Por J.
R. Guzzo
Um caderno de anotações sobre os fatos que
vêm acontecendo no Brasil durante as três últimas semanas poderia conter, com
bastante precisão e dentro da "margem de erro" tão útil aos institutos de
pesquisa, o registro das seguintes realidades:
- A presidente Dilma Rousseff simplesmente
não está à altura da situação que tem o dever de enfrentar. Não sabe o que
fazer, o que acha que sabe está errado, e, seja lá o que resolva, ou diga que
está resolvendo, não vai ser obedecida na hora da execução. O momento exige a
grandeza, a inteligência e os valores pessoais de um estadista. Dilma não tem
essas qualidades. O autor deste artigo também não sabe o que deveria ser feito
- para dizer a verdade, não tem a menor ideia a respeito. Em compensação, ele
não é presidente da República.
- A mais comentada de todas as propostas que
a presidente anunciou para enfrentar a crise foi um misterioso plebiscito, do
qual jamais havia falado antes, para aprovar uma nova Assembleia Constituinte
destinada exclusivamente a fazer uma "profunda reforma política". Não houve,
também aqui, a mínima preocupação em pensar antes de falar, para ver se
existiria alguma ligação entre essa ideia e a possibilidade real de executá-la
dentro das leis vigentes. Não existia, é claro. Resultado: a proposta de Dilma
morreu em 24 horas, afogada num coro de gargalhadas. A hipótese otimista é que
o governo esteja a viver, mais uma vez, um surto agudo de desordem mental e
descontrole sobre seus próprios atos. A pessimista é que o PT, sob o comando do
ex-presidente Lula. esteja querendo empurrar Dilma para uma aventura golpista.
- A única "reforma política" que o PT quer
fazer, como se sabe há anos, é a seguinte: tirar do eleitor brasileiro o
direito de escolher os deputados nos quais quer votar, obrigando a todos a
votar numa "lista fechada" e composta exclusivamente de nomes que os donos dos
partidos escolherem; "financiamento público" para as campanhas, ou seja, sacar
dinheiro do Tesouro Nacional e entregá-lo diretamente aos políticos nos anos
eleitorais. Além dos milhões que já recebem pelo "caixa dois" das empresas
privadas (e que o próprio Lula, numa "entrevista" armada durante o mensalão,
considerou algo perfeitamente normal), receberiam também dinheiro que vem
direto do contribuinte.
- A "reforma" Lula-PT não propõe nenhuma
mudança, uma única que seja, em nada daquilo que a população realmente quer que
mude, e que tem sido um dos alvos principais da ira das ruas: o fim de qualquer
dos privilégios grotescos dos parlamentares, como carro privado para cada um,
casa de graça, verbas que podem gastar como quiserem, e que acabam
sistematicamente no próprio bolso ou no de sua família. Podem faltar quanto
quiserem. Vendem ou alugam seus assentos a "suplentes". A reforma petista
mantém o absurdo sistema eleitoral que nega ao cidadão brasileiro o direito
universal de "um homem, um voto". Recusa o voto distrital, adotado em todas as
democracias verdadeiras do mundo. Nada disso: num ambiente de catástrofe, em
que até uma criança de 10 anos sabe que o povo tem pelos políticos uma mistura
de asco, desprezo e ódio, o PT quer dar ainda mais dinheiro a eles.
- A presidente disse que "está ouvindo" os
indignados que foram às ruas. Mas não está. Se estivesse, não existiria, em
primeiro lugar, o inferno que é a vida diária de milhões de brasileiros, a quem
o governo ignora; porque dá o Bolsa Família, anuncia vitórias imaginárias e
acha que governar é fazer truques de marquetagem, convenceu-se de que o povo
está muito bem atendido. Escutando os protestos? Ainda em março, Dilma recusou
uma suíte de 80 metros quadrados num hotel de luxo da África do Sul, por achar
que era pequena demais. A culpa, é claro, foi passada ao Itamaraty. Mas, quando
o fato se tornou conhecido, a presidente não disse nenhuma palavra de desculpa,
nem mandou o Itamaraty tomar alguma providência para que um fato assim não se
repita. Foi adotada uma única medida: de agora em diante o governo não vai mais
revelar nenhum dado das viagens presidenciais.
- Ao longo de vinte dias, Dilma, seus 39
ministros e os mais de 20.000 altos funcionários de "livre nomeação" do governo
não vieram com uma única ideia que pudesse merecer o nome de ideia. Suas
propostas demoraram até a semana passada para aparecer - e, quando enfim
vieram, anunciaram coisas desconectadas com a realidade ou entre si próprias,
pequenas na concepção e nos objetivos, incompreensíveis ou apenas tolas. Foram
tirando ao acaso de uma sacola, e jogando em cima do público, as miudezas que
passaram por seu circuito mental nestes dias de ira: mudar a distribuição de
royalties do petróleo, importar 10.000 médicos estrangeiros, punir a "corrupção
dolosa" como "crime hediondo" (Dilma, pelo jeito, imagina que possa haver algum
tipo de corrupção não dolosa), dar "mais recursos" para isso ou aquilo,
melhorar a "mobilidade urbana". É puro PAC.
- No jogo jogado, tudo isso quer dizer três
vezes zero. Numa hora dessas eles vêm falar em royalties, assunto técnico que
exigirá meses ou anos para ser reformulado? Importação de médicos? Só agora
descobriram que faltam médicos no serviço público por causa da miséria que lhes
pagam? Só depois que o povo foi para a rua perceberam que a corrupção é um
crime abominável? Se os que mais roubam estão dentro da máquina do governo,
como acreditar num mínimo de sinceridade nesse palavrório todo? A presidente e
seu entorno anunciaram medidas que só o Congresso pode aprovar. Outras dependem
do Judiciário, ou de estados e prefeituras. O que sobra é o fim do resto.
- Os números apresentados até agora não fazem
nenhum sentido. Falou-se em aplicar "50 bilhões" de reais em obras de
"mobilidade urbana". Que raio quer dizer isso? Parece que se trata de melhorar
o transporte em metrô, trens e ônibus - mas não existe a mais remota informação
concreta sobre como fazer isso na prática, nem onde, nem quando. Não é uma
providência de verdade; é apenas uma cifra chutada e um amontoado de dúvidas. O
trem-bala, por exemplo - será que entra nessa conta? Há algum projeto de
engenharia pronto para alguma obra a ser feita? Alguém no governo sabe dizer
onde estão os tais "50 bilhões"? Não é surpresa que um grupinho de garotos do
Movimento Passe Livre tenha saído de um encontro com Dilma dizendo que ela é
"completamente despreparada" no assunto. Os números citados para a saúde são
igualmente desconexos: 7 bilhões de reais para "20.000" unidades de atendimento
médico. Quais unidades? Onde? Esses "7 bilhões", se existissem, equivaleriam a
20% do que se estima que será gasto nas obras para a Copa de 2014. Dá para
entender? É a fé cega na incapacidade do povo brasileiro em fazer contas.
- A marca mais notável da defesa que o
governo fez de si próprio, durante estes dias de revolta, é que não há uma
defesa. Pedem que o povo reconheça as "transformações" que fizeram no país.
Quais? Após dez anos de governo popular do PT, o Brasil está em 85° lugar no
IDH - subiu apenas 5% em todo esse tempo, e teve crescimento praticamente nulo
durante os anos Dilma. Isso ocorreu num período de dramáticos avanços na renda
de todos os países pobres: apenas entre 2005 e 2011, 500 milhões de pessoas
saíram da pobreza em todo o mundo. O governo do petismo transformou o Brasil
num país com 50.000 assassinatos por ano, e onde 75% da população não é capaz
de entender plenamente o que lê. A rede pública de saúde foi transformada num
monstro em que o cidadão pode esperar seis meses, ou um ano, por um exame
clínico, e pacientes aguardam atendimento jogados no chão de hospitais, como se
vivessem num país em guerra. A transformação do sistema portuário criou um
Brasil que não consegue embarcar o que produz nem desembarcar o que compra lá
fora. Conseguiram, até, transformar o significado da palavra "corrupção", ao
venderem a ideia de que qualquer denúncia contra a roubalheira do governo é
"moralismo" - ou seja, o erro é denunciar o erro.
- As ruas iradas de junho deixaram à vista de
todos um fato que muita gente já sabe, mas quase nunca é mencionado: o
ex-presidente Lula é um homem sem coragem. Líderes corajosos jamais se escondem
nas horas de dificuldade brava. Ao contrário, vão para a frente, tomam posição
nos lugares mais arriscados, e assumem a luta em defesa do que acreditam. Não
ficam escondidos da população, fazendo seus pequenos cálculos para descobrir o
lucro ou prejuízo que teriam ao aceitar suas responsabilidades - pensam,
apenas, no seu dever moral, nos seus princípios e nos seus valores. Coragem é
isso - e isso Lula não foi capaz de mostrar. Onde está ele? Na hora em que o
Brasil mais precisou de uma liderança em sua história recente, o homem sumiu.
Vive dizendo que não há no mundo ninguém que saiba, como ele. subir no carro de
som ou no palanque e "virar" qualquer situação de massas. Na hora de agir,
trancou-se na segurança do seu esconderijo. E a "negociação" - na qual também
se julga um ás incomparável -, onde foi parar? Para quem tem certeza de que
negociou "a paz no Oriente Médio", Lula teria de estar desde os primeiros
momentos tratando de montar algum tipo de negociação. Na vida real, limitou-se
a cochichar com subalternos, dar palpite e falar mal dos outros. Lula sempre
fez questão de achar "inimigos". Pois achou, agora, todos os que poderia
querer.
- Ficou claro que o governo está errando há
dez anos na avaliação que faz da imprensa livre. Confundiram tudo: acharam que
a internet, com a sua audiência sem limites, estava anulando jornais e
revistas, quando na verdade tem feito exatamente o contrário: reproduz o que
sai na imprensa para milhões de pessoas que não leram o noticiário escrito. E
agora? A internet mostrou-se um multiplicador incontrolável do conteúdo da
imprensa, e a mais poderosa alavanca de notícias que jamais se viu no país.
Vídeos amadores, diversos deles falados em inglês com legendas em português e
dirigidos aos internautas do mundo todo, apresentaram denúncias devastadoras e
bem articuladas sobre a insânia governamental que levou o povo à rua. Em apenas
uma semana, de 14 a 21 de junho, um desses vídeos, entre dezenas de outros,
teve mais de 1,3 milhão de visualizações. Todas as informações que estão ali
foram tiradas da imprensa livre. O governo não entendeu nada. Mas desta vez não
teve como mentir: não conseguiu dizer que as manifestações eram invenção da
"imprensa de direita".
- Os descontentes de junho mostraram mais uma
vez, como a Bíblia nos diz em Provérbios 16:18, que "a soberba vem antes da
queda". Nunca, possivelmente, o Brasil esteve sob o comando de gente tão
soberba quanto Lula, Dilma e os barões do PT, e tão à vontade em exibir sua
arrogância. Estão levando, agora, o susto de suas vidas, ao descobrirem que marquetagem,
demagogia e exploração da ignorância não são mais suficientes para desviar a
atenção do povo para o desastre permanente que causam ao país. Espantam-se que
o povo faça contas - e se sinta roubado com uma Copa do Mundo que pode acabar
custando até 35 bilhões de reais, mais do que as últimas três somadas.
Espantam-se que as suas esperanças de livrar da cadeia, com velhacaria
jurídica, os mensaleiros mais graúdos estejam desabando. Espantam-se ao saber
que muita gente está cada vez mais cheia de gastar cinco horas diárias para ir
ao trabalho e voltar para casa. Desafiaram o ensinamento básico de Abraham
Lincoln: "Pode-se enganar a todos durante algum tempo; pode-se enganar alguns
durante todo o tempo; mas não se pode enganar a todos durante o tempo todo".
Estão colhendo o que semearam.
Fonte:
Revista "Veja"
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