Por Mário
Chainho
Aristóteles ensinava que um discurso retórico era composto por três elementos: 'logos', 'ethos' e 'pathos'. O 'logos' é a racionalidade do discurso, embora possa o termo possa ser entendido como o próprio discurso. No caso retórico, a argumentação é composta de exemplos e entimemas. O 'ethos' refere-se ao carácter e à força de persuasão do orador, e o 'pathos' aos sentimentos e crenças do auditório.
Estes três elementos não estão realmente separados, por isso os oradores usam gestos, olhares, sorrisos e certos tons de voz para reforçar o seu 'ethos' ou eventualmente ridicularizarem o do adversário. Por outro lado, algumas das passagens dos discursos de Cícero nos tribunais ou no senado parecem-nos hoje de mau gosto, mas na altura eram necessárias para ir de encontro ao 'pathos' da plateia.
Quando analisamos a carreira de Churchill podemos ver como o peso relativo destes três elementos se alterou. Nas primeiras décadas do séc. XX Churchill discursou várias vezes para um parlamento ou para um público hostil, mas a força do seu carácter e da sua argumentação conseguiram colocar a esmagadora maioria a seu favor no final. Contudo, gradualmente isto tornou-se cada vez difícil de acontecer, não porque Churchill tenha perdido qualidades mas porque as pessoas estavam cada vez menos dispostas a ouvir e a deixarem-se vencer pelos argumentos e pela autoridade de orador mas apenas pretendiam ver defendidas as suas crenças iniciais. Os discursos de Churchill na Segunda Guerra Mundial, como o famoso "sangue, suor e lágrimas", só tinham eficácia por se viver numa situação excepcional, dado que em situações normais aquilo já não funcionava.
Note-se que Churchill tentou adaptar-se sempre à alteração das circunstâncias. Muito cedo ele começou a fazer comunicações pela rádio que tinham muito populares. Mas frequentemente ele era um homem sozinho não apenas na sua luta contra o totalitarismo mas também sendo ostracizado da política do seu país. As máquinas partidárias e de militância naturalmente que aproveitavam também o novo meio de comunicação de massas, e apesar de Churchill ainda ser eficaz quando comunicava, o efeito acabava por se diluir num processo precursor da 'espiral do silêncio', aparecendo múltiplas fontes submergindo os seus discursos.
Em 1960 deu-se uma outra alteração de monta, quando os debates passaram a ser também transmitidos pela televisão. O famoso debate entre Kennedy e Nixon foi assistido por uma minoria de pessoas através da rádio e pelas restantes na televisão. As primeiras acharam que Nixon tinha ganho o debate, mas as segundas não tiveram dúvidas em atribuir a vitória a Kennedy. A rádio permite a transmissão do 'logos' e uma parte do 'ethos'. Contudo, uma segunda parte do 'ethos', ligada à imagem, mostrou que podia facilmente sobrepor-se a estes factores. Nixon vinha recuperando de uma doença, ainda estando magro e suava também, e Kennedy aparecia calmo e confiante. Isto foi o suficiente para um candidato parecer muito melhor do que o outro.
Desde então o elemento "imagem" foi muito trabalhado para convencer as pessoas a certas atitudes a partir dos mínimos indícios. Isto nem sempre é feito pela positiva, porque também é corrente seleccionar certas imagens para denegrir os adversários. Podemos considerar que a imagem se tornou num sucedâneo inferior ("erzats") do 'ethos'. O verdadeiro 'ethos' é uma comunicação entre pessoas reais, que ainda é mantido em parte na rádio, embora o elemento de retorno já seja mais difícil de obter. A televisão já está num plano à parte, aparecendo o orador mais como um símbolo de uma grande máquina que trabalha para aquilo acontecer. O espectador também já não faz parte de um auditório real, ele é um pequeno electrão cuja a função é ficar orbitando à volta do núcleo do átomo. É também interessante notar que a rádio é ainda uma espécie de último reduto dos conservadores em muitas partes do mundo, enquanto a televisão é dominada quase a 100% por esquerdistas.
Mas ocorreu ainda outra transformação fundamental na retórica moderna, desta vez ligado ao 'pathos'. O caminho já estava aplanado com a redução dos indivíduos "à sua insignificância". Depois, com a concentração dos meios de comunicação social, trabalhando em conjunto com a industria do cinema e do espectáculo, tornou-se possível fabricar um novo 'pathos' com enorme velocidade. Assim, as pessoas passaram a incorporar novas ideias e reacções quase instintivas a certas palavras simplesmente porque aquilo vem imerso na linguagem e em incontáveis símbolos distribuídos na cultura.
É neste contexto que devemos encarar o confronto entre Hillary Clinton e Donald Trump. Ele tinha, desde o início, uma missão quase impossível. As pessoas que dominam o novo 'ethos' (imagem) e o novo 'pathos' estão totalmente e abertamente ao lado de Hillary. Contudo, não há empreendimento humano que seja invencível e infalível. Assim, uma das primeiras coisas que Trump fez foi mostrar desprezo pelo "politicamente correcto", o que era também uma forma de dizer às pessoas que elas podiam recuperar alguma dignidade humana e deixar de ser bichinhos insignificantes face às divindades da política. Cheios de desprezo, os comentadores chamam a isto de "populismo", certamente que temendo pela continuidade dos seus lugares bem pagos.
Sem descurar totalmente o elemento de imagem, Donald Trump tentou recuperar ao longo da campanha os elementos clássicos da retórica, nomeadamente o foco no ‘logos’, falando das dificuldades reais das pessoas, e o seu 'ethos' pessoal, ligado à sua actividade empresarial e não a uma máquina de propaganda. O resultado foi espantoso. Considerado inicialmente apenas como uma notícia humorística, Trump fez a sua escalada e chegou ao primeiro debate entre candidatos à presidência com um empate nas sondagens.
Contudo, aqui chegados, coloca-se a questão de saber quais são os limites para o procedimento "invulgar" de Donald Trump, que quase teve de concorrer à margem do Partido Republicano. Uma coisa é ir conquistando eleitorado enfrentando colegas de partido, mas outra coisa é enfrentar directamente uma Hillary Clinton suportada por uma imensa máquina de propaganda, ou melhor, de controlo mental.
É necessário admitir que a estratégia de Clinton para este primeiro debate foi adequada para os seus fins, o que não é muito difícil de perceber porquê à luz das notas que avancei aqui. Em primeiro lugar, Hillary não apareceu cansada ou mesmo com ar tão alienado como aconteceu em várias ocasiões. Ela assumiu a imagem de uma pessoa madura que debate com um adolescente inconsciente, fazendo constantes sorrisos de condescendência e de superioridade. Ao mesmo, tempo, ela consegue mentir com toda a naturalidade do mundo, aquilo a que os comentadores chamam de "confiança", enquanto Trump não tem esta "virtude" e por vezes perdia alguma fluidez no discurso, também porque foi colocado várias vezes na defensiva por um moderador que não sabia lá muito bem qual era a sua função.
Mas talvez o mais relevante passou-se ao nível do 'pathos'. Quando em comícios anteriores Trump discursou para o seu público, parecia que alguns dos chamados "valores americanos" estavam bem vivos: industrialização, empreendorismo, liberdade (sobretudo materializada na maior desregulamentação), lei e ordem. Víamos o público exaltar com estas coisas e parecia que a América ainda estava viva. Contudo, no ambiente do debate com Hillary sentia-se que algo estava diferente. Apesar de haver um certo compromisso para o público não se manifestar, ele acabou por fazer isto várias vezes, mas não quando Trump apelava aos valores supostamente caros aos americanos.
As intervenções de Hillary acabaram por demolir quase totalmente a pretensão de os valores americanos estarem vivos. Aqui convém recordar o que eu disse anteriormente com o controlo do 'pathos', que em termos um tanto simplistas podemos dizer que está relacionado com o "politicamente correcto". No fundo, a campanha de Hillary Clinton é uma extensão do politicamente correcto, que não é apenas uma série de ideias que estão inculcadas na cabeça das pessoas mas um conjunto de reacções quase epidérmicas perante certas palavras e frases.
Então, se Trump fala em desregulamentação, Hillary diz que tal foi a causa da crise financeira (lá se vai a liberdade); se Trump fala em baixar impostos, Hillary fala em aumentá-los para os ricos (e lá vem o socialismo para os não ricos); se Trump fala em lei e ordem, Hillary contrapõe com o racismo da polícia e dos americanos em geral, defendendo também o controlo de armas. Hillary defende Obama contra Trump, e este nota que ela já disse coisas horríveis sobre Obama, e que essa hipocrisia não pega mais, mas talvez não seja bem assim, porque a frieza dos psicopatas impressiona muita gente. Nota-se que nestas questões o público estava maioritariamente com ela, o que significa que já desistiu do "sonho Americano", se é que alguma vez isso foi mais do que uma fantasia a não ser para uns poucos. Obviamente que Trump percebeu que a argumentação de Hillary era extremamente desonesta e suja, mas pouco podia fazer numa ambiente de debate retórico, em que aquilo que candidata democrata dizia já se transformou numa espécie de senso comum.
Para já, nada está decidido. Obviamente que os principais jornais e comentadores disseram que Hillary ganhou o debate. Só podiam afirmar o contrário se tivesse ocorrido alguma hecatombe. Convenientemente, a CNN apresenta uma expressiva maioria de 62% dando a vitória a Hillary Clinton, mas o público alvo pode estar longe de representar o conjunto nacional americano. Algumas sondagens em sites importantes dão indicadores opostos, mas também eles não serão indicadores confiáveis das intenções de voto por também não serem amostragens aleatórias. Como é normal, a grande maioria os votantes não vai alterar o seu sentido voto devido a este debate, nem sequer por qualquer outra coisa ocorrida até ao fim da campanha, desde que não seja demasiado grave. Contudo, isso pouco importa, porque as eleições serão decididas por curta margem e o que interessa é quem terá o maior ascendente.
O caminho para Hillary Clinton é simples. Ele irá resguardar-se de fazer muitas intervenções públicas, não só para não correr o risco de adoecer mas também para não aparecer mais vezes com ar drogado, o que os jornalistas têm tentado esconder, mas o retiro também servirá para ela preparar com o seu batalhão de assessores os 'sound bytes', as frases condescendentes, os sorrisos idiotas, a firmeza fingida, os olhares falsamente serenos e todas as demais artimanhas, que são inegavelmente eficazes face a um público cada vez mais infantilizado. Ele poderá contar com a ajuda maciça e sempre crescente de todos os jornais, artistas e "líderes mundiais", que se irão desmultiplicar em declarações de apoio à candidata democrata, ao mesmo tempo que irão dramatizar cada vez mais os riscos mortais de Trump subir à presidência. Assim, a sua vitória surgirá com "naturalidade".
O caminho para Donald Trump será inegavelmente mais tormentoso. Ele terá de decidir se vai adocicar mais a sua linguagem, para conquistar algum eleitorado mais moderado (também conhecido por "boiolas"), correndo o risco de nem conseguir isto e de ao mesmo tempo perder algum do ser eleitorado inicial por parecer que já desistir das suas intenções iniciais. Claro que se Trump voltar a um tom mais áspero também corre o risco de perder algum eleitorado, que pode começar a achar que ele é de facto um risco. Seja como for, ele não pode dar-se ao luxo de se retirar como Hillary pode fazer, porque não tem toda uma máquina trabalhando para ele 24 horas por dia. Assim, vai ter que continuar a fazer comício atrás de comício, correndo o risco de vir a ter alguma quebra física entretanto.
Uma vitória de Trump dependerá de vários factores. Por um lado, ele de tem continuar a fazer com que cada vez mais gente acredite no seu desígnio de "tornar a América grande outra vez", e para isso vai ter que impor o seu 'ethos' pessoal sobre a imagem fabricada de Hillary. Por outro lado, ele tem que mostrar a forma absolutamente tendenciosa como são empoladas as suspeitas de ele ser racista ou de ter fugido aos impostos, enquanto os jornalistas não querem destacar coisas incomparavelmente mais graves em relação a Clinton, que tem afirmações onde praticamente faz uma declaração de guerra contra a Rússia, mas também já declarou guerra à religião, ao mesmo tempo que recaem sobre ela suspeitas de crimes de alta traição, financiamento ao Daesh e ligação a todo o tipo de pessoas obscuras. Aparentemente, tudo isto não vai entrar nos próximos debates entre os candidatos (entrou a questão dos e-mails apagados, porque não deu para esconder), e se Trump levantar as questões será considerado lunático. Portanto, será necessário forçar que estes temas entrem em debate, nomeadamente através da pressão através da Internet. Provavelmente, isto não será suficiente mas ao menos servirá para apontar como todo establishment está profundamente corrompido. A hegemonia esquerdista à volta do mundo não é plena e há muita gente que está farta de ser permanente enganada por um sistema que repete sempre as mesmas coisas e atormenta sempre com os mesmos receios. Poderá Trump capitalizar este descontentamento?
Fonte: "Mídia Sem Máscara"
Aristóteles ensinava que um discurso retórico era composto por três elementos: 'logos', 'ethos' e 'pathos'. O 'logos' é a racionalidade do discurso, embora possa o termo possa ser entendido como o próprio discurso. No caso retórico, a argumentação é composta de exemplos e entimemas. O 'ethos' refere-se ao carácter e à força de persuasão do orador, e o 'pathos' aos sentimentos e crenças do auditório.
Estes três elementos não estão realmente separados, por isso os oradores usam gestos, olhares, sorrisos e certos tons de voz para reforçar o seu 'ethos' ou eventualmente ridicularizarem o do adversário. Por outro lado, algumas das passagens dos discursos de Cícero nos tribunais ou no senado parecem-nos hoje de mau gosto, mas na altura eram necessárias para ir de encontro ao 'pathos' da plateia.
Quando analisamos a carreira de Churchill podemos ver como o peso relativo destes três elementos se alterou. Nas primeiras décadas do séc. XX Churchill discursou várias vezes para um parlamento ou para um público hostil, mas a força do seu carácter e da sua argumentação conseguiram colocar a esmagadora maioria a seu favor no final. Contudo, gradualmente isto tornou-se cada vez difícil de acontecer, não porque Churchill tenha perdido qualidades mas porque as pessoas estavam cada vez menos dispostas a ouvir e a deixarem-se vencer pelos argumentos e pela autoridade de orador mas apenas pretendiam ver defendidas as suas crenças iniciais. Os discursos de Churchill na Segunda Guerra Mundial, como o famoso "sangue, suor e lágrimas", só tinham eficácia por se viver numa situação excepcional, dado que em situações normais aquilo já não funcionava.
Note-se que Churchill tentou adaptar-se sempre à alteração das circunstâncias. Muito cedo ele começou a fazer comunicações pela rádio que tinham muito populares. Mas frequentemente ele era um homem sozinho não apenas na sua luta contra o totalitarismo mas também sendo ostracizado da política do seu país. As máquinas partidárias e de militância naturalmente que aproveitavam também o novo meio de comunicação de massas, e apesar de Churchill ainda ser eficaz quando comunicava, o efeito acabava por se diluir num processo precursor da 'espiral do silêncio', aparecendo múltiplas fontes submergindo os seus discursos.
Em 1960 deu-se uma outra alteração de monta, quando os debates passaram a ser também transmitidos pela televisão. O famoso debate entre Kennedy e Nixon foi assistido por uma minoria de pessoas através da rádio e pelas restantes na televisão. As primeiras acharam que Nixon tinha ganho o debate, mas as segundas não tiveram dúvidas em atribuir a vitória a Kennedy. A rádio permite a transmissão do 'logos' e uma parte do 'ethos'. Contudo, uma segunda parte do 'ethos', ligada à imagem, mostrou que podia facilmente sobrepor-se a estes factores. Nixon vinha recuperando de uma doença, ainda estando magro e suava também, e Kennedy aparecia calmo e confiante. Isto foi o suficiente para um candidato parecer muito melhor do que o outro.
Desde então o elemento "imagem" foi muito trabalhado para convencer as pessoas a certas atitudes a partir dos mínimos indícios. Isto nem sempre é feito pela positiva, porque também é corrente seleccionar certas imagens para denegrir os adversários. Podemos considerar que a imagem se tornou num sucedâneo inferior ("erzats") do 'ethos'. O verdadeiro 'ethos' é uma comunicação entre pessoas reais, que ainda é mantido em parte na rádio, embora o elemento de retorno já seja mais difícil de obter. A televisão já está num plano à parte, aparecendo o orador mais como um símbolo de uma grande máquina que trabalha para aquilo acontecer. O espectador também já não faz parte de um auditório real, ele é um pequeno electrão cuja a função é ficar orbitando à volta do núcleo do átomo. É também interessante notar que a rádio é ainda uma espécie de último reduto dos conservadores em muitas partes do mundo, enquanto a televisão é dominada quase a 100% por esquerdistas.
Mas ocorreu ainda outra transformação fundamental na retórica moderna, desta vez ligado ao 'pathos'. O caminho já estava aplanado com a redução dos indivíduos "à sua insignificância". Depois, com a concentração dos meios de comunicação social, trabalhando em conjunto com a industria do cinema e do espectáculo, tornou-se possível fabricar um novo 'pathos' com enorme velocidade. Assim, as pessoas passaram a incorporar novas ideias e reacções quase instintivas a certas palavras simplesmente porque aquilo vem imerso na linguagem e em incontáveis símbolos distribuídos na cultura.
É neste contexto que devemos encarar o confronto entre Hillary Clinton e Donald Trump. Ele tinha, desde o início, uma missão quase impossível. As pessoas que dominam o novo 'ethos' (imagem) e o novo 'pathos' estão totalmente e abertamente ao lado de Hillary. Contudo, não há empreendimento humano que seja invencível e infalível. Assim, uma das primeiras coisas que Trump fez foi mostrar desprezo pelo "politicamente correcto", o que era também uma forma de dizer às pessoas que elas podiam recuperar alguma dignidade humana e deixar de ser bichinhos insignificantes face às divindades da política. Cheios de desprezo, os comentadores chamam a isto de "populismo", certamente que temendo pela continuidade dos seus lugares bem pagos.
Sem descurar totalmente o elemento de imagem, Donald Trump tentou recuperar ao longo da campanha os elementos clássicos da retórica, nomeadamente o foco no ‘logos’, falando das dificuldades reais das pessoas, e o seu 'ethos' pessoal, ligado à sua actividade empresarial e não a uma máquina de propaganda. O resultado foi espantoso. Considerado inicialmente apenas como uma notícia humorística, Trump fez a sua escalada e chegou ao primeiro debate entre candidatos à presidência com um empate nas sondagens.
Contudo, aqui chegados, coloca-se a questão de saber quais são os limites para o procedimento "invulgar" de Donald Trump, que quase teve de concorrer à margem do Partido Republicano. Uma coisa é ir conquistando eleitorado enfrentando colegas de partido, mas outra coisa é enfrentar directamente uma Hillary Clinton suportada por uma imensa máquina de propaganda, ou melhor, de controlo mental.
É necessário admitir que a estratégia de Clinton para este primeiro debate foi adequada para os seus fins, o que não é muito difícil de perceber porquê à luz das notas que avancei aqui. Em primeiro lugar, Hillary não apareceu cansada ou mesmo com ar tão alienado como aconteceu em várias ocasiões. Ela assumiu a imagem de uma pessoa madura que debate com um adolescente inconsciente, fazendo constantes sorrisos de condescendência e de superioridade. Ao mesmo, tempo, ela consegue mentir com toda a naturalidade do mundo, aquilo a que os comentadores chamam de "confiança", enquanto Trump não tem esta "virtude" e por vezes perdia alguma fluidez no discurso, também porque foi colocado várias vezes na defensiva por um moderador que não sabia lá muito bem qual era a sua função.
Mas talvez o mais relevante passou-se ao nível do 'pathos'. Quando em comícios anteriores Trump discursou para o seu público, parecia que alguns dos chamados "valores americanos" estavam bem vivos: industrialização, empreendorismo, liberdade (sobretudo materializada na maior desregulamentação), lei e ordem. Víamos o público exaltar com estas coisas e parecia que a América ainda estava viva. Contudo, no ambiente do debate com Hillary sentia-se que algo estava diferente. Apesar de haver um certo compromisso para o público não se manifestar, ele acabou por fazer isto várias vezes, mas não quando Trump apelava aos valores supostamente caros aos americanos.
As intervenções de Hillary acabaram por demolir quase totalmente a pretensão de os valores americanos estarem vivos. Aqui convém recordar o que eu disse anteriormente com o controlo do 'pathos', que em termos um tanto simplistas podemos dizer que está relacionado com o "politicamente correcto". No fundo, a campanha de Hillary Clinton é uma extensão do politicamente correcto, que não é apenas uma série de ideias que estão inculcadas na cabeça das pessoas mas um conjunto de reacções quase epidérmicas perante certas palavras e frases.
Então, se Trump fala em desregulamentação, Hillary diz que tal foi a causa da crise financeira (lá se vai a liberdade); se Trump fala em baixar impostos, Hillary fala em aumentá-los para os ricos (e lá vem o socialismo para os não ricos); se Trump fala em lei e ordem, Hillary contrapõe com o racismo da polícia e dos americanos em geral, defendendo também o controlo de armas. Hillary defende Obama contra Trump, e este nota que ela já disse coisas horríveis sobre Obama, e que essa hipocrisia não pega mais, mas talvez não seja bem assim, porque a frieza dos psicopatas impressiona muita gente. Nota-se que nestas questões o público estava maioritariamente com ela, o que significa que já desistiu do "sonho Americano", se é que alguma vez isso foi mais do que uma fantasia a não ser para uns poucos. Obviamente que Trump percebeu que a argumentação de Hillary era extremamente desonesta e suja, mas pouco podia fazer numa ambiente de debate retórico, em que aquilo que candidata democrata dizia já se transformou numa espécie de senso comum.
Para já, nada está decidido. Obviamente que os principais jornais e comentadores disseram que Hillary ganhou o debate. Só podiam afirmar o contrário se tivesse ocorrido alguma hecatombe. Convenientemente, a CNN apresenta uma expressiva maioria de 62% dando a vitória a Hillary Clinton, mas o público alvo pode estar longe de representar o conjunto nacional americano. Algumas sondagens em sites importantes dão indicadores opostos, mas também eles não serão indicadores confiáveis das intenções de voto por também não serem amostragens aleatórias. Como é normal, a grande maioria os votantes não vai alterar o seu sentido voto devido a este debate, nem sequer por qualquer outra coisa ocorrida até ao fim da campanha, desde que não seja demasiado grave. Contudo, isso pouco importa, porque as eleições serão decididas por curta margem e o que interessa é quem terá o maior ascendente.
O caminho para Hillary Clinton é simples. Ele irá resguardar-se de fazer muitas intervenções públicas, não só para não correr o risco de adoecer mas também para não aparecer mais vezes com ar drogado, o que os jornalistas têm tentado esconder, mas o retiro também servirá para ela preparar com o seu batalhão de assessores os 'sound bytes', as frases condescendentes, os sorrisos idiotas, a firmeza fingida, os olhares falsamente serenos e todas as demais artimanhas, que são inegavelmente eficazes face a um público cada vez mais infantilizado. Ele poderá contar com a ajuda maciça e sempre crescente de todos os jornais, artistas e "líderes mundiais", que se irão desmultiplicar em declarações de apoio à candidata democrata, ao mesmo tempo que irão dramatizar cada vez mais os riscos mortais de Trump subir à presidência. Assim, a sua vitória surgirá com "naturalidade".
O caminho para Donald Trump será inegavelmente mais tormentoso. Ele terá de decidir se vai adocicar mais a sua linguagem, para conquistar algum eleitorado mais moderado (também conhecido por "boiolas"), correndo o risco de nem conseguir isto e de ao mesmo tempo perder algum do ser eleitorado inicial por parecer que já desistir das suas intenções iniciais. Claro que se Trump voltar a um tom mais áspero também corre o risco de perder algum eleitorado, que pode começar a achar que ele é de facto um risco. Seja como for, ele não pode dar-se ao luxo de se retirar como Hillary pode fazer, porque não tem toda uma máquina trabalhando para ele 24 horas por dia. Assim, vai ter que continuar a fazer comício atrás de comício, correndo o risco de vir a ter alguma quebra física entretanto.
Uma vitória de Trump dependerá de vários factores. Por um lado, ele de tem continuar a fazer com que cada vez mais gente acredite no seu desígnio de "tornar a América grande outra vez", e para isso vai ter que impor o seu 'ethos' pessoal sobre a imagem fabricada de Hillary. Por outro lado, ele tem que mostrar a forma absolutamente tendenciosa como são empoladas as suspeitas de ele ser racista ou de ter fugido aos impostos, enquanto os jornalistas não querem destacar coisas incomparavelmente mais graves em relação a Clinton, que tem afirmações onde praticamente faz uma declaração de guerra contra a Rússia, mas também já declarou guerra à religião, ao mesmo tempo que recaem sobre ela suspeitas de crimes de alta traição, financiamento ao Daesh e ligação a todo o tipo de pessoas obscuras. Aparentemente, tudo isto não vai entrar nos próximos debates entre os candidatos (entrou a questão dos e-mails apagados, porque não deu para esconder), e se Trump levantar as questões será considerado lunático. Portanto, será necessário forçar que estes temas entrem em debate, nomeadamente através da pressão através da Internet. Provavelmente, isto não será suficiente mas ao menos servirá para apontar como todo establishment está profundamente corrompido. A hegemonia esquerdista à volta do mundo não é plena e há muita gente que está farta de ser permanente enganada por um sistema que repete sempre as mesmas coisas e atormenta sempre com os mesmos receios. Poderá Trump capitalizar este descontentamento?
Fonte: "Mídia Sem Máscara"
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