Com a reorganização da
capital baiana iniciada ainda na década de 70, a partir da construção do Centro
Administrativo da Bahia (CAB) e o redirecionamento dos investimentos para a
região do Iguatemi, o centro histórico embarcou em um processo de decadência e
apagamento social. Junto a ele, todos os cinemas de rua de Salvador, sem ter
como se manterem, optaram pela exibição de filmes pornôs, com exceção do que
hoje é conhecido como Espaço Itaú de Cinema Glauber Rocha.
Chamado inicialmente de
Kursal Baiano, o cinema - após campanha de inspiração nacionalista - teve o
nome alterado para Guarany, ainda com "y" naquele momento. Localizado em uma
legítima cinelândia, o espaço, na época considerado o melhor cinema da cidade
em termos de equipamentos e acomodação, era constituído por uma única sala, com
cerca de 1200 lugares, que se estendia até o foyer e possuía uma tela de
proporções descomunais.
Conhecido como a casa do
cinema na Bahia, o cine teatro foi palco de grandes transformações na
cinematografia baiana. Exibiu o primeiro filme falado, clássicos do
cinema internacional, abrigou o Cine Clube de Walter da Silveira e, por
extensão, uma geração potente de intelectuais que se encontrava no local,
sempre aos sábados, para debater as mais diversas temáticas. Glauber Rocha,
Edgard Navarro, Orlando Senna e Caetano Veloso são alguns daqueles que fizeram
do Guarany uma escola.
O vigor dos anos 50 e 60
Apesar das dificuldades da
época, destaca-se, até a década de 60, o bom funcionamento do cinema. Após a
primeira crise, devido à frequente mudança de concessões, em 1940, e o
sucessivo fechamento em 49, o espaço foi totalmente reformulado. A estrutura
neoclássica, marcada por colunas gregas e vitrais, cedeu espaço a uma estética
modernista, delineada por painéis de Carybé e lustres de Mário Cravo. O único
vestígio preservado dessa primeira construção localiza-se no quinto andar e
pode ser visto do terraço ainda hoje: um pórtico.
A reinauguração em 55 marca
uma época de novidades. O público do Guarani, agora sem o "y", eufórico em
filas intermináveis, já pode contar com sistema de ar refrigerado, som
estereofônico e Cinemascope - processo de filmagem com lentes
anamórficas que produzem imagens de grandes dimensões na projeção. O
longa-metragem baiano "Redenção" (1959) inaugura essa idade moderna em Salvador,
que se estende até 63, no ciclo de cinema da Bahia.
Apesar da morte de Walter
da Silveira em 1970, o Cine Guarani mantém grande sucesso comercial, atribuído,
em grande parte à ação do antológico exibidor Francisco Piton, um dos nomes
mais representativos do surgimento, manutenção e progresso da cinematografia
baiana. Somente a partir da década seguinte é que se torna evidente o declínio
do cinema e a impossibilidade de mantê-lo aberto. Decreta-se, então, falência.
O peso de uma década e o
adeus ao ostracismo
Os anos 80
materializaram-se como um período dramático para os cinemas de rua, não apenas
em Salvador, mas em todo o mundo. Era um tempo significativamente difícil tanto
para a produção quanto para a exibição, o que leva ao fechamento radical dos
cines. Pari passu a essas questões está o surgimento das TV's a
cabo, do VHS, das locadoras de vídeos e da televisão, que a partir de 70
começam a ameaçar o império cinematográfico.
Nessa época, havia no Brasil
cerca de 3.200 salas de cinema, número que cai para 800 no intervalo de 10 anos.
Hoje, devido à recente repopularização do cinema, são contabilizadas
aproximadamente 2.400. Ademais, com a erradicação, durante o governo Collor, do
órgão que dava suporte à produção cinematográfica brasileira, a Embrafilme,
registrou-se uma queda abrupta na produção fílmica nacional que passa de 90
para 4 filmes produzidos por ano.
A retomada do cinema
brasileiro data de 95, momento em que os Multiplex começam a aparecer como
alternativa de entretenimento. Mais bem equipados, embora também mais caros e
significativamente menos populares que os cines de rua, as salas de cinema dos
shopping centers passam a ocupar um lugar que antes era dedicado e direcionado
a um tipo diferente de proposta cinematográfica e de público.
Do fechamento em 98 à
reabertura 10 anos depois
Na tentativa de
restabelecer o Glauber enquanto cinema, o empresário e agente cultural Cláudio
Marques engajou-se numa verdadeira saga. Desde o convencimento do governo até a
captação de recursos e patrocínios transcorreram-se oito anos. A ideia do
cineasta era exibir a chamada “art house“, incorporando à programação
filmes independentes de outras nacionalidades e, sobretudo, os brasileiros.
Entretanto, pela impossibilidade de sustentar financeiramente um espaço
comercial apenas com produções fílmicas estritamente independentes, tendo em
vista o reduzido público consumidor desse tipo de produto cultural, optou-se
por inserir os "blockbusters".
Ao reinaugurar o cinema, a
esperança de Marques era de que o renascimento de um espaço de expressiva
importância tanto para a sociedade baiana quanto para a cinematografia local
fosse acompanhado por transformações estruturais e logísticas em todo o entorno
desse ambiente. Após quatro anos e meio de reabertura, porém, o único registro
feito pelo empresário é o da triste permanência da região como lugar
marginalizado e negligenciado pelo Estado. Com uma média de 4 a 5 mil
espectadores por fim de semana, Cláudio denuncia a insuficiência das linhas de
ônibus que circulam no local e o reduzido horário de funcionamento do Elevador
Lacerda, principalmente, nos finais de semana, quando encerra as atividades às
19 horas.
Diferente do que ocorreu no
século passado, as dificuldades apontadas pelo diretor do Glauber Rocha hoje
são outras. A mais latente é a falta de iniciativa e desejo político dos
governos estadual e municipal em criar condições que facilitem a frequência ao
espaço. "Com toda a dificuldade de estacionamento, com toda a sensação de
insegurança que tem o centro histórico, as pessoas têm vontade de vir para cá".
E continua: "estamos em uma encruzilhada cultural. Há o Museu de Arte Sacra, a
Fundação Gregório de Matos, o MAM, o Espaço Cultural da Barroquinha, a Caixa
Econômica… como não se pensa uma política de valorização da região que é um
cinturão cultural? Se não olharmos minimamente para o nosso passado, não vamos
conseguir nos desenvolver nunca", desabafa.
Fonte: Programa Arte, Cultura e Ciência da Ufba
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