Enviado por Olney São Paulo
Maio 11
2020.
Ando
muito dolorido. Com dores nas costas. Dores no eixo da alma. E saí essa noite
pra andar no mato. Os cavalos no outro pasto dormem, as galinhas dormem, os
gatos no mato dormem, só minhas cachorras que acordaram quando abri a porta da
casa pra sair. Mas não quiseram vir. Todos em casa e no mundo daqui
dormem.
Quando eu
era pequeno meu pai e alguns de seus amigos também, tinha uma mania de sobrepor
as mãos em L formando um retângulo horizontal que lembrava muito um protetor de
lente pra fazer sombra nas câmeras de filmar. Aquilo me remetia a ideia de
foco. Não como nitidez de imagem, mas de foco como enquadramento.
É muito
difícil ser uma pessoa aberta a todos os estímulos, todas as idéias. É
tentador, mas muito difícil. Mais difícil é manter um foco. Se manter
enquadrado numa ideia, propósito ou estado de espírito. E tenho a impressão que
dos anos 1980 pra cá está muito mais difícil esses dois estados de
concentração. Às vezes creio, tenho a impressão que mundo ficou mais burro,
mais cínico, mais perverso dos anos 1980 pra cá. De qualquer maneira não sei se
era impressão, mas as pessoas tinham vergonha de serem ou parecerem burras,
tacanhas. Faziam esforço prá se tornarem melhores e mais cultas e inteligentes,
quando não prá ser ao menos parecer. Hoje me parece que há uma competição da
burrice, da maldade, crueldade, cafonice e desprezo do outro. O mundo ficou
mais mau. Digo tudo isso, não pra mudar o mundo, quem sou eu, mas pra lembrar
que já fui mais feliz e já levei mais a sério meu momento existencial, meu
momento histórico, social. De uns tempos pra cá, parece que me anestesiei e não
consigo acreditar mais no mundo. Só sei me indignar, chorar impotente às vezes
e ter muita raiva sempre. Talvez seja o medo que essa burrice toda manche minha
pele, me contamine e que não haja mais livrarias prá lavar as nódoas que por
ventura encardiram minha alma. Um pavor desesperado de começar a gostar de
leite em pó, ou de domingos a tarde na televisão ou passeios num shopping
center. Um asco terrível por tudo que essa civilização me faz tragar. Se não me
lembrar do meu pai com suas mãos sobrepostas, como o para-sol da Arriflex, eu
piro e não vejo mais o mundo e só a dor do mundo. Mas nem sempre lembro.
Aqui fora
é tudo silêncio. Só os sapos e os grilos fazem festa na lagoa. Lembro da
cantiga do sapo na lagoa na voz de Gil, Sua toada improvisada em dez pés. E
saio sem lanterna, chove e a Lua mal ilumina através das nuvens. Como proteção
apenas meu chapéu, um velho pardessus do tempo de Paris ainda, minhas botas e
meu facão que sempre ajuda com o cansanção do mato e nessa época de chuva é
danado. Dizem que pra queimadura de cansanção na pele, só urina resolve.
Garanto que não resolve, pelo menos a minha em minha pele não resolveu. Já me
estrepei no mato numa ronce de cansanção, e não adiantou nada. Mas com cavalos
sim funciona. Certa feita encontrei minha potrinha caída deitada, lá prós lados
do mato que vou agora. A bichinha deitada, mole sem poder levantar. Imaginei;
vai morrer de cólica, saí correndo procurar ajuda desesperado. Já perdi um bode
assim. Quando consegui dar a injeção já foi tarde. Agora minha potra trilhando
o mesmo trilho de morte. Então encontro um vizinho mais velho que eu uns bons
vinte anos e me diz: "- Urina. Dá urina que melhora". Pergunto se é urina de
gente. "- É. Urina mesmo, dá pra beber que passa". Voltei correndo pra perto
dela já com uma garrafa plástica. Dei a urina devagar, segurando a cabeça dela.
E corri já sem esperança pra buscar água. E o milagre tava lá feito. Nós
primeiros goles na garrafa d'água e ela ficou de pé. Assim também foi depois
com o potrinho seu irmão um ano mais velho. Mas não nesse lugar do mato. Em
outro. Mais longe, acima no outro pasto. Depois eu conto.
Esse mato
que vou agora, também gosto muito de andar por lá, mas dizem que é assombrado.
Eu não creio, mas vou andando por entre as vozes. Pensei que todos dormiam, mas
não. Cochicham nos matos. As vezes à direita, as vezes à esquerda, as vezes
perto, as vezes longe. As vezes à frente perto de mim, prá logo em seguida
passar e continuar conversando atrás e sumir. Creio que seja o vento trazendo
os suspiros e os gemidos dos que se amam pelo meio dos matos por aí. Os índios
se amam pelos matos e tem gente que ainda é índio, pelo menos quando se amam
pelos matos.
Ah, tem
as sombras também. As sombras bolem nas árvores e das árvores, é como se a
sombra movesse os galhos e os arbustos. Agora que a caatinga está alta tem
tanta sombra quanto quando na seca, mas é diferente. As sombras da época de
chuva são mais lentas e pesadas. Também, as sombras da noite são mais pesadas
que as de dia. Embaixo do Sol na caatinga as sombras se movem leve e ligeiras,
às vezes se escondem até na sombra de um pé de pau. Já vi sombra se esconder
atrás de Unha de Gato que tem muito aqui e dizem que o chá da folha é muito bom
pra alguma coisa no corpo. Mas a noite as sombras são mais lentas e se arrastam
mais melancólicas, mas quando a gente olha elas se escondem.
A melhor
maneira de ver uma sombra no mato é não olhar pra ela. A melhor maneira de
escutar as conversas do mato é não prestar atenção ao que dizem, mas só a
conversa em si. Atento à estética da conversa, à plástica do som da conversa,
pois o que dizem você não ouve só imagina.
Adentro
no mato e preciso me abaixar entre as Caatingas de Porco. E como tem chovido
bastante, elas estão cheias de folhas e até flores. Dizem que o chá da casca,
assim como o das folhas e flores e bom pra um bocado de coisa. Acho legal isso.
Sempre alguém sabe um chá de casca de alguma planta bom pra alguma coisa. Na
maioria dos casos é pro fígado. Já vi até burguesa falar de chá de sei lá o
que. Acho que é a essência dos índios e dos negros que não sai da pele desse
povo, pra lembrar a eles que são gente.
É preciso
ter cuidado agora, pois tem muito cansanção, melhor passar pela Jurema e pelo
Pau Ferro. Tem menos cansanção por lá. A Jurema ou Jerema era usada pelos
índios da região prá tomar um chá e falar com os deuses deles.
Na noite
escura dentro do mato tem cheiros, sons e sombras que pertencem aos silêncios
do mato. A gente precisa se calar por dentro, fechar a boca do Ego pra poder
imaginar que está sentindo os cheiros e ouvindo e vendo as coisas do mato.
Agora os
sons mudaram, as sombras também, parece que tem um menino carregando um flor
num caminho mais a frente, ou talvez seja uma menina, pouco importa. Menino ou
menina, criança não tem sexo, criança não veste nem azul nem rosa. Criança
veste o branco de Oxalá. É… acho que vi uma criança carregando uma flor no
caminho mais a frente. Ou eram mais crianças? Por um momento tive a impressão
que eram várias e que avançavam também pela caatinga.
Os sons
mudam, a luz mudam, o dia está amanhecendo, os passarinhos começam a se ouvir,
as garças. Elas são lindas as garças. Escuto ao longe minhas éguas falando
comigo, não me dei conta mas estou voltando e já é de dia. A lagoa está repleta
de garças e de patos, não são meus mas moram aqui comigo. Aqui ta cheio de Asa
Branca e um bocado de outros pássaros e passarinhos. Tem tempo que nao escuto
um Caracará e que vejo um Urubu. Gosto quando Carcarás, Garças e Urubus voam
juntos. Nenhum deles é meu, mas todos moram comigo.
Os
gatinhos molhados se aninham em minhas pernas pedindo comida, não me dei conta
que estava voltando pra casa, não me dei conta que minhas costa não mais dóem,
não me dei conta que já é de manhã, não me dei conta que hoje é dia 11 de maio,
que hoje é aniversário da Pilar.
Feliz
aniversário minha filha.
Dê um
jeito de continuar viva senão te mato!
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