Por Gustavo Nogy
Antigamente, em
toda família que se prezasse havia um gay e ninguém morria disso. Se não fosse
o filho, seria o neto. Se escapasse o neto, seria o primo. Ou o sobrinho. Ou o
filho do primo. Não havia reunião familiar - entendendo-se por familiares todos
aqueles mais próximos, de convivência diária ou quase, somados à horda de
desconhecidos que invadem os velórios e os casamentos - sem que aparecesse
algum infante com trejeitos e posturas excêntricas, e inflexões vocais
suspeitíssimas.
Os parentes - que
até então se desconheciam com rigor - arrumavam logo interesse comum, e
comentavam: "Esse não é o Fulano, filho de Beltrana? Nossa, como ele está...
mudado". "É, também achei. Parece que fez faculdade de design, mas
agora mexe com teatro". Esta era a vida, nos tempos bons em que a
homossexualidade não era outra coisa senão homossexualidade. Uma coisa que
existia.
Os tempos são
outros e os gays, admita-se logo, não se contentam. As estripulias de Maio de
68 pretendiam libertar o erotismo dos rígidos padrões morais da sociedade
burguesa e cristã (que, àquela altura, já nem eram tão rígidos, nem tão
cristãos). Ao que parece, o objetivo foi atendido. Mas isso - é evidente - não
basta. Agora os gays querem o contrário do que então queriam: querem casa,
querem comida, querem roupa lavada. Querem aliança, filhos e seguro-saúde.
Querem discutir relação e, quem sabe, sonhar com dias melhores e mais livres.
De novo. Gays são reacionários. Vejam só.
Era uma vez, Guido Barilla, dono da fabricante de massas Barilla.
Ao programa de rádio La Zanzara, ele comete a imprudência
inaceitável de dizer o que pensa. Ninguém pode dizer o que pensa, salvo se
disser que pensa o que pensam todos. Ele disse que "nunca faria um comercial
com uma família homossexual... se os gays não gostarem, eles podem procurar
outras marcas para comer". Súbito: guerra mundial marcada para a próxima
parada, choro, comoção, boicote, carnaval fora de época na Bahia. Os gays não
comem mais as massas fabricadas pela Barilla. Os gays não comem
mais as massas italianas. Os gays não comem mais os italianos, ponto.
Os jornais mancheteiam: "Declaração homofóbica de...". "Gays se revoltam...". "Associações homossexuais boicotam o talharim...". A organização Arcigay declara
seus princípios: "Todos somos do mesmo macarrão!". Comovente. Tudo dentro do
figurino. E tudo porque o dono de uma empresa achou por bem dizer os seus valores
e, não bastasse, contra toda etiqueta mercadológica - o que já seria de se
respeitar pela coragem -, deixar claro: "Quem não gostar, não compre meus
produtos". Isso é civilizado, e quem se escandaliza deveria ter a prudência de
considerar umas palavrinhas. Liberdade. De. Escolha.
Os consumidores têm opções bastante razoáveis. A primeira delas seria ignorar
os tais valores familiares do empresário e continuar a consumir os (ótimos)
produtos da marca. Não me consta que lasanha tenha sexo. E não faço idéia se o
produtor de café que eu bebo, ou se o criador de porcos dos quais eu como o
bacon são cristãos, conservadores e virtuosos. Custa acreditar que o CEO da
Coca-Cola, roedores à parte, leia os mesmos livros que eu leio e vá à missa aos domingos (vai saber se não é judeu).
A mim, pouco importa o que pensa o padeiro, contanto que ele saia da cama às
quatro da manhã e me entregue o pão. Quero pão fresco e sem ideologias. A graça
do livre mercado é essa: funciona, a despeito das boas intenções. O dono da
venda pode detestar os clientes, mas ele precisa dos clientes mais do que os
clientes precisam dele. Há outras vendas num raio de cinco quilômetros.
Nós temos ainda uma segunda razoável opção: deixar mesmo de consumir a pasta do
senhor Barilla. Sem grandes desesperos. Compre-se de outra marca. Isso também é
civilizado. E civilizado é entender que um empresário - e um açougueiro, e um
bispo, e um contador - tem seus valores e que não há nada de ruim, nisso. E não
há nada de especialmente ruim em torná-los públicos.
Mas a civilização é pouco para os ativistas. Eles não querem comer o penne do
senhor Barilla e desprezar suas opiniões. Eles não querem deixar de comer o
penne e igualmente desprezar suas opiniões. Eles querem o fim do penne do
senhor Barilla, querem que o senhor Barilla seja socialmente execrado por
pensar o que pensa e dizer o que diz, com penne ou sem penne. E funciona. Dois
dias se passam e lá está o fabricante de massas a se retratar, e a dizer que
não disse o que disse, e a dizer que não pensa o que de fato pensa.
Não defendo a liberdade do senhor Barilla apenas porque seus valores, em parte,
coincidem com os meus. Tivesse eu uma fábrica de macarrão e meus comerciais
seriam, sim, à moda da casa: papai, mamãe, filhinhos. Todos felizes. Venderia
menos, mas ficaria mais satisfeito com a minha consciência. Defendo a liberdade
do italiano como defendo a liberdade de quem quer que seja dizer o que pensa e
arcar com as conseqüências respectivas. E falar de conseqüências não é falar de
processos judiciais. Falo de uma liberdade radical, contanto que seja radical
para todos, e não para alguns. Gays adoram dizer o que pensam, mas detestam
ouvir o que pensam aqueles que não pensam como eles. Gays são reacionários. Se
há uma causa gay, a causa é uma só: gay.
Publicado no site Ad Hominem
Fonte: "Mídia Sem Máscara"
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