No livro "O Teatro em Feira de Santana", de Geraldo Lima, lançado em 25
de setembro de 2015, o artigo "A resistência política à ditadura 1964/85 através das artes
em Feira de Santana", escrito por Hosannah Leite, falecido no domingo,
14.
Em meados do século XX, após a II Guerra Mundial, no Brasil ocorria uma
forte ascensão dos movimentos populares no sentido de assegurar o avanço e
consolidação da democracia em nosso país. Todos os segmentos da sociedade
manifestavam-se de formas variadas dentro dos seus contextos de atuação, fossem
eles políticos partidários, sindicais urbanos e rurais, estudantis, culturais e
artísticos, liberais etc.
Aqui nos prenderemos às ações dentro dos movimentos artísticos e
culturais como uma forma de resistência e ação por uma sociedade democrática
livre das amarras e limites capitalistas que vieram a respaldar a ditadura
militar implantada em 1º de abril de 1964, através do golpe cívico-militar
apoiado por forças capitalistas internacionais.
Mesmo antes do golpe de 1964, os movimentos artísticos culturais já
ensaiavam ações que a história registra e, dentre eles, ficaram conhecidos o
Cinema Novo, a Bossa Nova e os Centros Populares de Cultura (CPC), além das
manifestações culturais diversas como o teatro, música, pintura, escultura,
literatura e poesias etc. Publicações diversas circulavam dentro da sociedade
com variados matizes a depender do segmento que as originavam.
Em Feira de Santana estas manifestações ocorriam envolvendo
principalmente os movimentos estudantis que antes de 1964 já se estruturavam
através das suas entidades classistas e atuavam através dos CPC's, procedendo
uma vinculação com os movimentos operários e camponeses. Se o movimento
sindical local crescia a passos largos, ao lado destes também avançavam os
movimentos socioculturais através de manifestações nas áreas de cinema, teatro,
exposições, recitais, shows musicais, poesia, etc. E sempre buscando uma
transversalidade com os movimentos dos trabalhadores, dentro da concepção
marxista-leninista da aliança operário/camponesa/estudantil.
Com o golpe militar de 1964 e as perseguições que se abateram sobre os
movimentos populares brasileiros, em Feira de Santana a repressão local se deu
de forma intensa, não diferente dos demais sítios geopolíticos do país. As
invasões de sindicatos, entidades estudantis e as prisões de líderes políticos,
sindicais e estudantis se deram com os requintes de brutalidade próprios das
ditaduras. Jornais eram "empastelados", sedes de sindicatos de trabalhadores e
das entidades estudantis destruídas e seus bens destruídos e atirados pelas
janelas em vias públicas. O prefeito do município Francisco Pinto foi afastado
e preso e nomeado o interventor alinhado à ditadura Joselito Amorim, ações
essas respaldadas pela elite política e socioeconômica local.
Os líderes políticos, sindicais e estudantis que não foram presos
buscaram refugiar-se na expectativa da retomada da ação de resistência que veio
a ocorrer de forma gradual. O prefeito local foi deposto ilegalmente, líderes
de esquerda presos, entidades representativas da sociedade fechadas e a cidade
ocupada por tropas do exército deslocadas de Alagoas para, que ao lado da
Polícia Militar, procederem a ampla repressão capaz de coibir quaisquer
resistências ao golpe cívico-militar de 1964.
A história das sociedades mostra que seus filhos não se calam ou fogem
das lutas pela liberdade e pela democracia. Na proporção que avançava a luta de
resistência à ditadura no Brasil, Feira de Santana também contribuía como uma
trincheira de combate às discriminações, às injustiças e à busca da liberdade.
Feira nunca faltou com sua voz e ação aos movimentos de resistência no Brasil.
Dentre estes segmentos resistentes, os movimentos culturais e artísticos
se fizeram presentes desde os primeiros momentos. Fundaram-se entidades como
Scafs e Meta para atuarem nos campos cultural e artístico e que serviam de
ponto de convergência de uma juventude sedenta de justiça e liberdade.
Na área teatral muitas foram as peças encenadas pelos dois agrupamentos
culturais que depois vieram a fundir-se criando uma só entidade com o nome
Mata-Scafs, que montaram espetáculos como "Toda Donzela Tem um Pai Que É uma Fera", "Viúva, Porém Honesta", "Deus Lhe Pague", "Revolução dos Beatos", e de
outros grupos, como Emproarte, Equipe, Teatro Experimental de Feira, Proarte. Trabalhos de outras cidades por aqui eram encenados. Jograis
eram apresentados, especialmente com poesias e textos que retratavam as
condições socioeconômicas e a realidade brasileira. Era uma forma de se
organizar e reagir à ditadura militar. Nestas organizações muitos foram os
estudos e debates em grupos, especialmente sobre o papel das artes nos
movimentos de resistência e sua relação política com a sociedade. Havia uma
consciência ideológica clara e definida.
Além dos aspectos culturais e seus vínculos com a sociedade, a atividade
política ocorria com grande efervescência e desembocava em atividades populares
importantes. Aqui se discutia a participação e reconstrução das entidades
populares estudantis e sindicais, congressos e seminários eram organizados,
exposições de livros, pinturas e esculturas eram efetivadas. Ocorreram
passeatas lideradas por estudantes com a participação efetiva de segmentos
culturais.
Além dessas atividades, a área do cinema também recebia a atenção
necessária, como um instrumento não só de convergência cultural, mas como uma
forma importante de levar conhecimentos e cultura ao povo. Aqui existia um
Clube de Cinema que apoiava e desenvolvia mostras cinematográficas, com semanas
de filmes que os circuitos comerciais não apresentavam. Filmes russos,
poloneses, tchecos, franceses, italianos eram apresentados, por vezes no Cine
Madri, que também fazia parceria com o Clube de Cinema.
A área cultural vivia uma permanente e constante ebulição e era um
celeiro que permitia germinar lideranças que iriam atuar no campo estudantil,
sindical e político de Feira de Santana. Jovens que atuavam na esfera cultural
também desenvolviam atividades nos movimentos de esquerda, coadjuvando a
reconstrução de agremiações políticas clandestinas e participavam com forte
intensidade na política local, atuando no MDB e participando dos processos
eleitorais. Já em 1966, um dos vereadores mais votados do município, Luciano
Ribeiro, era atuante no movimento teatral e um dos fundadores da Scafs e que
veio a se tornar deputado estadual e candidato a prefeito da cidade, com o
apoio à época da esquerda e dos movimentos estudantis e culturais.
Foram muitas as pessoas que atuaram no meio artístico cultural de Feira
de Santana que vieram a se inserir no meio político feirense e que ativamente
resistiram à ditadura militar de 1º de abril de 1964. Nomes como Luciano
Ribeiro e sua irmã Margarida Ribeiro, José Maria Monteiro, Gildarte Ramos da
Penha e sua esposa Alvaceli, Geraldo Lima, Antonia Veloso, Luiz Antonio Santa
Bárbara, Luiz Arthur Morais de Freitas, Hosannah Leite, José Wagner, José
Carlos Teixeira, Deolindo Checcucci. Dezenas de outras pessoas atuaram no
movimento cultural resistente daquela época e ainda hoje ocupam espaços
importantes nas mais diversas esferas da sociedade feirense e baiana, como políticos,
jornalistas, empresários, professores etc. Alguns já falecidos rendemos
homenagens e reconhecemos a importância que desempenharam em nossa história.
Os anos 1960 foram efervescentes em Feira de Santana e o nosso povo,
especialmente a sua juventude, se fez presente na construção da nossa história,
muitas das vezes desconhecida do nosso povo, mas que fica registrada nos
corações daqueles que viveram e construíram aquela época e que souberam
resistir com altivez e garra à ditadura militar truculenta e, em suas
trincheiras de lutas, ajudaram a construir a nossa história.
A nossa história não pode somente ser contada pelo ponto de vista das
elites. Os segmentos populares sempre estiveram, ativamente,
construindo caminhos libertários e democráticos em nossa terra, sempre
inseridos nos anseios e lutas do povo brasileiro.
Honra e glória aos nossos antepassados que legaram ao presente as suas
contribuições por novos dias de liberdade e democracia.
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