Por Reinaldo Azevedo
Os meus leitores sabem do apreço que tenho por Robert Musil e por "O Homem
Sem Qualidades". Os eventos - ou não eventos - que ele narra se passam num país
chamado Kakânia.
Kakânia é um lugar imaginário em que a corrupção, quando há, se dá na
esfera das vontades; as covardias, nunca grandes demais, se revelam na área do
intelecto; a decadência, inexorável, é a da inteligência. As pusilanimidades
são quase existenciais, traduzidas por suspiros, nunca por estrondos (esse
contraste já é um clichê, mas não resisti).
Falta a Kakânia a exuberância tropical. Não socorrem aquele país os
pistoleiros do sangue quente que estão abaixo da linha do Equador, onde só há
perdão, nunca pecado. Kakânia não conhece as graças bonachonas e incivilizadas
do "homem cordial". Kakânia não tem nem mesmo o hábito de punir os santos, como
se faz, dizem, em certo país ignoto, de que falarei. E é punição preventiva,
com características de chantagem e tortura! Põe-se, por exemplo, a imagem do
santinho de ponta-cabeça, às vezes mergulhado num copo d'água. Se ele quiser
sair daquela situação difícil, que trate de realizar o desejo do esperançoso e
doce torturador. É a forma que a crença tomou, dizem, em tal terra estranha.
Chamemos aquelas paragens exuberantes, em homenagem a Musil, de Banânia.
Pronto! Em Banânia, os amores e os ódios estão sempre à flor da pele. Banânia
não tem ascetas e monges para inspirar uma filosofia da contemplação e da
medida; para exaltar as ideias "magras e severas". Em Banânia, os que pensam a
economia do espírito são os sátiros e os beberrões. O direito do outro e o
direito dos outros são vistos como censura à liberdade individual e
incapacidade para o gozo. Qualquer um, em Banânia, pode ser ruim da cabeça; a
única coisa indesculpável é ser doente do pé. Os bananienses são, à sua
maneira, fatalistas e acham que não há homem na Terra que resista a certas
paixões, como caipirinha (bebida local) e bundalelê (bundalelê local).
A carteirinha
Este país singular, conta-me um nativo, deu à luz uma nova forma de gestão do Estado que é a "Carteirinha Corrupção". É isto mesmo. Ela é fornecida por um partido político para evitar que os amorosos achacadores, olê, olê, olê, olá, exagerem na cobrança de propina. Eu explico.
Este país singular, conta-me um nativo, deu à luz uma nova forma de gestão do Estado que é a "Carteirinha Corrupção". É isto mesmo. Ela é fornecida por um partido político para evitar que os amorosos achacadores, olê, olê, olê, olá, exagerem na cobrança de propina. Eu explico.
Deu-se em Banânia algo realmente notável. Empresas das mais diversas áreas,
prestadoras de serviço ou fornecedoras, têm duas tabelas: uma para seus
parceiros da própria iniciativa privada e outra para o governo. O Poder
Público, em Banânia, costuma contratar serviços por um preço que pode
corresponder a cinco vezes o valor de mercado. É que vai embutida, entre outras
delicadezas da civilização da cordialidade, a propina que tem de ser paga ao
partido (em Banânia, quem dá as cartas é o PTT), ao chefe da área, ao chefão do
chefão…
Conta-me um nativo de Banânia que, num desses acertos de conta mensais, o
representante do "Sistema" afirmou que o valor que estava na maleta já não era
mais suficiente; doravante, teria de ser o dobro. O pagador se espantou e
resolveu subir a escala hierárquica para reclamar: "Como pode? Assim o negócio
fica inviável!".
Recebeu, então, uma "carteirinha" - a "Carteirinha Propina". Foi informado
de que o documento o protegia de achacadores fora do controle, entenderam?
Aquele documento deixaria claro que ele já era um "colaborador" e que nada de
extra lhe poderia ser, então, exigido.
Banânia, vejam vocês, é, então, este país encantador, notório por sua
aversão à institucionalização de procedimentos; conhecido por sua hostilidade a
um estado impessoal, que fosse gerido por um burocracia regular, estatutária,
avessa a arranjos e jeitinhos. Ao contrário: esse país gosta da informalidade e
considera que a rigidez legal é coisa de povos tristes, que ainda não se deixaram
amolecer pelos trópicos. E é justamente essa Banânia a ter esses caprichos, não
é?, que resultam na formalização da corrupção e da propina. É, assim, como se
fosse um passe-livre fornecido por um comando militar em tempos de guerra, que
dá ao portador o direito de ir e vir sem ser importunado pela soldadesca de
mais baixa estirpe.
Isso acontece em Banânia, conta-me o nativo da terra. Ele me disse que o
tal PTT sempre considerou que faltava à economia de mercado a devida dimensão
ética, que consiste, ele entende agora, não na criação de uma ética do mercado,
mas de um mercado da ética.
Eu fiquei espantadíssimo com os sucessos de Banânia. E mais espantado
fiquei quando ele me contou que se descobriu que uma quadrilha operava no
coração do próprio governo. "Mas a imprensa no seu país, ao menos, é livre,
né?", indaguei. Ele me disse que sim. "Que bom! Ao menos isso!" Mas aí ele
emendou: "É livre, sim! E boa parte dela está aplaudindo o governo que nomeou a
quadrilha por sua suposta coragem de demiti-la".
Olhei com tristeza e até com compaixão meu amigo de Banânia!
Fonte: "Blog Reinaldo Azevedo"
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