Por Reinaldo Azevedo
Tudo
indica que haverá um esforço do PT e do governo Dilma para que se efetive
justamente o que eu temia: uma democracia tutelada por "movimentos populares",
de que o Poder Executivo federal passa a ser um "organizador", com uma inflexão
do PT mais à esquerda. Pior: os petistas tentarão usar esses supostos "representantes do povo" para pressionar o Congresso e o Judiciário. Vão se
esforçar para usar esses falsos representantes do povo para, por exemplo,
aprovar uma reforma política que só interessa ao PT. Mais: Dilma tentará fazer
de conta que o problema é dos outros, não dela. Pode dar tudo errado? Até pode.
Mas o plano é péssimo. Os setores do jornalismo que, por alguma razão estúpida,
ou uma soma delas, flertou com o Bebê de Rosemary podem se arrepender. Algumas
considerações prévias antes de entrar no mérito.
Tenho
sido um duro crítico de muitos, de quase todos, os aspectos do movimento que
tomou as ruas. Vocês conhecem também a minha visão a respeito. Numa síntese
rápida, resta evidente que os grupos de extrema esquerda, a começar do
Movimento Passe Live, em parceria com o petismo e com amplos setores da
imprensa - não se trata de conspiração, mas de identidade de valores -,
tentaram criar o caos em São Paulo. O tiro saiu pela culatra, e o balaço caiu
no colo de Dilma Rousseff. Por isso ela teve de se manifestar. Fizemos nesta
sexta um debate na VEJA.com. Estávamos lá Augusto Nunes, Marco Antonio Villa,
Ricardo Setti e eu. Daqui a pouco, o vídeo estará no ar. Resta evidente que
sou, dentre os quatro, o mais pessimista. Embora eu reconheça que, em São Paulo
e em boa parte do país, a esquerda porra-louca - justamente aquela amada por
setores do jornalismo - tenha perdido o monopólio da manifestação, não acho que
o saldo seja positivo para o país. Num texto que escrevi na manhã de ontem, afirmei aquele que seria um
dos efeitos negativos desses eventos. Reproduzo trecho:
"O
lulo-petismo é a única força de massa - ou, se quiserem, no jargão característico, "movimento de massa" - verdadeiramente organizada no país. Por "organização",
entenda-se uma vinculação orgânica com aparelhos sindicais, no campo e nas
cidades, capazes de mobilizar recursos e pessoas para atuar em várias frentes.
O método do Movimento Passe Livre, ora premiado com a decisão da redução das
tarifas - e não restava às autoridades alternativa, a não ser a demonização
diária nas TVs -, força uma reciclagem do petismo pela esquerda; convida o
partido a uma espécie de volta às origens; introduz um suposto viés de frescor
que vem das ruas (que, na verdade, é bolor), do qual o partido andava um tanto
distante, agora que se tornou também uma gigantesca burocracia de ocupação do
estado.
Aos
petistas, não custa muita coisa mudar a chave, não!, da atual posição, vamos
dizer assim, mais à direita (em relação a seus marcos anteriores), próxima da
social-democracia, para outra mais próxima de seu passado."
Antes
eu comente o discurso de Dilma, cuja íntegra segue abaixo, reproduzo mais um
trecho do meu texto de ontem:
"Entendam,
minhas caras, meus caros: eu sei que gente que não tolera mais a corrupção, a
impunidade, a bandalheira e a incompetência engrossou as passeatas do Movimento
Passe Livre. E o fez por bons motivos. Há entre os manifestantes até mesmo
aqueles que foram protestar em frente ao prédio de Lula. Nada disso, no
entanto, muda o caráter do que se viu nas ruas ou anula o fato de que o método
premiado é danoso para o regime democrático. O que queremos? Uma
democracia tutelada por supostos "conselhos populares"?
Muito
bem. Agora vamos à fala da presidente. Eu a reproduzo em vermelho e comento em
azul. Dou destaque a alguns trechos.
Minhas
amigas e meus amigos,
Todos
nós, brasileiras e brasileiros, estamos acompanhando, com muita atenção, as
manifestações que ocorrem no país. Elas mostram a força de nossa democracia e o
desejo da juventude de fazer o Brasil avançar.
Se
aproveitarmos bem o impulso desta nova energia política, poderemos fazer,
melhor e mais rápido, muita coisa que o Brasil ainda não conseguiu realizar por
causa de limitações políticas e econômicas. Mas, se deixarmos que a violência
nos faça perder o rumo, estaremos não apenas desperdiçando uma grande oportunidade
histórica, como também correndo o risco de colocar muita coisa a perder.
Como
presidenta, eu tenho a obrigação tanto de ouvir a voz das ruas, como dialogar
com todos os segmentos, mas tudo dentro dos primados da lei e da ordem,
indispensáveis para a democracia.
O Brasil
lutou muito para se tornar um país democrático. E também está lutando muito
para se tornar um país mais justo. Não foi fácil chegar onde chegamos, como
também não é fácil chegar onde desejam muitos dos que foram às ruas. Só
tornaremos isso realidade se fortalecermos a democracia - o poder cidadão e os
poderes da República.
Os
manifestantes têm o direito e a liberdade de questionar e criticar tudo, de
propor e exigir mudanças, de lutar por mais qualidade de vida, de defender com
paixão suas ideias e propostas, mas precisam fazer isso de forma pacífica e
ordeira.
O
governo e a sociedade não podem aceitar que uma minoria violenta e autoritária
destrua o patrimônio público e privado, ataque templos, incendeie carros,
apedreje ônibus e tente levar o caos aos nossos principais centros urbanos.
Essa violência, promovida por uma pequena minoria, não pode manchar um
movimento pacífico e democrático. Não podemos conviver com essa violência que
envergonha o Brasil. Todas as instituições e os órgãos da Segurança Pública têm
o dever de coibir, dentro dos limites da lei, toda forma de violência e
vandalismo.
Com
equilíbrio e serenidade, porém, com firmeza, vamos continuar garantindo o
direito e a liberdade de todos. Asseguro a vocês: vamos manter a ordem.
Essa é
a primeira parte do discurso. Dilma condenou o vandalismo e a arruaça. É claro
que fez bem, mas não há como elogiar por isso, uma vez que o contrário seria
impossível. Imaginem uma presidente da República que dissesse: "É isso aí,
moçada! O negócio é ir para o pau!". Impossível, certo?
Mas já
há um traço preocupante. Segundo Dilma, essa "nova energia" pode superar
limitações políticas e econômicas. As políticas, vá lá, podem até ser
superadas, uma vez que costumam derivar de acordos, entendimentos. Se isso não
significar atropelar as instituições, tudo certo. Mas pode significar isso
também, como se verá adiante. Já as econômicas… Eu não gosto de gente que se
refere a fatos sociais falando em "energia". Para mim, "energia" é coisa de
eletricista, engenheiro elétrico, física… Na sociedade, querer lidar com "energias" quase sempre significa ceder a movimentos de pressão que fazem da
própria gritaria fonte de sua legitimidade. Vamos à segunda parte.
Brasileiras
e brasileiros,
As
manifestações dessa semana trouxeram importantes lições: as tarifas baixaram e
as pautas dos manifestantes ganharam prioridade nacional. Temos que aproveitar
o vigor destas manifestações para produzir mais mudanças, mudanças que
beneficiem o conjunto da população brasileira.
A minha
geração lutou muito para que a voz das ruas fosse ouvida. Muitos foram
perseguidos, torturados e morreram por isso. A voz das ruas precisa ser ouvida
e respeitada, e ela não pode ser confundida com o barulho e a truculência de
alguns arruaceiros.
Sou a presidenta
de todos os brasileiros, dos que se manifestam e dos que não se manifestam. A
mensagem direta das ruas é pacífica e democrática.
Ela
reivindica um combate sistemático à corrupção e ao desvio de recursos públicos.
Todos me conhecem. Disso eu não abro mão.
Esta
mensagem exige serviços públicos de mais qualidade. Ela quer escolas de
qualidade; ela quer atendimento de saúde de qualidade; ela quer um transporte
público melhor e a preço justo; ela quer mais segurança. Ela quer mais. E para
dar mais, as instituições e os governos devem mudar.
Dou uma
parada aqui. Como se nota, ela trata do assunto como se fosse um problema dos
outros, não dela; como se isso dissesse respeito aos demais entes da federação,
não o governo federal. As críticas à corrupção, ficou evidente, eram
especialmente dirigidas à área federal, sim, senhores! Agora vem o primeiro
pulo do gato - ou da gata. Prestem atenção.
Irei
conversar, nos próximos dias, com os chefes dos outros poderes para somarmos
esforços. Vou convidar os governadores e os prefeitos das principais cidades do
país para um grande pacto em torno da melhoria dos serviços públicos.
Dilma
se coloca, assim, como a líder de um movimento que vai convocar os outros
Poderes. Apresenta-se como senhora e dona de uma agenda. Reivindicações que
foram dirigidas especialmente ao Executivo serão divididas com os demais.
Huuummm. Vamos seguir.
O foco
será: primeiro, a elaboração do Plano Nacional de Mobilidade Urbana, que
privilegie o transporte coletivo. Segundo, a destinação de cem por cento dos
recursos do petróleo para a educação. Terceiro, trazer de imediato milhares de
médicos do exterior para ampliar o atendimento do Sistema Único de Saúde, o
SUS.
Vamos
ver que diabo será o tal plano. Imaginar que o governo federal possa planejar a
mobilidade nas cidades é conversa mole para boi dormir. O máximo que pode fazer
é conceder ou linhas de empréstimo ou incentivos fiscais para que elas operem
reformas importantes na área. Não está claro o que quer dizer. Uma coisa é
certa: vão querer meter a mão grande em São Paulo, território que a presidente
já percebeu andar um tanto hostil ao PT. Aí vêm os 100% dos recursos do
petróleo para a educação e a polêmica importação de "milhares de médicos do
exterior". Até aqui, estamos na fase dos malabarismo e da alegoria de mão. São
medidas de tal sorte descoladas entre si que o conjunto parece ser um arranjo
de última hora. É agora que a coisa engrossa.
Anuncio
que vou receber os líderes das manifestações pacíficas, os representantes das
organizações de jovens, das entidades sindicais, dos movimentos de
trabalhadores, das associações populares. Precisamos de suas contribuições,
reflexões e experiências, de sua energia e criatividade, de sua aposta no
futuro e de sua capacidade de questionar erros do passado e do presente.
Vamos
ver. Esse negócio é só episódico, ou Dilma vai mesmo querer governar com os "conselhos populares"? É só brincadeirinha, ou Mayara Vivian, a tal do
Movimento Passe Livre, valerá tanto quanto uma penca de deputados ou senadores?
É só para ver se dá uma esfriada nos ânimos, ou vamos nos aproximar um
pouquinho mais do bolivarianismo? O governo já faz a interlocução com essa
turma, por intermédio de Gilberto Carvalho. Como vai funcionar? De agora em
diante, ou o Congresso faz o que querem os movimentos, ou eles param a
Paulista, a Getúlio Vargas e o que mais lhes der na telha? Vai piorar.
Brasileiras
e brasileiros,
Precisamos
oxigenar o nosso sistema político. Encontrar mecanismos que tornem nossas
instituições mais transparentes, mais resistentes aos malfeitos e, acima de
tudo, mais permeáveis à influência da sociedade. É a cidadania, e não o poder
econômico, quem deve ser ouvido em primeiro lugar.
Em
princípio parece bom. Se for para para submeter o Parlamento e a Justiça a
comissariados do povo, aí é ruim. E é o que se vai tentar.
Quero
contribuir para a construção de uma ampla e profunda reforma política, que
amplie a participação popular. É um equívoco achar que qualquer país possa
prescindir de partidos e, sobretudo, do voto popular, base de qualquer processo
democrático. Temos de fazer um esforço para que o cidadão tenha mecanismos de
controle mais abrangentes sobre os seus representantes.
A
reforma política que quer o PT é uma estrovenga autoritária, destinada a
eternizar os petistas no poder. O partido quer, por exemplo, o financiamento
público de campanha, que corresponde a mais uma assalto ao bolso do
contribuinte. Já expliquei aqui por quê. Imaginem o Passe Livre e seus
amiguinhos a parar a Paulista em nome do… financiamento público. Ah, sim: se
preciso, os valentes podem ser mobilizados em defesa do "controle da mídia".
Precisamos
muito, mas muito mesmo, de formas mais eficazes de combate à corrupção. A Lei
de Acesso à Informação, sancionada no meu governo, deve ser ampliada para todos
os poderes da República e instâncias federativas. Ela é um poderoso instrumento
do cidadão para fiscalizar o uso correto do dinheiro público. Aliás, a melhor
forma de combater a corrupção é com transparência e rigor
Certo!
Os petistas poderiam explicar por que se tornaram patrocinadores da PEC 37, que
retira poder de investigação do Ministério Público.
Em
relação à Copa, quero esclarecer que o dinheiro do governo federal, gasto com as
arenas é fruto de financiamento que será devidamente pago pelas empresas e os
governos que estão explorando estes estádios. Jamais permitiria que esses
recursos saíssem do orçamento público federal, prejudicando setores
prioritários como a Saúde e a Educação.
Na
realidade, nós ampliamos bastante os gastos com Saúde e Educação, e vamos
ampliar cada vez mais. Confio que o Congresso Nacional aprovará o projeto que
apresentei para que todos os royalties do petróleo sejam gastos exclusivamente
com a Educação.
Não
posso deixar de mencionar um tema muito importante, que tem a ver com a nossa
alma e o nosso jeito de ser. O Brasil, único país que participou de todas as
Copas, cinco vezes campeão mundial, sempre foi muito bem recebido em toda
parte. Precisamos dar aos nossos povos irmãos a mesma acolhida generosa que
recebemos deles. Respeito, carinho e alegria, é assim que devemos tratar os
nossos hóspedes. O futebol e o esporte são símbolos de paz e convivência
pacífica entre os povos. O Brasil merece e vai fazer uma grande Copa.
Eu não
concordo com o raciocínio que opõe estádios a hospitais. As coisas não
funcionam assim por razões que não cabem neste texto. Negar, no entanto, que
exista uma montanha de dinheiro público na Copa é absurdo. Não só isso: o
governo criou um regime especial para a execução de obras, fora da Lei de
Licitações.
Minhas
amigas e meus amigos,
Eu quero
repetir que o meu governo está ouvindo as vozes democráticas que pedem mudança.
Eu quero dizer a vocês que foram pacificamente às ruas: eu estou ouvindo vocês!
E não vou transigir com a violência e a arruaça.
Será
sempre em paz, com liberdade e democracia que vamos continuar construindo
juntos este nosso grande país.
Boa
noite!
Faltou
dizer como é que o governo federal pretende combater a violência e a arruaça.
Se quiser, tem em mãos uma porção de mecanismos. Vamos ver. Não sei se as
providências que Dilma diz que vai adotar mudará o ânimo das manifestações.
Depois de alguns dias, é natural que haja um refluxo - afinal, não vivemos numa
tirania árabe. De uma coisa não tenho dúvida: se Dilma e o PT forem
bem-sucedidos, do seu ponto de vista, nas medidas anunciadas, o Brasil ficará
pior. Muito pior. E menos democrático também.
A
trilha sonora deste filme é a que segue abaixo.
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