A evolução tecnológica e o
desenvolver das ciências nos elevam a condições de vida cada vez mais
sofisticados, mas não se alteraram no homem sua características, desejos e
necessidades mais essenciais. Dentre as quais, está a capacidade de confrontar
sua condição enquanto integrante de uma sociedade. Tal capacidade é o grande
empecilho encontrado pelos aspirantes ao pleno poder político desde os tempos
do antigos imperadores até hoje.
Uma das estratégias políticas mais
emblemáticas e conhecidas de Roma, a política do "pão e circo" visava
conter possíveis distúrbios sociais decorrentes das péssimas condições de vida
geradas pelos próprios governantes. Consistia em saciar a fome e conter os
ânimos dos cidadãos através do entretenimento em arenas como o Coliseu, com
lutas de gladiadores, encenações, corridas de bigas e quadrigas. Cada César que
subia ao poder, tinha, dentre suas metas de governo, o patrocínio de mais dias
de entretenimento seguidos do que o César anterior. Quem controla a massa,
controla o poder e nele se mantém.
Passados os séculos, a manipulação
por meio do espetáculo ainda é usada pelo estamento político, que faz uso de
antigos e novos entretenimentos coletivos, conjugados com modernas técnicas de
persuasão e inoculação anestésica de novos modos de pensar e agir.
Dentre tudo o que o colonizador
português legou ao Brasil, consta a tradição europeia do Entrudo, uma série de
jogos e brincadeiras populares realizados de forma espontânea pela população
nos três dias anteriores à Quaresma. Por volta do século XIX, governantes
passaram a tentar acabar com essa festa popular, considerada grosseira, suja e
violenta, tendo com isso perdido força nos primeiros anos do século XX.
Não obstante, e como fruto das
influências positivistas e iluminsitas que o estamento político brasileiro
herdou da Revolução Francesa, houve o reavivamento da tradição portuguesa do
Entrudo, sob o nome de Carnaval. O festejo então deixa de ser uma festa do povo
para constituir-se parte da política do Estado. Fartamente patrocinada por
verbas estatais através dos três entes da federação, a simples manifestação
popular torna-se uma ferramenta política para conduzir as massas como gado.
Em Roma, césares patrocinavam com as
verbas dos impostos pão e circo; hoje, o Estado Entrudo Brasileiro patrocina
camisinhas e circo através do esperado Carnaval. Vale destacar que tanto no
Entrudo original quanto na política do pão e circo, o entretenimento estava
ligado a jogos e interpretações de situações do cotidiano e da história. No
Estado Entrudo Brasileiro, os festejos carnavalescos se estendem por todo o
ano, através dos campeonatos de futebol e das novelas que trazem implícita a
agenda política. Com uma agenda de entretenimento como essa, o estamento
político brasileiro supera os Césares de Roma.
O estamento sabe que a exposição
contínua a essa série de entretenimentos induz uma petrificação do imaginário,
que anestesicamente retira do cidadão sua ínsita capacidade de, por si, criar,
destruir e recriar sua auto-determinação conforme o que a realidade lhe impõe,
pois perde o ímpeto de confrontar hipóteses opostas às versões dos fatos que
lhe são apresentadas. Seu entendimento fica, a cada dia, menos operado por si
mesmo e cada vez mais dependente das agendas da elite política disseminadas pela
mídia de massa.
A elite domina o processo tal qual o
escritor de um romance direciona e conduz os personagens de sua obra, e sabe
que um estado de indignação e de cansaço dos cidadãos para com os desmandos do
governo, quando intermediado por um festejo, é revertido: as tendências
agressivas são neutralizadas, e o cidadão, após extasiar-se nos folguedos, não
só retorna para seus afazeres diários com "ânimo renovado" para
enfrentar as dificuldades geradas pelo próprio estamento político, mas tende à
conformação, e a julgar que pouca coisa pode fazer para mudar o estado de
coisas. Como se já não bastasse o massacre midiático que obstrui sua capacidade
de percepção da realidade política - a primeira arma de um cidadão vivendo numa
democracia -, e que é exatamente aquilo que pode fazer, num segundo momento,
fazer alastrar-se a rede de contrapontos capaz de sanear, aos poucos, uma
cultura manipulada pela elite.
O domínio do imaginário e do
comportamento da população por parte da elite, que usa Estado Entrudo com o
trio carnaval, futebol e novela, chegou ao ponto de não só esses
entretenimentos serem tidos como caracterizadores da identidade nacional, mas
de influenciar a massa de tal forma que, em muitos ambientes, tudo o que, a
essas três coisas e a mais algumas irrelevâncias não se refira, causa
instantâneo repúdio. Não se pode pôr em discussão algum tema mais
relevante, ou simplesmente que se critique a desproporcional importância e
tempo diário que estão perdendo com tais distrações até mesmo em detrimento do
crescimento pessoal. E o fenômeno não se restringe à massa inculta. Acomete
também cidadãos letrados.
Nos dias correntes, nada mais
eficiente para apaziguar os ânimos exaltados pela corrupção exposta pela
Operação Lava Jato e pela calamidade em que se encontra a economia do que
festejos e entretenimento.
Ao povo brasileiro, transformado em
folgazão através do Estado Entrudo, totalmente representativo do seu atual
estado de embriaguez psicológica e moral, cito trecho do livro 'As Ilusões
Perdidas', de Honoré de Balzac:
No dia seguinte pela manhã, Lucien,
que acabara de compor sua última canção, procurou cantá-la segundo uma música
então em voga. Ao ouvi-lo cantar, Bérénice e o padre tiveram medo que tivesse
enlouquecendo:
Amigos, a moral na canção
Causa-me e me entedia;
Quando é à Loucura que se serve?
Aliás, diz Epicuro, todos os refrãos são bons
Quando se brinda com folgazões
Não procuremos Apolo
Quando Baco nos entretém;
RIAMOS! BEBAMOS! E ZOMBEMOS DE TUDO O MAIS.
Hipócrates a todo bom bebedor
Prometia cem anos.
Que importa, ao final, se por desgraça
A perna vacilante não mais pode perseguir sua gatinha?
Basta que, para entornar uma garrafa,
A mão seja sempre ágil!
Bebendo e brindando assim
Até os sessenta anos chegaremos.
RIAMOS! BEBAMOS! E ZOMBEMOS DE TUDO O MAIS.
Deseja saber donde viemos,
É muito fácil: Mas, para saber onde iremos,
É preciso ser astuto.
Enfim, sem nos inquietar,
Usemos até o final, da bondade celeste!
É certo que morreremos;
Mas é igualmente certo que vivemos;
Riamos ! Bebamos! E zombemos de tudo o mais.
Causa-me e me entedia;
Quando é à Loucura que se serve?
Aliás, diz Epicuro, todos os refrãos são bons
Quando se brinda com folgazões
Não procuremos Apolo
Quando Baco nos entretém;
RIAMOS! BEBAMOS! E ZOMBEMOS DE TUDO O MAIS.
Hipócrates a todo bom bebedor
Prometia cem anos.
Que importa, ao final, se por desgraça
A perna vacilante não mais pode perseguir sua gatinha?
Basta que, para entornar uma garrafa,
A mão seja sempre ágil!
Bebendo e brindando assim
Até os sessenta anos chegaremos.
RIAMOS! BEBAMOS! E ZOMBEMOS DE TUDO O MAIS.
Deseja saber donde viemos,
É muito fácil: Mas, para saber onde iremos,
É preciso ser astuto.
Enfim, sem nos inquietar,
Usemos até o final, da bondade celeste!
É certo que morreremos;
Mas é igualmente certo que vivemos;
Riamos ! Bebamos! E zombemos de tudo o mais.
Não é sem motivo que dizem que
"Deus é brasileiro". Para o estamento, ótimo. A elite não quer
cidadãos conscientes, e sim folgazões, indiferentes, viciados e amorais: quatro
tipos não apenas facilmente maleáveis, mas que também infestam as instâncias de
poder e governo no país.
O povo transformou-se num amontoado
de pessoas as mais epidérmicas possíveis, sem nenhum valor universal relevante
a legar a seus descendentes e ao mundo; o legado é o maior caso de corrupção
governamental já constatado na história, sendo esse o maior exemplo do que
ocorre quando a população tem suas ações e conclusões substituídas pelas que
foram inoculadas pelo estamento.
É difícil saber quando isso vai
mudar. Pois depende do insurgir-se de cada um face ao Estado Carnavalesco em
que vivemos, dando, cada indivíduo, o devido grau de importância a tudo, e
também a formas melhores e mais enriquecedoras de entretenimento.
Até esse dia chegar, infelizmente,
continuará a massa agindo como no poema de Balzac, rindo, bebendo e zombando de
tudo. Afinal, o carnaval, e, junto com ele, o Estado Entrudo, está aí, para
proporcionar a festa que afunda o povo brasileiro cada vez mais no mar da
insignificância e da subserviência.
Adalberto
Salvador Perillo Kühl Júnior é advogado e reside em São Paulo.
Fonte: "Mídia Sem Máscara"
Fonte: "Mídia Sem Máscara"
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