Ramona Matos Rodriguez, de 51 anos, mostrou o que o governo brasileiro sempre escondeu: o contrato diferenciado firmado com médicos de Cuba
Marcela
Mattos, de Brasília
A
médica cubana Ramona Matos Rodriguez (José
Cruz/Agência Brasil)
Há uma semana, a médica
cubana Ramona Matos Rodriguez, de 51 anos, fugiu da cidade de Pacajá (PA),
onde estava desde outubro trabalhando em um posto de saúde, e viajou para
Brasília. Saiu de casa cedo, levando apenas uma pequena mala com roupas e toda
a documentação necessária para comprovar o que o governo brasileiro sempre
escondeu: o contrato diferenciado firmado com profissionais de Cuba para
ingressarem no programa Mais Médicos, futura bandeira eleitoral de Dilma
Rousseff. Enquanto todos os profissionais recebem 10.000 reais por mês, os
cubanos têm salário de 400 dólares - cerca de 1.000 reais. Segundo ela, há uma
promessa de que outros 600 dólares seriam depositados em uma conta
bancária em Havana - o que Ramona diz não acreditar. Não demorou para
ela ser alvo de ataques dos defensores do programa governista. O mais
exaltado – e grosseiro - foi o deputado José Geraldo (PT-PA), que subiu à
tribuna para acusar a médica de abusar do álcool e "levar um homem
estranho" para casa. “Querem me desmoralizar para tirar o foco das denúncias
do Mais Médicos”, disse Ramona ao site de VEJA. “Em Pacajá, não
tinha liberdade para sair na rua", completou.
Leia a entrevista ao site de VEJA:
Leia a entrevista ao site de VEJA:
A senhora conseguiu
retirar a carteira de trabalho e a Associação Médica Brasileira (AMB)
pretende lhe convidou para trabalhar. Pretende aceitar?
A AMB não fez uma proposta formal
de trabalho. Eu vi as notícias que falaram sobre isso, mas até agora nada me
foi dito. Eu penso em aceitar, claro, até porque estou esperando a resposta do
Conare [Comitê Nacional para os Refugiados] sobre o pedido de refúgio e isso
pode durar vários meses. Também estou esperando resposta da Embaixada Americana
sobre pedido de asilo político, que foi o primeiro que fiz quando cheguei
a Brasília, e isso demora de três a quatro meses. Neste tempo, preciso
trabalhar, custear as minhas coisas e por isso eu quis tirar a carteira de
trabalho, para poder viver. Na associação, eu me sentiria mais respaldada e,
como não posso ser médica aqui, gostaria de conseguir um trabalho na área da saúde.
O que mudou em relação à rotina em
Pacajá?
É uma mudança radical. Eu não podia fazer o que estou
fazendo aqui, que é me expressar livremente. Não podia dizer o que sentia ou o
que pensava nem com as duas médicas cubanas que moravam comigo, porque elas
poderiam relatar ao nosso superior. Também não tinha liberdade para sair na rua
ou ir para qualquer lugar. Tinha de pedir permissão para um médico cubano que
era um coordenador do programa. A minha vida em Pacajá era de trabalho, eu
trabalhava com muitos pacientes, era a única médica do posto de saúde, e
gostava muito. Aqui estou tranquila porque estou protegida, mas estou muito
ansiosa por tudo o que está acontecendo. Não consigo dormir. De noite fico
muito nervosa, durmo no máximo quatro horas.
Mas quando a senhora pedia permissão
para sair, eles autorizavam? Eu nunca pedi porque sabia que não
iam autorizar. Não tinha liberdade de pedir. As cubanas que moravam comigo
diziam que se eu quisesse ir para algum lugar, deveria informá-las
para que pedissem ao nosso coordenador. Não sei qual a relação entre
as médicas e o coordenador, não me interessava, mas não tinha boa relação com
elas.
A senhora mantinha contato com sua
filha em Cuba?
Sim, eu telefonava de um orelhão. Aqui em
Brasília tenho falado com ela todos os dias, de uma a duas vezes. Ela me disse
que a minha irmã que morava na minha casa foi desalojada pela polícia e pelo
Partido Comunista. Minha casa era do Estado, eu sabia que isso iria acontecer.
Minha filha mora em outro lugar e conta que eles a visitam todos os dias,
perguntam se sabia que eu desistiria do programa. Ela responde que não sabia
nada, o que é verdade.
Ela está com medo?
Sim.
Até agora não aconteceu nada com ela. Mas é algo psicológico... Quando uma
pessoa bate à sua porta todos os dias e te faz muitas perguntas....
Teme por sua filha?
Claro.
Ela está se formando na faculdade, também em medicina. Ela tem de fazer
trabalhos, provas, e temo que qualquer coisa que ela faça tomem seu diploma ou
atrapalhem sua formação.
Um deputado afirmou que a senhora foi
flagrada embriagada e "levou um homem estranho" para a casa
onde se hospedava.
Tenho o sentimento de que querem me
desqualificar. Querem me desmoralizar para tirar o foco das denúncias do Mais
Médicos. Tudo o que disseram é mentira. Vi que quem disse isso [ao deputado]
foi um presidente do Conselho de Saúde de lá. Eu não o conheço. E se eu fosse
alcoólatra, levasse homens para a minha casa e não sei mais o que falaram
de mim, será que eles não iriam me punir ou aplicar uma advertência? Isso é uma
mentira, uma farsa. Não bebo, não tenho marido, não coloco homens no meu
quarto. Estão tentando desviar a atenção.
Desviar o foco do quê?
A denúncia que fiz sobre o salário menor que os cubanos recebem, sobre o
tratamento discriminatório com os médicos cubanos.
A senhora tem mantido contato com seus colegas cubanos?
A senhora tem mantido contato com seus colegas cubanos?
Não, não quero prejudicá-los. Se eu
telefonar para os meus amigos cubanos, vou prejudicá-los porque estarão
conversando com uma desertora, uma traidora. Eu não quero causar nenhum
problema aos meus amigos. Mas o que eu fiz foi por todos, para que todos os
cubanos tenham direito aos mesmos benefícios que médicos de outros países
têm. Mas eu sei o que aconteceria com eles se tivermos contato, não
se pode ter relações com pessoas desertoras.
A senhora avalia que a sua atitude pode mudar a realidade dos cubanos que estão no Brasil?
A senhora avalia que a sua atitude pode mudar a realidade dos cubanos que estão no Brasil?
Acredito
que sim. Não posso afirmar que eles vão passar a receber 10.000 reais por mês,
isso depende de muita gente. Mas penso que isso é possível. Eles são médicos e
têm os mesmos direitos de todos. O que me move é a liberdade de expressão, a
liberdade de denunciar tudo isso para que não siga acontecendo com outras
pessoas.
Para onde vai o dinheiro que vocês
estão deixando de receber?
Não sei. As pessoas no Brasil
dizem que esse dinheiro vai para o regime cubano, mas nós jamais soubemos dos
detalhes do programa. Nem a nova leva de médicos que chegou na última semana a
São Paulo sabe quanto vai ganhar. É tudo demasiadamente obscuro.
A senhora já ouviu falar sobre o contrato com a Organização Panamericana da Saúde (Opas)?
A senhora já ouviu falar sobre o contrato com a Organização Panamericana da Saúde (Opas)?
Não. O contrato que fechamos foi com a Sociedade Mercantil Cubana
Comercializadora. Não sei nem que entidade é essa. Três dias antes de vir, nos
deram o contrato e assinamos. Quando fui para a Bolívia, não foi por essa
sociedade. Foi uma missão médica humanitária. Esse é diferente, um contrato que
eu não sabia com quem eu estava fechando. O Ministério da Saúde de Cuba que
intermediou.
O plano da senhora
é voltar para os Estados Unidos?
Meu plano é ser livre. Agora tenho de trabalhar para
me manter. A primeira petição que fiz foi para ir para os Estados
Unidos participar do Parole [programa que recebe médicos desertores],
estou esperando uma resposta da Embaixada Americana que disse que eu teria
de esperar de três a quatro meses. Essa é a minha vontade maior. Mas, nesse
intervalo, entrei com o pedido de refúgio no Brasil porque estava com medo de
me deportarem. A Polícia Federal foi até a minha casa, tinham rastreado as
minhas ligações e sabiam que eu estava em Brasília. Se me mandarem para Cuba,
serei presa.
O ministro da Justiça nega que a
Polícia Federal tenha monitorado a senhora.
Na última
terça-feira, recebi um telefonema da pessoa que me ajudou a fugir e ela me
disse que a Polícia Federal tinha ido a casa dela, que não era a casa que
eu morava, porque tinham rastreado as minhas ligações. Eles disseram que sabiam
que eu tinha ligado para ela e que ela me ajudou a fugir. Os policiais disseram
ainda que sabiam onde eu estava e que viriam me buscar em Brasília. Também
acionaram a amiga que me buscou no aeroporto quando eu cheguei aqui.
A senhora já sabia que receberia menos. O que a levou a fugir após quatro meses?
A senhora já sabia que receberia menos. O que a levou a fugir após quatro meses?
A gente sempre
tem de estudar como fugir. Em dezembro eu enviei um e-mail à Embaixada
Americana perguntando qual o procedimento para conseguir o visto. Eles me
falaram quais documentos eu precisaria levar e quando eu já estava com tudo
pronto e tive a garantia de que não estavam me vigiando, fugi. Falei para as
cubanas que moravam comigo que estava me sentindo só e que uma amiga me chamou
para uma fazenda. Às 7h, bati na porta delas e avisei que estava saindo. Deixei
tudo para trás. Agora eu sou livre.
Fonte: "Veja"
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