campas?
- Respondeu que fora elle o autor do roubo, tendo somente roubado uma calça e uma jaqueta.
- Perguntou mais si tem noticia dos cinco tiros dados em Gregório José de Almeida, no caminho de São José?
- Respondeu que foram dados por elle e seus companheiros, por um insulto que o dito lhes fizera.
- Perguntou si além dessas mortes e furtos sobre que tem respondido, lembra-se de ter feito mais alguma cousa?
- Respondeu que perante o Juiz Municipal já fora também conduzido e interrogado sobre alguns outros factos, como fosse o roubo da egreja das Brotas, e os tiros no Alferes Agostinho, em Joaquim Ferreira da costa e outros feitos a um homem chamado Sampaio Pinheiro e o vaqueiro de Aprigio Pires Gomes.
- Perguntou-lhe mais si durante a estada nos matos raptou algumas mulheres e sei tem lembrança do numero?
- Respondeu ter com effeito raptado algumas em numero de cinco ou seis, tendo, porém, outras ido voluntariamente para sua companhia.
- Perguntou si não matou alguma destas raparigas que levou para a sua companhia?
- Respondeu negativamente.
- Perguntou se em algum encontro, que elle respondente teve com pessoas que o perseguiam, levou alguns tiros e si tem lembrança do numero?
- Respondeu ter contado até cem e que felizmente escapou, tendo levado outros muitos que dahi em diante deixou de contar.
- Perguntou se não guardou em alguma parte ou em poder de qualquer pessoa dinheiro e outros objectos que tivesse tomado nas estradas?
- Respondeu que tudo quanto tinha era somente alguma roupa e outras miudezas que existiam no rancho em que foi preso, nada tendo guardado em parte alguma.
E nada mais respondeu nem lhe foi perguntado.
Por esta forma houve o Juiz por findo este interrogatório, mandando lavrar este termo, em que assignou com o curador do réo, depois de lido por mim Manoel José de Araújo Patrício, escrivão que escrivi - Innocencio Marques de Araújo Góes - O curador, Manoel Pereira de Azevedo.
Do interrogatório que acabamos de transcrever, vê-se quanto foi flagellada a Feira de Sant’Anna, principalmente depois do anno de 1840, quando o celebre salteador organisou sua quadrilha.
A prisão de Lucas teve os seus prodromos a 23 de Janeiro de 1848.
Narremos o facto que deve ter alguma importância para os nossos leitores.
Achando-se foragido o official de justiça do fórum feirense, de nome José Pereira Cazumbá, porque praticara um homicídio, pensou de obter o indulto, offerecendo-se para prender o salteador Lucas.
Acceita a proposta pelas autoridades com o accrescimo de que o governo compromettia-se a dar a Cazumbá, além do indulto mais quatro contos em dinheiro, foram affixados editaes neste sentido nos lugares mais públicos da Feira e publicados pela imprensa.
Na capella de N. S. dos Humildes, três legoas ao Sul da Feira de Sant’Anna, realisou-se uma festa, e para ella dirigiu se Lucas em procura, talvez, de alguma presa.
Cazumbá, acompanhado de Manoel Gomes, montou guarda no lugar chamado Pedra do Descanso, por onde, fatalmente, Lucas teria que passar de volta da festa.
Na segunda-feira 24, cerca de 6 horas da manhã, surge o salteador felizmente desacompanhado.
Manoel Gomes esmorece e treme, caindo-lhe a arma das mãos; mas na emboscada detona uma outra arma, cujo projectil aloja se certeiro no braço do salteador - foi a arma de Cazumbá, o official de justiça pronunciado que necessitava de liberdade.
Passada a primeira impressão, causada pelo susto de que o salteador não fosse atacal-os em seu esconderijo, sahiram elles e foram examinar o lugar onde estava Lucas quando recebeu o tiro.
O salteador havia de facto desapparecido, mas ali se achava o clavinote de seu uso e um rasteiro de sangue pela estrada afora.
Nessas averiguações estavam os dois, Cazumbá e Gomes, quando por ali passou o dr. Leovegildo de Amorim Filgueiras, juiz municipal e delegado do Termo, acompanhado de outros para effectuarem uma medição de terás.
Sciente de tudo, a dita autoridade poz a força publica em movimento para a captura do bandido, cujo paradeiro haviam de descobrir pelos vestígios de sangue, deixados na estrada e no mato.

Infelizmente assim não aconteceu porque a força de policia, os Inspectores de Quarteirão e o povo que os acompanhava, andaram todo dia e nos seguintes debalde, porque os vestígios desappareceram.
Quando o desanimo já começava a invadir aquelle troço de homens ávidos pela prisão do malvado crioulo, surgiu entre elles uma lembrança providencial.
Benedicto da Tapera, suspeitado como um de seus confidentes e intermediários, havia de lhes dizer qualquer cousa.
Sem demora seguiram para a casa do mesmo e gratificaram-n'o, ameaçando-o ao mesmo tempo de matal-o se não disesse onde estava Lucas.
Nestas condições, Benedicto confessou o paradeiro do salteador.
Na manha do dia 28 de Janeiro, o bandido, que tanto aterrorisou as populações daquella zona no período de vinte annos, estava entregue á justiça para responder por tantos crimes que praticara.
Condemnado à força pelo tribunal do Jury que se reuniu a 1º de Março do mesmo anno, foi executado a 26 de Setembro de 1849, no Campo do Gado, em presença de uma multidão que exultava pelo goso da tranqüilidade aspirada com o desapparecimento do bandido que a ameaçara por tantos annos.
Às 10 horas da manhã, daquelle dia, foi o salteador retirado da prisão e revestido de uma túnica branca.
Posto o baraço ao pescoço, em cuja extremidade segurava o carrasco, começou a percorrer as ruas da Feira, ladeado por dois franciscanos e o vigário da Freguezia padre José Tavares da Silva, e acompanhado das autoridades locaes, força publica e enorme massa popular da villa e de muitos logares que viera para esse fim.
De espaço a espaço paravam, os franciscanos resavam, os sinos dobravam e o official de justiça Marcellino Marques da Silva apregoava em altas vozes a morte do condemnado.
Ao meio dia chegou o cortejo fúnebre ao Campo do Gado, lugar em que estava armado o instrumento do supplicio.
Guindado ao plano superior da força, acompanhado de seu carrasco, Joaquim Correia, rapaz branco de 20 annos de edade, que espontaneamente se offerecera para aquelle reprovável mister, por ter o réprobo assassinado barbaramente seu pai Francisco Correia, elle, Lucas, acenando com a mão que lhe restava, pois a outra tinha sido operada em conseqüência dos tiros recebidos quando foi preso, disse: "Espere!"
Divagou o olhar acovardado por aquella multidão, e com voz fraca e arrastada declinou estas ultimas palavras:
"Sei que muitos dentre vós estão contentes de me verem assim acabar; eu peço perdão a Deus e a todos que perdoem".
Dito isto o carrasco atira-o ao espaço: desce pela corda; arrima-se aos hombro do condemnado e mantém-lhe a bocca fechada. Os membros do suppliciado controhem-se, seguindo-se a mieção e o exhalar do ultimo suspiro.
Morto! Foi o brado uniforme, abafado e fúnebre sahido dos lábios da multidão.
Effectivamente o condemnado tornara-se cadáver; a Feira exaltava pela volta de sua tranqüilidade; a justiça desafrontara-se, e a sociedade; quanto a nós que escrevemos estas linhas desapaixonadamente, devia ter se enlutado por esse assassinato cobarde praticado na pessoa de um facínora, é verdade, mas no entanto criminoso porque a sociedade não soube educal-o.

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