Por Demétrio Magnoli
Ah, o exagero - a sombra monstruosa do exagero. "Lula estará conosco." "Sei que a distância de um cargo nada significa para um homem de tamanha grandeza e generosidade": "o maior líder que este país já teve." "Seu nome já está cravado no coração do povo." Não é o elogio incisivo, mesmo mais que protocolar, ao presidente que saiu, companheiro de partido, responsável por seu triunfo. É a louvação desmedida, o adjetivo incontido, o culto despropositado, a metáfora de ressonâncias religiosas. "Sob sua liderança, o povo brasileiro fez a travessia para uma outra margem da história." É Moisés, na travessia das águas e na jornada pelo deserto. Nos seus dois discursos de posse, Dilma Rousseff apalpou a linguagem das tiranias personificadas.
Condutor? Comandante? Eterno Presidente? Líder Genial dos Povos? Grande Timoneiro? A linguagem faz diferença, pois a política, em tempos de paz, é feita de palavras. Democracia é o regime das instituições, não dos líderes. Nas Repúblicas democráticas, nenhum líder sintetiza o povo - e exatamente por isso existem oposições legais. Delinquindo nos interstícios da lei, a Petrobrás batizou com o nome de Lula o campo petrolífero de Tupi. O culto a Lula é uma ferida na alma da democracia. Dilma subiu a rampa fazendo as orações desse culto bizarro.
Os discursos de posse de Dilma devem ser lidos como harmonias interrompidas. A presidente tenta desabrochar, insinua-se e esboça um aceno; ansiosa, tropeça e cai. Aqui e ali, por todos os lados, encontram-se os indícios da sua vontade de governar "para todos os brasileiros e brasileiras". Mas o propósito se estiola no caminho, sempre que colide com um dogma do lulismo.
Há o desejo discernível e, contudo, frustrado de construir uma narrativa realista do período pós-ditadura militar. "Um governo se alicerça no acúmulo de conquistas realizadas ao longo da história. Por isso, ao saudar os avanços extraordinários recentes, é justo lembrar que muitos, a seu tempo e seu modo, deram grandes contribuições às conquistas do Brasil de hoje." Ela poderia ter dito: José Sarney consolidou as liberdades políticas, Fernando Collor iniciou a abertura comercial, Itamar Franco fez o Plano Real, FHC ergueu o edifício da estabilidade econômica. Mas não disse, pois pronunciar o nome de um predecessor seria incorrer no pecado da apostasia: a negação da primazia de Lula.
Lula falou quase sempre como chefe de uma facção - e, no dia de passar a faixa, referiu-se ainda aos opositores como "inimigos". Dilma, ao contrário, almeja falar como a "presidente de todos". Ela estendeu a mão aos partidos de oposição, sem pedir a ninguém "que abdique de suas convicções". Com o olho posto nas lições da campanha eleitoral, enfatizou o imperativo do combate à corrupção e declarou um compromisso "inegociável" com as liberdades individuais, de religião, de imprensa e de opinião. "Prefiro o barulho da imprensa livre ao silêncio das ditaduras", assegurou, reproduzindo a fórmula empregada no discurso de vitória. A declaração será posta à prova logo mais, quando a presidente abrir a gaveta onde repousa o projeto de controle estatal de conteúdos dos meios de comunicação, um presente de grego deixado por Franklin Martins, em nome de Lula.
Dilma prometeu uma política externa "baseada nos valores clássicos da diplomacia brasileira", oferecendo uma justificativa cifrada para o afastamento de Celso Amorim. Recitou, um a um, os princípios inscritos na Constituição: promoção da paz, não intervenção, defesa dos direitos humanos. "Direitos humanos", ela disse! É uma censura indireta a Lula, que elogiava ditaduras e traçava paralelos abomináveis entre presos políticos e criminosos comuns.
Entretanto, os interditos pontilham a estrada como campos minados. Logo depois dos direitos humanos, apartando-se do texto constitucional, Dilma mencionou o "multilateralismo". Em tese, o termo significa, apenas, o fortalecimento das instituições multilaterais, como a ONU, o FMI e o G-20. Na linguagem codificada do lulismo, condensa o impulso antiamericano que moldou a desastrada aproximação com o Irã. O "multilateralismo", nessa acepção pervertida, combina com a permanência de Marco Aurélio Garcia no posto de chanceler fantasma. "Lula estará conosco", lembrou a presidente que se sabe tutelada.
"Eu troquei meu nome e coloquei Dilma lá na cédula", avisou Lula na campanha eleitoral. O ex-presidente interpreta o novo governo como seu terceiro mandato e para exercer a tutela nomeou dois primeiros-ministros informais: Antônio Palocci, tutor externo, e Gilberto Carvalho, tutor interno. Ambos cometeram atos falhos antes do encerramento do primeiro dia de governo. Palocci dirigiu um pedido aos ministros: "Tenham-me como um de vocês, um da equipe, um do time." Ninguém que é "um de vocês" fala assim. Carvalho declarou em entrevista: "Lula não precisa de mim. Seria muita pretensão querer ser o espião do Lula no Planalto." O sarcasmo involuntário continua a ser sarcasmo.
Marta Suplicy nunca aprendeu a arte política da sublimação do desejo: a senadora proclama, gritando, o que deve ser sussurrado. Certa vez, nos bastidores de uma reunião da Direção Nacional do PT, incorporou a persona da rainha de Alice para exigir, aos berros, a expulsão imediata de uma corrente minoritária. Agora, na posse da presidente, alertou para a presença perene de Lula – "ele estará sempre disposto a ajudar Dilma no que ela precisar" – e enviou uma mensagem a interlocutores genéricos: "Há uma parceria entre Dilma e Lula que ninguém quebra."
Ninguém quebra? Se Marta tiver razão, Dilma não será, jamais, a "presidente de todos" – e não será nem mesmo a chefe de uma facção. Mas ela pode estar errada, pois a infalibilidade é um atributo exclusivo de Lula. Nessa hipótese, para o bem da democracia, o Brasil terá uma presidente, não um governo subterrâneo.
Fonte: Jornal "O Estado de S. Paulo", edição de quinta-feira, 6
Ah, o exagero - a sombra monstruosa do exagero. "Lula estará conosco." "Sei que a distância de um cargo nada significa para um homem de tamanha grandeza e generosidade": "o maior líder que este país já teve." "Seu nome já está cravado no coração do povo." Não é o elogio incisivo, mesmo mais que protocolar, ao presidente que saiu, companheiro de partido, responsável por seu triunfo. É a louvação desmedida, o adjetivo incontido, o culto despropositado, a metáfora de ressonâncias religiosas. "Sob sua liderança, o povo brasileiro fez a travessia para uma outra margem da história." É Moisés, na travessia das águas e na jornada pelo deserto. Nos seus dois discursos de posse, Dilma Rousseff apalpou a linguagem das tiranias personificadas.
Condutor? Comandante? Eterno Presidente? Líder Genial dos Povos? Grande Timoneiro? A linguagem faz diferença, pois a política, em tempos de paz, é feita de palavras. Democracia é o regime das instituições, não dos líderes. Nas Repúblicas democráticas, nenhum líder sintetiza o povo - e exatamente por isso existem oposições legais. Delinquindo nos interstícios da lei, a Petrobrás batizou com o nome de Lula o campo petrolífero de Tupi. O culto a Lula é uma ferida na alma da democracia. Dilma subiu a rampa fazendo as orações desse culto bizarro.
Os discursos de posse de Dilma devem ser lidos como harmonias interrompidas. A presidente tenta desabrochar, insinua-se e esboça um aceno; ansiosa, tropeça e cai. Aqui e ali, por todos os lados, encontram-se os indícios da sua vontade de governar "para todos os brasileiros e brasileiras". Mas o propósito se estiola no caminho, sempre que colide com um dogma do lulismo.
Há o desejo discernível e, contudo, frustrado de construir uma narrativa realista do período pós-ditadura militar. "Um governo se alicerça no acúmulo de conquistas realizadas ao longo da história. Por isso, ao saudar os avanços extraordinários recentes, é justo lembrar que muitos, a seu tempo e seu modo, deram grandes contribuições às conquistas do Brasil de hoje." Ela poderia ter dito: José Sarney consolidou as liberdades políticas, Fernando Collor iniciou a abertura comercial, Itamar Franco fez o Plano Real, FHC ergueu o edifício da estabilidade econômica. Mas não disse, pois pronunciar o nome de um predecessor seria incorrer no pecado da apostasia: a negação da primazia de Lula.
Lula falou quase sempre como chefe de uma facção - e, no dia de passar a faixa, referiu-se ainda aos opositores como "inimigos". Dilma, ao contrário, almeja falar como a "presidente de todos". Ela estendeu a mão aos partidos de oposição, sem pedir a ninguém "que abdique de suas convicções". Com o olho posto nas lições da campanha eleitoral, enfatizou o imperativo do combate à corrupção e declarou um compromisso "inegociável" com as liberdades individuais, de religião, de imprensa e de opinião. "Prefiro o barulho da imprensa livre ao silêncio das ditaduras", assegurou, reproduzindo a fórmula empregada no discurso de vitória. A declaração será posta à prova logo mais, quando a presidente abrir a gaveta onde repousa o projeto de controle estatal de conteúdos dos meios de comunicação, um presente de grego deixado por Franklin Martins, em nome de Lula.
Dilma prometeu uma política externa "baseada nos valores clássicos da diplomacia brasileira", oferecendo uma justificativa cifrada para o afastamento de Celso Amorim. Recitou, um a um, os princípios inscritos na Constituição: promoção da paz, não intervenção, defesa dos direitos humanos. "Direitos humanos", ela disse! É uma censura indireta a Lula, que elogiava ditaduras e traçava paralelos abomináveis entre presos políticos e criminosos comuns.
Entretanto, os interditos pontilham a estrada como campos minados. Logo depois dos direitos humanos, apartando-se do texto constitucional, Dilma mencionou o "multilateralismo". Em tese, o termo significa, apenas, o fortalecimento das instituições multilaterais, como a ONU, o FMI e o G-20. Na linguagem codificada do lulismo, condensa o impulso antiamericano que moldou a desastrada aproximação com o Irã. O "multilateralismo", nessa acepção pervertida, combina com a permanência de Marco Aurélio Garcia no posto de chanceler fantasma. "Lula estará conosco", lembrou a presidente que se sabe tutelada.
"Eu troquei meu nome e coloquei Dilma lá na cédula", avisou Lula na campanha eleitoral. O ex-presidente interpreta o novo governo como seu terceiro mandato e para exercer a tutela nomeou dois primeiros-ministros informais: Antônio Palocci, tutor externo, e Gilberto Carvalho, tutor interno. Ambos cometeram atos falhos antes do encerramento do primeiro dia de governo. Palocci dirigiu um pedido aos ministros: "Tenham-me como um de vocês, um da equipe, um do time." Ninguém que é "um de vocês" fala assim. Carvalho declarou em entrevista: "Lula não precisa de mim. Seria muita pretensão querer ser o espião do Lula no Planalto." O sarcasmo involuntário continua a ser sarcasmo.
Marta Suplicy nunca aprendeu a arte política da sublimação do desejo: a senadora proclama, gritando, o que deve ser sussurrado. Certa vez, nos bastidores de uma reunião da Direção Nacional do PT, incorporou a persona da rainha de Alice para exigir, aos berros, a expulsão imediata de uma corrente minoritária. Agora, na posse da presidente, alertou para a presença perene de Lula – "ele estará sempre disposto a ajudar Dilma no que ela precisar" – e enviou uma mensagem a interlocutores genéricos: "Há uma parceria entre Dilma e Lula que ninguém quebra."
Ninguém quebra? Se Marta tiver razão, Dilma não será, jamais, a "presidente de todos" – e não será nem mesmo a chefe de uma facção. Mas ela pode estar errada, pois a infalibilidade é um atributo exclusivo de Lula. Nessa hipótese, para o bem da democracia, o Brasil terá uma presidente, não um governo subterrâneo.
Fonte: Jornal "O Estado de S. Paulo", edição de quinta-feira, 6
Um comentário:
Se Dilma não deixar essa corja "famosa" prá trás, nada feito, se quiser fazer um bom govêrno...a primeira coisa que eu faria, seria me divorciar do carêta, que pensa ter sido êle, o responsável pela tranquilidade de seus oito anos de governo. A difernça fundamental entre ela e Lula, é que Lula teve um antecessor que deixou a casa em ordem prá êle.
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