Por Antonio Torres
Todos os crepúsculos agora estão em
mim...
Almas estranguladas passeiam com a minha
alma de confidências,pelas escuras alamedas do passado...
Porque vens, agora, sombra amiga,
quando esta longa noite do tempo veio para esquecer,
porque vens aflorar no meu caminho a sinfonia do meu tormento?
Perdi sonhos, perdi desejos infecundos, perdi de ouvir a música do tempo.
É como se fosse a vida que imitasse a arte. Assim pensa
o autor destas linhas num dia do mês de março de 2009, ao ler um poema que
Eurico Alves Boaventura escreveu em 1951. Trata-se do belo e melancólico Rondó das sombras consoladoras, cujo
trecho acima ilustra à perfeição a memória de uma tarde de 1970, quando o poeta
recebeu em sua casa, numa ensolarada e solitária rua que se chamava Manuel
Bandeira, uma alma estrangulada pelo
excesso de horas presa à poltrona de um ônibus comum, do Rio de Janeiro a Feira
de Santana.
Foi uma breve visita. E de surpresa. Nada além de uma
pausa a meio do caminho para outros nortes, e para acorçoar-se ao sabor de um
café e dois dedos de prosa, que resultariam num passeio de confidências pela longa
noite do tempo em alamedas escuras do
passado, e que, revisitadas agora, desembocam na página de Luz em agosto na qual William Faulkner
escreveu: É o conhecimento - e não a dor
- que faz você se lembrar de centenas de ruas selvagens e ermas.
Erma,
sim. Selvagem, não - poderia ter concluído o recém-chegado à ruazinha àquela
hora deserta, e ao ser recebido com a fidalguia peculiar a um homem de letras citadino
de reconhecível herança aristocrática rural. E Juiz de Direito, ainda por cima,
embora já a viver os crepúsculos da aposentadoria na sossegada Rua Manuel
Bandeira, a quem o autor da Estrela da
vida inteira devia a homenagem, por razões que a esta altura, imagina-se, poeta
algum ignora, pelo menos na Bahia.
Recorda-se
aqui a entrada da casa por uma varanda lateral, onde havia uma cadeira de
balanço. Acrescente-se ao impacto visual das singelezas à chegada, portas e
janelas azuis, e paredes brancas, tudo a trazer para a arquitetura urbana do
século XX uma evocação da era das mansões coloniais, se é que não se delira
nessa recordação.
De certeza é que àquela hora o sol amenizava-se, já em
queda para o poente. E que um vento morno regia a música do tempo, numa orquestra a farfalhar em memorável concerto
a sua Antífona para depois de amanhã: O vento marca o tempo, o tempo que ouço uivando/
nas marchas dos moços sem rumo.
Elegantemente
trajado, como de hábito, o doutor Eurico Alves Boaventura encaminhou o seu visitante
a uma mesa senhorial ao centro da sala, na qual reinava o silêncio, quebrado
apenas quando surgiu uma senhora (parente sua, talvez) para cumprir o sagrado
ritual da hospitalidade sertaneja, ao portar uma bandeja com um bule e duas
xícaras de café. O que faltava ali? Os convivas de outra sala há onze anos
atrás, numa cidade chamada Alagoinhas, onde o anfitrião era o mesmo dessa tarde
que parecia mais propícia a uma soneca do que a recepções não programadas.
Mas não. O protagonista desta história era, antes de
tudo, um ser gregário, um mestre na arte
do convívio. Recebeu a inesperada visita de braços abertos, e de forma tão
calorosa que preenchia o vazio das ausências, a começar pela dos familiares,
àquela hora cuidando de seus afazeres fora das instâncias domésticas. E de que
cuidava ele, agora, à sombra dos seus sessenta e um anos? Dos retoques finais
num livro de mais de mil páginas datilografadas, que lhe havia consumido, em
pesquisas e elaboração, a maior parte dos anos já vividos. Com o calhamaço à
mesa, de repente a sala povoou-se dos vaqueiros que traçaram a rota primitiva dos destinos da Colônia que
Portugal criou neste lado do Atlântico, na saga que levaria à civilização do pastoreio. Ler em voz
alta era para ele uma praxe que vinha há muito do tempo, certamente bem anterior
às tertúlias na biblioteca de sua casa de Alagoinhas, em noites em que
cintilava uma nova constelação da poesia brasileira, que em sua voz descia
redonda em ouvidos até então mais afinados com a lírica d’antanho, que os anos
não traziam mais, numa cidade que ainda se movia ao ritmo dos boleros, embora
já a ensaiar os primeiros passos de Rock’n
roll.
Se foi um privilégio privar dos saraus na intimidade
do seu lar alagoinhense, a partir do que seus convivas não mais leriam poesia
da mesma maneira, imagine o que dizer da honra de ser brindado com as primeiras
páginas de uma obra inédita, cuja envergadura sociológica e histórica transcendia a dimensão do volume e o esforço
ciclópico do autor para realizá-la. Mas de repente ele parou. E não por cansaço
ou para fazer algum comentário. Com uma mão sobre a página (devia ser a quinta
ou a sexta), cuja leitura interrompera, e, abaixando ainda mais os olhos, que se
apertavam por trás dos óculos, disse, em tom sussurrante, como se falasse para
si mesmo:
- Quando eu me
lembro...
Perturbado pelos sinais de desgosto que a repentina
lembrança estampava num rosto àquele instante visivelmente sulcado de mágoas, o
eterno ouvinte do poeta, ensaísta etc. e mestre informal Eurico Alves
Boaventura eclipsou-se entre a luz externa, porta e janelas afora, e a sombra
interna em uma alma martirizada do tempo. Restava saber que martírio era esse.
- Você sabe o que aconteceu comigo?
A cena congela aqui, no retrospecto que se tenta fazer
agora. Porque a memória só alcança até aquela pergunta, diante da qual o seu
ouvinte não se sentiu uma sombra consoladora, mas uma presença incômoda,
desassossegadora, que trazia para aquela sala a lembrança da cidade onde o que
acontecera fora abominável demais para ter consolo ou remissão, embora não
saiba, agora, se já chegara àquela mesa, naquela casa de Feira de Santana, e naquela
tarde de 1970, sabendo o que se passara com o Meritíssimo Juiz de Direito da
Comarca de Alagoinhas no terrífico ano de 1964, na sequência das
arbitrariedades militares, cuja dolorosa lembrança o tornava (a ele, o Juiz) refém
do estribilho do rondó que escrevera vinte e três anos antes: Todos os crepúsculos agora estão em mim... Pois agora, e por ironia do destino, ele devia estar
sentindo deveras a dor que poderia então ter sido apenas um fingimento.
O que foi mesmo que lhe
aconteceu?
- Sim, eu me
lembro - diz Valdemar Paraguassu, que há muitos anos vive em Salvador, mas em
1964 morava em Alagoinhas, e a poucos passos da casa do doutor Eurico, como o
chamam todos daquela cidade que o conheceram. - Fomos presos num mesmo dia. Assim
que me soltaram, fui embora, para assumir um emprego no Banco do Brasil na
cidade de Cruz das Almas. Por isso não soube o que aconteceu com ele depois da
sua prisão. O que me lembro é do clima de terror daqueles dias, quando um
comerciante encrenqueiro de lá passou a acusar de subversivo todo aquele com
quem ele tinha alguma contrariedade, ou simplesmente a quem não simpatizava.
Foram tantas as prisões por denúncias desse tipo, que elas viraram uma
esculhambação, a ponto de o comando local das repressões ter de exigir que só
fossem feitas por escrito. E com firma reconhecida!
O que dizer disso agora? Que teria sido cômico se não
fosse trágico?
No caso específico do doutor Eurico, porém, a
maledicência fora engendrada por um oficial de Justiça. É o que recorda Aristóteles
Freitas Costa, que àquela época era um dos alunos que mais se destacava no Ginásio de Alagoinhas, e que, como outros
estudantes intelectualmente inquietos, tinha em doutor Eurico um mentor extra-classe. Costumava visita-lo no Fórum,
às vezes acompanhando-o a caminho de casa, parando numa esquina e outra, em
conversações que podiam ultrapassar uma boa meia hora. Formado em Direito, o
velho Arica hoje mora em São Lourenço, Minas Gerais. O que lembrou mais, ao
telefone:
- Ele me aconselhava a não parar de estudar. E me indicava
autores, me incentivava a ler muito. E bem. Uma vez me emprestou um livro de
poesias traduzido por Manuel Bandeira, que não devolvi, porque não o vi mais,
depois da sua prisão.
- E por que você não o viu mais?
- Eu trabalhava numa sorveteria do meu pai e um dia vi
o policial que prendeu o doutor Eurico parado na porta, me encarando. Deduzindo
que ele estava de olho em mim, fui me esconder numa fazenda que a gente tinha,
e por lá fiquei um tempo, esperando a poeira baixar. Quando voltei, o doutor Eurico
já não morava mais na cidade. Os comentários eram de que ele havia sido
transferido para Vitória da Conquista.
Foi o que
aconteceu, confirma Juraci Dórea em seu ensaio Eurico Alves e a Feira de Santana. Está no livro A poesia de Eurico Alves - Imagens da cidade
e do sertão, organizado por Rita Olivieri-Godet, e publicado pela Fundação
Cultural do Estado da Bahia em 1999. Amigo de Eurico de longa data, o artista
plástico, arquiteto e também poeta Juraci Dórea esclarece: "[...] com exceção
dos períodos de férias, Eurico pouco viveu em Feira de Santana. Aos 14 anos de
idade (1923) ele já se encontrava em Salvador, matriculado no Ginásio N. S. da
Vitória [...] Em 1934, recém-formado, estava em Feira de Santana, porém logo no
ano seguinte transferiu-se para Capivari, hoje Macajuba"... E daí em diante:
Tucano, Riachão de Jacuipe, Poções, Canavieiras, Alagoinhas, Vitória da
Conquista "e, finalmente, Salvador". O que significa que o doutor Eurico Alves
Boaventura só voltou a viver na capital já perto de aposentar-se, e isto pouco
ou nada influiria mais em seu destino literário.
Voltemos à sua temporada de Alagoinhas (1959-1964), não
necessariamente Une Saison en Enfer, mas
que só não se tornou uma página em branco na história de Eurico graças às incansáveis
buscas biobibliográficas de Juraci Dórea e à memória de Maria Eugênia
Boaventura, que era bem pequena naquele tempo, mas ainda se lembra que a casa
ficava à rua Carlos Gomes, 63, com a biblioteca na sala de visitas, e que era frequentada
pela professora Normândia Azi Lacerda, o advogado Murilo Cavalcanti, um
funcionário da Justiça do Trabalho chamado Giése (José Giése da Cruz, primo do
autor destas linhas), o alfaiate que fazia os blazers do seu sempre elegante
pai, que por sua vez fundou o Lyon's Clube da cidade, tendo sido o seu primeiro
presidente. Maria Eugênia recorda-se ainda que o doutor Eurico foi professor do
Ginásio de Alagoinhas, onde dava aulas pautadas pela pluralidade de
conhecimentos.
Entre as
pessoas lembradas pela professora Maria Eugênia, há uma que poderia emergir das
sombras reivindicando este epitáfio:
Tropeço, dentro da noite em cadáveres de
sonhos...
Porém, mãos de suicidas,
As dolorosas e augustas mãos dos suicidas,
Vêem ensombrar a minha fronte para eu
sonhar...
Todos os crepúsculos agora estão em mim...
No contexto destas memórias, esses versos
evocam o trágico fim de um dos convivas das tertúlias à rua Carlos Gomes, 63,
Alagoinhas, Bahia. Nascido num distrito de Inhambupe chamado Junco (hoje a
cidade de Sátiro Dias), onde fora batizado e registrado com um sobrenome de
origem alemã como nome próprio, aposto ao de José, Giése cometeu o tresloucado
gesto na casa do bispo de Juazeiro da Bahia, aí pelo ano de 1971, deixando uma
carta cujo conteúdo o bispo jamais revelaria, por considerá-lo um segredo de
confissão. Para que não se avente premonições do poeta, lembremos que o Rondó das sombras consoladoras é de
1951, e, também, que Eurico e Giése só vieram a se conhecer em 1959. Mas como
evitar a tentação de dizer outra vez que foi a vida que imitou a arte?
1959-2009:
Memórias, Sonhos...
Assim se passaram cinquenta anos: envoltos em sombras [que] abafaram os passos das distâncias/ para que não perturbassem o sono do
silêncio...
- Atirador
22, sentido! Marche, marche! Do Tiro de Guerra 110 ao Ginásio de Alagoinhas, e
de lá ao Fórum ou à rua Carlos Gomes, 63- em 1959!
Há um fabuloso tempo a ser reencontrado nessa marcha
de volta.
Chegou a hora de fazer-se a luz sobre a sombra dolorosa e inexpressiva como um sonho
morto que até aqui pairava na sua memória, porque você, por mais que se
esforçasse, não conseguia enxergar com nitidez todo o impacto causado pela chegada
do juiz-poeta Eurico Alves Boaventura àquela cidade das luzes verdes nas
fachadas, em um ano de sonhos dourados de uma juventude que ele mesmo faria
crer-se promissora. "Memória! Junta na sala do cérebro..." Sobre o que vocês
conversavam? Nas tertúlias que promovia, ele lia seus próprios poemas? E que
poetas lidos ou recomendados por ele foram verdadeiras revelações? Alguns deles
chegaram a ser tão decisivos para sua formação literária, quanto os
ficcionistas - Jorge Amado e Graciliano Ramos, por exemplo -, que o professor
Carloman Carlos Borges levou você a conhecer, dois anos antes? Enfim, qual foi
o seu real legado?
Resposta: só
agora, e graças à memória do caro colega do Ginásio de Alagoinhas Aristóteles
Freitas Costa, me dou conta de quem pode ter me levado a ler um poema de
Federico Garcia Lorca traduzido por Manuel Bandeira, e que começa assim:
Cantam os
meninos
na noite
quieta;
arroio claro,fonte serena.
OS MENINOS:
Que tem teu divino
coração em festa?
EU:
Um dobrar de sinos
perdido na névoa.
A lembrança desses versos, muitos anos depois de os haver lido em algum lugar do passado, e certamente num livro emprestado pelo doutor Eurico, levou-me a escrever o romance Balada da infância perdida, cuja primeira edição é de 1986, e que foi traduzido para o inglês com o melódico título Blues for a lost childhood. E agora também me lembro do meu segundo dia de trabalho como aprendiz de repórter policial no Jornal da Bahia, ao desembarcar de Alagoinhas em dezembro de 1959. Como no dia anterior eu havia fracassado na cobertura do movimento do porto de Salvador, onde não fui capaz de farejar uma manchete espetacular – um tiroteio cinematográfico entre policiais e contrabandistas -, me empurraram para o Necrotério Nina Rodrigues. Dali não iria voltar sem assunto. Logo à entrada via-se, estirado num estrado, o cadáver de um rapaz que se matara.
Corri para o
jornal e comecei a matéria com um poema de Godofredo Filho que falava do absurdo
de se morrer aos 20 anos, entregando-a em seguida, e com a ansiedade
imaginável, ao chefe de reportagem, o poeta João Carlos Teixeira Gomes, que a
passou ao chefe da reportagem policial, o também poeta Jeová de Carvalho, que
por sua vez mostrou-a ao editor-chefe, o ficcionista Ariovaldo Matos que, de
dedo em riste, disse ao aprendiz de repórter que ele estava ali para fazer
jornalismo e não literatura, que poesia era coisa de... Bom, felizmente não
perdi o emprego. Mas o que importa aqui é que com certeza foi Eurico quem me
levou a ler Godofredo Filho. E Cassiano Ricardo. E Jorge de Lima - com quem se
correspondia - de cuja obra hoje se diz que "permanece robusta e poderosa como
um penhasco, na solidão incomparável do gênio".
...Reflexões
Não dá para imaginar que Eurico um dia tenha
tido pretensões de ser posto pela posteridade nas mesmas alturas de seus mais
festejados (e fraternos) pares Manuel Bandeira e Jorge de Lima. Ele não era,
como Gilberto Freyre - que reconhecia como grande
escritor - "uma pessoa feita para se ver no espelho". E sua obra continua
“restrita a um pequeno círculo de amigos e especialistas”, como constata Juraci
Dórea, mesmo em se tratando de "uma figura de proa nos primórdios do modernismo
na Bahia", no dizer do consagrado poeta Florisvaldo Mattos.
Tiremo-lo das sombras. Para que este não seja
um tributo a cem anos de solidão.
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