A Globonews reexibe a uma da manhã
e às onze da manhã desta terça-feira o depoimento do ex-guerrilheiro Carlos
Eugênio Paz, o "Clemente". O último comandante militar do grupo guerrilheiro
ALN faz confissão sobre execução de companheiro porque acha que é hora de todos
os lados envolvidos na luta armada virem a público dizer o que aconteceu nos
"porões".
Por Geneton Moraes Neto
Um dos
principais personagens da luta armada contra a ditadura militar confessou,
diante das câmeras da Globonews, ter participado pessoalmente da execução de um
companheiro - um integrante da chamada "coordenação nacional" da Ação
Libertadora Nacional (ALN) que caíra em desgraça junto ao comando da
organização.
Em
declarações anteriores, o ex-guerrilheiro admitira que tinha participado da
reunião do "Tribunal Revolucionário" que selara a execução. Mas nunca tinha
admitido ter sido um dos executores da sentença.
O cenário
da confissão foi o estúdio G da TV Globo, no Jardim Botânico, durante a
gravação de um depoimento para o programa "Dossiê Globonews" (a
entrevista completa foi exibida no domingo, às 17h05). O autor da declaração: Carlos Eugênio Paz, o Clemente, comandante
militar da Ação Libertadora Nacional, organização criada por Carlos Marighella
para combater, com armas, o regime militar.
Primeiro,
Carlos Eugênio Paz falou genericamente sobre a decisão "colegiada". Depois, ao
ser perguntado pela terceira vez se tinha participado diretamente da execução,
respondeu:
- É uma
informação que até hoje não dei. Você está perguntando. A verdade verdadeira é
que não dei porque ninguém teve esta atitude de me perguntar diretamente.
Participei - sim - da ação. Um comando de quatro companheiros participou. Não
fui sozinho. Os outros três estão mortos. A execução foi feita a tiros, numa
rua, nos Jardins, em São Paulo, no dia 23 de março de 1971. Tomamos aquela
decisão coletivamente. Era uma decisão de organização. Não assumo sozinho. Não
sou maluco, não sou louco de decidir uma coisa dessa sozinho. Isso é uma direção.
A ALN considerou que ele passava a ser um perigo para a própria
organização,porque era dirigente, pela quantidade de informações que ele tinha
e pelo fato de que estava abandonando companheiros à própria sorte num combate.
É essa a questão.
Ao quebrar
um voto de silêncio que deveria durar até a morte, Carlos Eugenio Paz diz que
quer dar o exemplo nestes tempos de Comissão da Verdade: se um ex-guerrilheiro
confessa participação num ato "nada glorioso", militares envolvidos em atos
violentos deveriam, também, vir a público para relatar o que ocorreu nos
"porões":
-
Enquanto as duas partes não falarem abertamente, vai se ficar jogando tudo para
baixo do tapete. Faço uma exortação: eu estou aqui contando tudo. Conto o que
dá glória e o que não dá glória. O nosso lado foi todo investigado. O que não
foi investigado é: onde está Paulo de Tarso Celestino - da ALN ? Onde está
Jonas? Cadê o corpo de Jonas ? ( Preso por agentes do Doi-Codi no Rio de Janeiro, em 12
de julho de 1971, o advogado Paulo de Tarso Celestino, que militava na ALN,
desapareceu desde então. O ex-operário Virgílio Gomes da Silva, o Jonas, um dos
chefes da ALN, comandou em setembro de 1969 o operação de seqüestro do
embaixador americano. Preso três semanas depois, entrou para a lista dos desaparecidos
políticos). Evidentemente, mataram. Mas
por que mataram? Onde mataram? Quem matou? Onde está? Isso nos importa.
Porque os livros de História precisam ter estas lacunas preenchidas. Você não
pode entrar na História, causar tudo o que causamos e, depois, não querer
assumir as coisas. Eu assumo! Como não temos vergonha do que fizemos, contamos.
A
confissão do ex-comandante militar da ALN significa, na prática, que uma cena
ocorrida no dia 23 de março de 1971, na rua Caçapava, na Consolação, em São
Paulo, finalmente ganhou um desfecho - quarenta e um anos depois. Naquele dia,
um comando da ALN formou uma expedição punitiva para executar a tiros o
militante Márcio Leite de Toledo. Ex-estudante de Sociologia de vinte e seis
anos de idade, Toledo tinha sido enviado a Cuba para treinar guerrilha. Voltou,
clandestino, ao Brasil.
A volta
coincidiu com a morte de dirigentes da ALN, capturados pelos órgãos de
segurança. Márcio se tornou, então, uma espécie de dissidente dentro da
organização. Tinha dúvidas sobre se a tática de luta da ALN era correta.
Resultado: reunido, o comando da ALN decidiu que Toledo passara a ser um perigo
para a organização. Se desertasse, levaria consigo todos os segredos sobre as
táticas de luta, identidade dos militantes e planos da ALN.
A decisão
extrema foi tomada: Mário seria executado. Um encontro foi marcado para a rua
Caçapava. Quando chegou ao local, Márcio Toledo Leite foi surpreendido pelo
comando da ALN - que abriu fogo contra ele. Panfletos deixados no local diziam
que a ALN, "uma organização revolucionária em guerra declarada, não pode
permitir uma defecção desse grau em suas fileiras".
Os
executores da sentença de morte selaram, desde então, um pacto de silêncio:
- "Um
comando é designado. Os componentes fazem pacto de silêncio. O ato mais
polêmico da história da ALN é cometido (…). É uma ação de sobrevivência, não
nos trará glórias nem conseguiremos jamais saber se foi ou não acertada,
simplesmente os tempos exigem" – escreveria Carlos Eugênio em suas "memórias
romanceadas" - o livro "Viagem à Luta Armada".
Numa
declaração ao "Fantástico", em 1996, ele finalmente reconheceria que a morte de
Márcio Toledo foi "um erro", mas não admitiu a participação direta na execução:
- O
comando de quatro pessoas tomou a decisão de manter o segredo até a morte.
MISSÃO: SEQUESTRAR O COMANDANTE DO II
EXÉRCITO
"Clemente"
é o único sobrevivente do comando da ALN. Todos os outros estão mortos. Carlos
Eugênio - que adotou como nome de guerra o sobrenome de um ex-jogador do
Corinthians e do Bangu, Ari Clemente - diz, na entrevista, que um dos mais
ousados ataques da ALN chegou a ser parcialmente executado, em São Paulo: nada
menos que o sequestro do comandante do II Exército, general Humberto de Souza
Melo, um militar de "linha dura". O ataque não chegou a ser noticiado pelos
jornais, então submetidos à censura. A guerrilha nunca tinha tentado seqüestrar
um militar de alta patente.O comando da ALN decidiu, no início de 1971, que a
hora tinha chegado.
A ALN
descobriu que o comandante do II Exército frequentava uma igreja batista na rua
Joaquim Távora, na Vila Mariana, em São Paulo. Um comando de dez guerrilheiros
foi ao local. O que aconteceu foi uma cena digna de filme de Tarantino:
guerrilheiros e agentes do DOI-CODI - uns apontando armas para os outros. Em
meio a tudo, o comandante do II Exército, sob a mira do comandante Clemente:
- Eu
estava com um fuzil. Nosso companheiro José Milton Barbosa estava com uma
metralhadora alemã de nove milímetros. Chegamos a render o general na porta da
igreja. Neste momento, chega uma patrulha do DOI-CODI. Ficou o general - com
uma pequena comitiva - na porta da igreja. Nós, em volta do general. E os
agentes do DOI-CODI em volta da gente. Houve um "cerco dentro do cerco". E
ainda havia outro carro nosso - que estava apontando para o "cerco do cerco".
Eu disse ao general: "Aqui, vai morrer muita gente. Os agentes estão nos
cercando. Mas nós estamos o cercando. Se algum tiro for disparado, a primeira
rajada vai ser no peito do senhor! Vai ser um morticínio". O general disse: "Não! Aqui, hoje, ninguém vai morrer!". Começamos a recuar, mas sempre
apontando as armas para ele. Fui o último a entrar no nosso carro - que partiu
em disparada. Devo dizer que o general se portou como combatente. Há uma coisa
que, nós, combatentes, prezamos: é o outro combatente se comportar como
combatente. O general não demonstrou nervosismo. Neste dia, a gente salvou a
vida de um bocado de gente - inclusive do general. Porque, se eles disparassem,
nós iríamos disparar. O general ia morrer. Quem estava na comitiva morreria. E
nós todos iríamos morrer também.
O CONSELHO DE MARIGHELLA: "UM COMANDANTE SÓ
APRENDE A MANDAR QUANDO APRENDE A OBEDECER"
Carlos
Eugênio cita três nomes que estavam na lista dos "sequestráveis" da ALN: o
presidente do Bradesco, Amador Aguiar; o presidente da Federação das Indústrias
do Estado de São Paulo(Fiesp), Theobaldo De Nigris, além do presidente do grupo
Ultra, Peri Igel:
- Tínhamos
essa lista. Prefiro chamar de captura de agentes do inimigo, não de
seqüestro. Jamais seqüestramos alguém para pedir dinheiro. Queríamos libertar
nossos companheiros presos e torturados. Marighella definia muito bem: quem vai
financiar nossa atuação é o capital financeiro. Não estamos tirando dinheiro do
correntista. Estamos tirando dinheiro do dono do banco. Sempre foi assim.
Assaltávamos bancos, expropriávamos dinheiro dos carros pagadores.
O
envolvimento de Carlos Eugênio Paz, o "Clemente", com a ALN começou cedíssimo.
Aos dezessete anos de idade, ouviu a pregação de Carlos Marighella,
pessoalmente. O fundador da ALN recomendou que ele servisse ao Exército no
Forte de Copacabana. O conselho que recebeu de Marighella:
- Você
não vai ao Exército para aprender a atirar. Porque aprender a atirar você pode
aprender aqui mesmo. Quero que você vá lá para duas coisas. Primeiro: aprender
a obedecer. A base de qualquer comando militar é assim: o comandante aprende a
mandar quando aprende a obedecer. Um soldado disciplinado pode, então, se
tornar um comandante de uma tropa de guerrilha. Você vai, primeiro, aprender a
obedecer. Segundo: quero que você aprenda como raciocina um militar, para que
você possa se transformar num quadro militar da guerrilha.
Assim foi
feito. O alagoano radicado no Rio saiu de quartel sabendo o que é uma granada,
um fuzil, uma metralhadora, uma pistola automática e o que significa
hierarquia. Estava pronto para a guerrilha:
- "A
direita jogou suas tropas na rua. A esquerda não jogou nada. Nossa geração
queria reagir. Como é que os militares chegam, acabam com a liberdade, arrombam
a porta do Palácio do Governo e do Congresso, saem cassando todo mundo?", diz
ele. "Queríamos participar da resistência. Marighella foi o primeiro que lançou
esta palavra de ordem: temos de resistir com as mesmas armas que eles usaram
para tomar o poder. Ou seja: as armas de fogo. Temos de construir uma guerrilha
urbana, uma guerrilha rural para derrubar a ditadura. Decidi que ia colocar
minha juventude e minha vida sob o comando de Carlos Marighella (…) Qual foi o
primeiro ato violento que foi feito dentro de nosso país, senão o dia 31 de
março de 1964? Deram o primeiro tiro. Vi um general dizendo que nós é que
demos. Não! Quem deu o primeiro tiro foram as Forças Armadas, no dia 31 de
março de 1964".
O "TRIBUNAL REVOLUCIONÁRIO" CONDENA O
EMPRESÁRIO
Em outro
ponto da entrevista, Carlos Eugenio dá detalhes de outra decisão extrema tomada
pela ALN: a execução do empresário Henning Albert Boilesen, morto a tiros na
manhã do dia 15 de abril de 1971, na rua Barão de Capanema, nos Jardins, em São
Paulo. Boilesen foi condenado por um "tribunal revolucionário" da ALN por ter
financiado a Operação Bandeirante,organização criada pelo II Exército em São
Paulo para centralizar o combate à luta armada. Eugênio apertou o gatilho:
- Dirigi
a ação. Fui autor do tiro de misericórdia. É o último tiro que é dado. Tínhamos
testemunhas - vivas até hoje - que foram torturadas na frente de Boilesen. Não
era um inocente. Não foi justiçado por ser empresário, mas por ser um quadro
direto da repressão. Como tal, estava sujeito a sanções da guerra. Todos nós
estávamos sujeitos a sanções. Boilensen também. E estas sanções, no caso de
Boilesen, foram aplicadas. Eu estava sujeito também a sanções de guerra:
quantas vezes não mandaram tiro em cima de mim?
Nesta
altura do depoimento, o ex-comandante militar da ALN faz a lista das "marcas da
guerra":
- Pegaram
a minha mãe em 1974, em São Paulo: ela passou um mês torturada pelo delegado
Sérgio Paranhos Fleury. Minha irmã foi torturada. Minha companheira que tive na
vida, Ana Maria Nacinovic, foi fuzilada na luta armada, quando saía de um
restaurante. Com todas essas pessoas que iam morrendo, eu morria junto também.
E tinha as mortes que cometi. Veja o prejuízo que o golpe de Estado de 1964 causou:
fez com que brasileiros e brasileiras tivessem de participar de uma luta
fraticida. Alguém acha que estávamos ali porque gostávamos de ficar dando tiro
nos outros?
O
ex-comandante militar da ALN é um caso único na história da luta armada:
recrutou a própria mãe para a guerrilha. Maria da Conceição Coelho da Paz
terminou entrando para a ALN. Tinha 49 anos de idade. Adotou o codinome de
Joana. Passou dois em Cuba treinando enfermagem. Iria atuar como enfermeira dos
guerrilheiros no Brasil. De volta ao Brasil, terminou presa e torturada, em São
Paulo, para dizer onde o filho estava. Não disse. A essa altura, Carlos Eugênio
já estava fora do país. Tempos depois,e m Paris, disse que uma mãe não entrega
um filho. Ficou com sequelas nas mãos, resultado da tortura. A cabeça de Carlos
Eugênio valia ouro para os órgãos de segurança. O silêncio da mãe de Eugênio
valia ouro para a guerrilha. A "Joana da ALN" morreu aos 79 anos, em 2000.
Carlos
Eugênio Paz não chegou a ser preso. Conseguiu sair do Brasil pela fronteira com
a Argentina. Usou, na identidade falsa providenciada pela ALN, o mais banal dos
nomes: João José da Silva. Tremeu nas bases quando viu o próprio rosto
estampado num cartão de "Procurados" colado na parede do posto da Polícia
Federal na estação rodoviária. Mas o agente que o atendeu não notou que aquele
João José Silva era Carlos Eugênio Paz. "João José" passou pela Argentina, pelo
Chile, por Cuba, pela Rússia e pela Tchecoslováquia, até desembarcar em Paris.
Em Cuba,
o comandante militar da ALN viu um general chamado Arnaldo Ochoa estender um
mapa em cima da mesa e mostrar o plano de trazer para o Brasil um navio lotado
de guerrilheiros cubanos. Eugênio recusou a oferta. Disse que a ALN,
organização que carregava a palavra "nacional" no nome, não iria
internacionalizar a luta armada.
Ao
descobrir que a guerrilha estava sofrendo um golpe atrás do outro, o então
comandante militar da ALN desistiu de voltar para o país. Passaria oito anos em
Paris, refugiado. Terminou condenado, à revelia, a 124 anos de prisão, por
crimes contra a segurança nacional. Eugênio calcula em cerca de oito o número
de militares mortos nas ações de que participou.
De volta
ao Brasil em 1981, o ex-guerrilheiro arranjou um ocupação improvável, ao
percorrer os anúncios classificados de um jornal em busca de trabalho: virou
professor de música de crianças na creche Acalanto, na rua Visconde de
Caravelas, em Botafogo. Depois, deu aulas de música na Escola Parque, na Gávea.
Abriu um curso em Ipanema. Toca violão, piano e baixo. Tinha estudado música
quando criança. Considerado desertor do Exército, requereu, junto à Comissão de
Anistia, a reintegração nas Forças Armadas. Conseguiu. A portaria do Ministério
da Justiça que reintegra Clemente ao Exército foi publicada no dia três de
fevereiro de 2010. Hoje, é terceiro-sargento do Exército - inativo, obviamente.
Precisou de dez anos de psicanálise para conviver com as "marcas da luta". Não
é tarefa para amadores. Tinha interrompido as sessões, mas retomou, há pouco.
Aos 61 anos de idade, vive com a mulher no interior do Rio. Pretende, em breve,
publicar um novo livro. É personagem de um documentário que, se tudo der certo,
deve chegar às telas no ano que vem. Teve um enfarte, mas foi salvo por uma
angioplastia, em outubro de 1988. Ainda assim, voltou a fumar, desbragadamente.
Ao final da entrevista, fumou três cigarros - um atrás do outro, sem intervalo.
Em troca de e-mails com o repórter, assina o nome que usava nos tempos da
guerrilha: Clemente. É como se quisesse dizer: Carlos Eugênio ainda é Clemente.
E Clemente nunca deixou de ser Carlos Eugênio.
Fonte: "Dossiê Geral"
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