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quinta-feira, 30 de julho de 2009

Um capítulo do romance "Grito da Terra"

"Grito da Terra", romance de Ciro de Carvalho Leite

CAPITULO 2
Silvério saiu do curral e recomendou ao filho que, naquela mesma manhã, levasse Tufão para a fazenda Boqueirão. Um cavalo daquele, de preço tão elevado, não era para se faci­litar, principalmente quando em fazenda de gente pobre; que o filho agradecesse a gentileza do coronel Augustinho e que da próxima vez seria mais conveniente levar as éguas até o Bo­queirão.
- Sabe lá - comentava Silvério, entrando em casa, - um diabo dêsse dá pra rufiar uma égua, se estrepa no arame-farpado, e é prejuízo certo. Seu Augustinho não irá cobrar nada, mas fica uma coisa desajeitada para nós.
- É mesmo, - refletiu Damiana a caminho para a cozinha e reparando no quarto da filha, que continuava fechado. ­- Gente, Lóli não levanta hoje, não! Sete horas, e esta menina ainda na cama!
- Não sei pra que acordar tão cedo, respondeu a filha, saindo do quarto.
Silvério, quer ovos fritos?


- Tem abóbora cozida?
- Tem.
- Prefiro a abóbora.
- E você, Lóli?
- Quero nada, não, respondeu a môça, mal-humorada.
- Depois que esta menina foi passar uns dias em Feira de Santana, voltou tôda diferente, reclamou Damiana, assando um pedaço de carne para o filho.
Geraldo, com as botas sujas de lama, entrou em casa.
- Mamãe, ela já nos disse que não suporta a vida de roça. Quer viver é pelas cidades, nos grandes centros, rapazes chei­rosos, salões de bailes, cinemas, etc.
Lóli, que estava a escovar os dentes, não gostou das in­sinuações do irmão.
- Pelo menos, nas cidades não se vê dessas coisas. Olhe para o chão e veja o que você está fazendo. Traz a sujeira do curral para dentro de casa. Um homão dêsse e sem modos, faz até vergonha.
Geraldo deu de ombros e sorriu.
- Não é você quem limpa, retrucou êle.
- Mas sou eu, respondeu Damiana, acabando de assar a carne.
- Porque quer. Esta belezinha bem que podia varrer a casa. Mamãe é a culpada.
- Vocês hoje começaram cedo. A continuar assim, qual­quer dia estão se atracando em nossa frente, comentou Silvério, sentando-se à cabeceira da mesa.
Lóli sentou-se ao lado do pai, comeu meia talhada de cuscus, bebeu uma xícara de café com leite e foi para o ava­randado.
- Come um pedaço de abóbora, menina!
- Quero não, pai.
Silvério olhou a filha que se retirava. A menina estava mesmo mudada. Depois que veio de Feira de Santana, deu para ficar diferente. Permanecia horas e horas sentada no avarandado, folheava livros e revistas velhas, depois quedava-se· pensativa, sem tomar conhecimento do que se passava em casa. Para Sil­vério, aquela mudança tão repentina em Lóli havia de ter algum motivo. Já havia conversado com a espôsa, a fim desta sondar os pensamentos da filha. Talvez fôsse namôro; os rapazes da cidade sabiam bulir no coração das môças da roça.
- É isto mesmo, com o tempo ela volta pra os eixos, comentava Damiana, tôda vez que o marido se mostrava preo­cupado. Com sua experiência de mulher madura, acrescentava:
- É inquietação de môça, é da idade.
Silvério é que não se conformava com aquela tristeza. De primeiro, Lóli ajudava nos trabalhos de casa, estava sempre atenta para fazer algum serviço. Até na roça de fumo ela apa­recia na época da desolha e do corte. Em tempo de safra, lá estava com as amigas, principalmente Mariá, filha de um pe­queno agricultor da vizinhança. Ficavam alegres, faziam manocas e cantavam roda.
Geraldo, terminado o café, montou numa burra e saiu puxando Tufão pelo cabresto.
- Pai, o senhor quer alguma coisa pra seu Augustinho?
- Não. Agradeça-lhe a gentileza. Depois eu apareço por lá.
O rapaz esporeou a burra e seguiu viagem.
Lóli continuou sentada no avarandado, olhava a estrada ao longe, parecia completamente absorta em pensamentos ínti­mos, quando o pai se aproximou.
- Filha, o que é que você tem? Como não vai ajudar sua mãe lá na cozinha ou fazer alguma costura?
- Não é nada, não, meu pai.
- Você está doente? perguntou Silvério, sentando-se ao lado.
- Não, senhor.
- Se é alguma coisa que tem vergonha de me falar, diga a sua mãe.
Lóli ficou vermelha e baixou a vista. O pai com certeza estava pensando em alguma maldade, em algum mal-feito que ela praticara. A fim de não deixá-lo sem resposta, tentou expli­car, suspirando:
- Nem eu sei o que é. Uma vontade de ficar só, de viajar, uma saudade, não sei de quê ...
Silvério olhou a filha, como que a querer adivinhar-lhe os pensamentos, quando ela, deixando escapar uma lágrima, in­dagou:
- Pai não poderia vender tudo e irmos morar em Feira de Santana?
O fazendeiro assustou-se. Aquilo não era pensamento de quem estivesse boa do juízo .
- Morar em Feira?! Menina, eu me criei na roça e morrerei na roça. Gosto da terra, e daqui não saio. Não chega a rapaziada que tem a cabeça virada para a cidade! Pelo que vejo, agora também são as môças. Tira êsses pensamentos do juizo, porque eu daqui não arredo pé.
- Vosmecê fala assim hoje. Depois vem a sêca e o senhor fica triste, vendo os mantimentos murcharem na roça e o gado morrer na beira das cacimbas, sem água para beber.
Silvério se levantou, parecia perder a calma.
- Não, minha filha. A terra é sempre a terra. Ela nunca é madrasta. Nós, sim, é que não sabemos recompensá-la, dar-lhe o necessário.
- É, mas quando chega a sêca, o senhor fica se lamuriando.
- A culpa é minha, respondeu o sertanejo, sêcamente. - Lembre-se de que no Boqueirão e na Quixaba não se perdeu gado. Cuidaram da terra, plantaram palma, e as fazendas resistiram durante tôda a crise.
- Mas o pobre nem sempre pode fazer isso, atalhou Lóli, bruscamente.
- Porque se esquecem de que a sêca voltará um dia. Veja que já estou tomando providências.
Damiana, que estava na cozinha, veio ter com ambos, para saber o que conversavam.
- O que é que vocês tanto falam?
- É Lóli que está me aconselhando vender a fazenda e irmos morar em Feira de Santana.
- A menina não está com o juízo bom, não, corrigiu Da­miana, admirando-se do pensamento da filha e pondo as mãos na cintura. - E o que é que teu pai vai fazer na cidade? Comer o dinheiro, vagabundar pelas ruas!
Damiana enxugou as mãos na saia e gritou, autoritária, dando o assunto por terminado: - Nem pense em tal coisa. É melhor que tire estas idéias do juizo.
- Também não é assim, não, mamãe. Meu padrinho vendeu tudo a Apolinário e foi para Feira de Santana. Está vivendo bem, replicou Lóli, como que a desafiar qualquer razão que Damiana apresentasse.
- Ah! foram êles que botaram isto em sua cabecinha ôca! Em vez de aprender costura, foi isto que você foi aprender na cidade. Garanto que aprendeu outras coisinhas mais...
Silvério viu que a discussão entre mãe e filha estava fi­cando exaltada.
- Acaba com isto. Quando a menina refletir verá que não dá certo o que está pedindo.
Lóli, a fim de aproveitar a oportunidade que se apresen­tava, arriscou em fazer outra sugestão.
- E se eu quisesse morar em Feira com meus padrinhos? Poderia trabalhar em uma loja e ganharia para minhas despesas, como fazem muitas môças da cidade.
- Filha minha trabalhando para os outros?! Você não tem vergonha na cara?
Damiana tinha os olhos saltados e falava de dedo em riste no nariz da filha, que, calmamente, continuava sentada ao lado pai.
- Vergonha eu tenho, minha mãe, é de ir à fonte buscar água, fazer serviços grosseiros, quando na cidade eu poderia desempenhar outras funções.
- E eu sempre fiz tudo isto, e nunca me envergonhei. Veja suas amigas: Mariá, por exemplo!? Quer ser melhor do que ela...
Lóli se levantou e respondeu, em um tom agressivo:
- Quero, mamãe. Quero ser melhor do que elas. Viver num mundo melhor e não ter os olhos voltados somente para as roças e os animais. Que futuro a senhora acha em Mariá? Que poderá ela desejar da vida, se continuar vivendo aqui? Se não se casar, com algum homem que apenas saiba pegar na enxada, acabará se perdendo antes de completar os vinte e cinco anos, porque, depois dessa idade, são poucas as môças que resistem aos convites de certos fazendeiros ricos. E, às vêzes, se perdem, pela vontade de se perderem.
Lóli falava com a voz segura e firme. Damiana deu um passo, ameaçando-a com um tapa na bôca, quando Silvério se interpôs, levando a espôsa para o interior da casa.
- Deixa a menina comigo. Eu falarei com ela.

Um comentário:

Anônimo disse...

Gostei muito...e vamos ver no próximo capítulo como é que Silvério conseguirá o tom certo prá falar com ela(Loli),não é? Parada dura,heim!Mariana