Por Augusto Nunes
Ai
da PM se os ferimentos que resultaram na morte de Santiago Andrade tivessem
sido causados por uma bala de borracha ou uma bomba de gás lacrimogêneo. Antes
que se identificasse o autor do disparo, todos os integrantes da corporação, do
comandante ao mais raso dos soldados, estariam alinhados no paredón da
imprensa, diante do pelotão de fuzilamento formado por repórteres que enxergam
em qualquer manifestação de protesto um combate entre bandidos e mocinhos. Os
bandidos usam fardas, botas e capacetes. Mocinhos são todos os outros, e como
vítimas devem ser tratados.
Mesmo
quando matam um cinegrafista de 49 anos que cobria para a Band mais um
conflito urbano no Rio, comprova o noticiário dos jornais do domingo sobre
Fábio Raposo, que se apresentou à polícia para confessar que participara do que
ainda era uma tentativa de homicídio. Nem precisava: as imagens no vídeo
mostram Raposo entregando a um comparsa o rojão que logo explodiria na cabeça
de Santiago Andrade. Ambos aparecem vestidos como black blocs. Ambos
agiram como black blocs. Mas repórteres e redatores decidiram que o cúmplice
confesso não deveria ser associado a essa tribo de selvagens sem causa, sem
rosto e sem cérebro.
Aos
23 anos, com um prontuário de desordeiro vocacional, Fábio Raposo não estuda
nem trabalha. Como qualificá-lo? "Tatuador", concordaram os dois maiores
jornais paulistas, que se dispensaram de localizar um único e escasso cliente
do artista. Antes que algum leitor perguntasse pelo inexistente local do
emprego, a Folha acrescentou o
adjetivo esperto: "Tatuador independente". Toscas na forma, indigentes no
conteúdo, as reportagens também escancararam a criatividade bisonha dos
escalados para esganar os fatos.
No
Estadão, por exemplo, foi
indiciado não um black bloc, mas um "jovem" (ou "rapaz"). Além de encampar as
expressões usadas pelo concorrente, que transformam faixa etária em profissão,
a Folha patenteou a
criação de um ofício desconhecido fora do Brasil: "manifestante". Faltou
explicar se Raposo, que mora sozinho num apartamento no Méier, paga o aluguel
com o dinheiro das tatuagens ou com o que arrecada gritando palavras de ordem
em algum canto do Rio.
Consumada
a tragédia, os torturadores da verdade terão de caprichar nas acrobacias
vocabulares para referir-se a Raposo. A morte de Santiago transformou o black
bloc militante em cúmplice de um homicídio. Quem tentar absolvê-lo com
substantivos malandros merece cadeia por excesso de cinismo.
Fonte: "Direto ao Ponto"
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