Por José Maria e Silva
O Brasil está em transe. E o caos começou pela Bahia, logo após o Ceará. Em apenas onze dias de greve da Polícia Militar baiana, o número de homicídios em Salvador e arredores superou a marca de homicídios ocorridos em todo o mês de fevereiro de 2011. Até sexta-feira, 10 de fevereiro, ocorreram 154 homicídios na capital do Estado contra 137 de todo o mês de fevereiro do ano passado. Salvador, que já estava entre as cidades mais violentas do mundo, tornou-se ainda mais violenta sem a polícia nas ruas. Além dos homicídios, também aumentaram os furtos e roubos de veículos, que totalizaram 752 ocorrências de maior relevância, além de roubos no transporte coletivo, sem contar a destruição de dezenas de lojas.
Segundo reportagem do jornal "A Tarde", de Salvador, mesmo depois que os policiais militares em greve resolveram deixar a Assembleia Legislativa, o clima de tensão nas ruas da capital baiana não diminuiu. As pessoas continuam evitando sair de casa e parte do comércio mantém as portas fechadas. Os 10 mil policiais em greve - de um contingente de 32 mil homens - levaram o caos à cidade, justamente quando a Bahia se preparava para o Carnaval. E o que é mais grave: a situação da Bahia pode se repetir em seis outros Estados, segundo previsão do setor de inteligência do Governo Federal. Em um deles, essa previsão já se confirmou: na noite de quinta-feira, 9 de fevereiro, policias civis, militares e bombeiros do Rio de Janeiro decidiram pela greve.
Como o Brasil não é um país sério, o que mais preocupa o Governo Federal e os governos da Bahia e Rio de Janeiro não é exatamente a segurança do cidadão. Para a presidente da República, Dilma Rousseff, o governador da Bahia, Jaques Wagner (PT), e o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB), os assassinatos em Salvador durante a greve não passam de mera estatística - o que importa mesmo é garantir o rebolado das mulatas nos dois maiores carnavais do país. Mas, para o desespero dos governos brasileiros, que sempre foram cafetões do nosso turismo sexual, a greve da Polícia Militar baiana já causou enormes danos ao Carnaval de Salvador. Dos 3 milhões de turistas esperados, cerca de 10% já cancelaram suas reservas de hotéis (N. do E: até o dia 12 de fevereiro) e os comerciantes baianos falam em prejuízos da ordem de R$ 400 milhões.
Oásis da PM de Brasília
De acordo com o levantamento do serviço de inteligência do Exército, além da Bahia e do Rio de Janeiro, os estados do Pará, Paraná, Alagoas, Espírito Santo e Rio Grande do Sul também podem vir a sofrer com uma greve de suas respectivas polícias militares. Também há descontentamento em Goiás, Mato Grosso e Tocantins. Trata-se de um levante nacional dos policiais militares, iniciado pela greve no Ceará, no início do ano, com o objetivo de aprovar a Proposta de Emenda Constitucional nº 300, de 2008, a chamada "PEC 300", de autoria do deputado federal Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), que cria um piso nacional de salários para a PM. A emenda modifica o parágrafo 9º do artigo 144 da Constituição Federal, estabelecendo que a remuneração dos policiais militares de todos os Estados brasileiros "não poderá ser inferior à da Polícia Militar do Distrito Federal", medida extensiva aos bombeiros e inativos.
Ocorre que os salários da Polícia Militar do Distrito Federal são pagos pela União, isto é, por todos os brasileiros. A Lei 10.633, de 27 de dezembro de 2002, criou o Fundo Constitucional do Distrito Federal, estabelecendo que a União deve custear a Polícia Civil, a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros do Distrito Federal, além de dar assistência financeira para a execução dos serviços de saúde e educação. O primeiro repasse da União para o Distrito Federal de acordo com a lei foi de R$ 2,9 bilhões, já em 2002, a ser corrigido anualmente segundo a variação da Receita Corrente Líquida da União. Em 2012, o Distrito Federal deve receber quase R$ 10 bilhões de reais da União para custear suas áreas de segurança pública, saúde e educação, o que torna sua situação francamente privilegiada em relação aos demais Estados.
Em 8 de maio de 2008, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por meio da Medida Provisória nº 426 (depois transformada na Lei 11.757, de 28 de julho do mesmo ano), concedeu um generoso aumento de salário para os policiais militares e bombeiros do Distrito Federal, mediante um reajuste linear de 14,2% na Vantagem Pecuniária Especial (VPE) de todos os níveis hierárquicos da corporação. A referida vantagem sobre o salário passou a variar de R$ 1.199,54 para o soldado de 2ª classe a R$ 6.192,73 para o coronel. De acordo com uma tabela elaborada pelo deputado distrital Cabo Patrício (PT), o menor salário da PM do Distrito Federal em 2008 passou a ser de R$ 3.029,17, para o soldado de 2ª classe, enquanto o salário de um soldado de 1ª classe ficou em R$ 4.117,78. Já o coronel da PM do Distrito Federal passou a receber um salário de R$ 15.244,25.
Palanque fardado de Lula
Ao conceder esse reajuste para a Polícia Militar do Distrito Federal, Lula armou um verdadeiro palanque ao lado do então governador José Roberto Arruda, que acabaria sendo defenestrado do poder devido a denúncias de corrupção. A solenidade de assinatura da medida provisória foi realizada num ginásio em Brasília, completamente lotado pelos policiais, que ovacionaram Lula quando ele questionou até a carga horária da corporação, dizendo que os policiais precisavam trabalhar menos e ganhar mais. "Nós vamos contratar mais gente, vamos pagar melhor e o povo vai estar muito mais seguro porque vai saber que vai ter policial 24 horas por dia nas ruas", disse Lula. E com uma irresponsabilidade incompatível com qualquer cargo público, ainda mais com o de presidente da República, acrescentou textualmente: "Mas essa é uma tarefa para os próximos quatro anos. Eu já não estarei na presidência, mas estarei torcendo, quem sabe apoiando o sindicato a pressionar o governo para que ele faça o que não consegui fazer".
Como se vê, se José Serra tivesse sido eleito presidente em 2010 e os governos da Bahia e do Rio de Janeiro não estivessem nas mãos do PT, Lula estaria apoiando as greves dos policiais, como fez o próprio Jaques Wagner nas greves da PM baiana quando o Governo do Estado estava nas mãos do PFL, hoje DEM. Aliás, é o que o PT e seus aliados da esquerda têm feito nos estados governados pelo PSDB, como São Paulo. Prova disso é que membros do partido, bem como de outros partidos de esquerda, continuam defendendo a sindicalização dos policiais militares. O próprio presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia (PT), defendeu a sindicalização dos policiais militares na imprensa, ainda que o governo petista condene as greves da Bahia e do Rio de Janeiro - Estados governados por seus aliados. Essa simpatia com que a esquerda apóia a sindicalização de policiais está na própria raiz da PEC 300, em que pese ela não ter sido apresentada por um parlamentar do partido.
Ao assinar a medida provisória que concedeu reajuste salarial para os policiais do Distrito Federal em 2008, o próprio presidente Lula, no discurso para milhares de policiais, admitiu que a medida seria o estopim de reivindicações da corporação em todo os estados. E acabou sendo, com a PEC 300, que, nos últimos três anos, vem mobilizando policiais de todo o país. Mas como os estados não dispõem das benesses da Capital da República e não podem arcar com o custo da equiparação salarial com os policiais de Brasília, a PEC 300 acabou sendo emendada. De acordo com a emenda, caberá à União arcar com o que falta nos cofres dos Estados para pagar o piso nacional dos policiais militares. Obviamente, o governo federal não quer ver essa medida aprovada. Além do seu altíssimo custo, ela poderia ter um efeito cascata em relação a outras categorias essenciais, como médicos e professores, por exemplo, que também poderiam iniciar mobilizações por um piso nacional com base nos salários de Brasília.
Lavagem moral do crime
A verdade é que os policiais ganham muito mal. E justamente nos estados onde a criminalidade urbana é mais forte e exige muito mais deles. É o caso da própria Bahia e, especialmente, do Rio de Janeiro. Há pouco mais de um ano, um soldado fluminense de 1ª classe ganhava R$ 1.137,49, perdendo apenas para o policial gaúcho em termos de baixa remuneração, que, na mesma época, recebia R$ 966,20. Só na última semana, com reajustes acumulados de 107% entre 2007 a 2013, é que o salário-base da PM carioca passará a ser de R$ 1.669. E, no sítio oficial da Polícia Militar do Rio de Janeiro, em matéria veiculada na segunda-feira, 6, é o próprio governador Sérgio Cabral quem se vangloria desse piso, afirmando, com base no reajuste, que não acreditava na eclosão de uma greve entre os policiais fluminenses. É espantoso que um estado rico como o Rio de Janeiro pague ao seu soldado de primeira classe quase R$ 1 mil reais a menos do que ganha um recruta em Sergipe, estado que paga o dobro do Rio (R$ 3.306,96) para o soldado de primeira classe.
Como se vê, o profundo descontentamento dos policiais militares é compreensível. Sobretudo porque, além de não ter salário, eles não têm prestígio. No Rio de Janeiro, por exemplo, tirando o capitão Nascimento do primeiro "Tropa de Elite", qual foi o policial de carne e osso que já mereceu um perfil laudatoriamente embasbacado como o que a revista "Época" dedicou a um traficante, assinado pela jornalista Ruth de Aquino e com o sintomático título de "Meu encontro com Nem"? O próprio conceito de Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), que Sérgio Cabral implantou no Rio e a presidente Dilma Rousseff quer espalhar pelo Brasil (se o seu governo algum dia sair do papel) é, em si mesmo, um conceito criminoso. Só se pode propor a paz num conflito legítimo entre nações soberanas. Se ao se referir ao tráfico, o próprio governo usa o verbo "pacificar" em vez de "reprimir", é óbvio que ele está legitimando a atuação criminosa do bandido, dando a ele o mesmo status institucional do policial militar. A UPP é a lavagem moral do crime feita pelo próprio Estado.
Diante dessa institucionalização da criminalidade, que motivação um policial pode ter para arriscar sua vida enfrentando bandido? Ainda mais que, se der a sorte de sair vivo do confronto, matando o criminoso, é ele quem terá de se explicar para promotores públicos, pesquisadores universitários e ongueiros dos direitos humanos. Para a maioria dos formadores de opinião do país, toda bala perdida, paradoxalmente, tem endereço - saiu sempre da arma do policial. Por isso, as Unidades de Polícia Pacificadora do Rio de Janeiro são tão enaltecidas nas universidades e na imprensa, enquanto a Polícia Militar de São Paulo é a grande vilã de jornalistas e acadêmicos. A cobertura que a imprensa fez da desocupação da favela de Pinheirinho, em São José dos Campos, e do desmonte da Cracolândia, na capital paulista, foi uma verdadeira incitação ao crime e à desordem, com respaldo direto dos intelectuais universitários, que se esmeram em criticar a PM paulista, apesar de sua atuação modelar nos dois episódios, especialmente em Pinheirinho. Até o governo federal estimulou esse verdadeiro assédio moral aos policiais de São Paulo.
Velha fórmula de Lênin
Mas a esquerda está aprendendo que politizar a segurança pública é brincar com fogo. Só que quem pode se queimar é o próprio país. O correto é a polícia jamais fazer greve - quando faz, é porque a situação já está saindo do controle. No Rio de Janeiro, por exemplo, o Estado-Maior da Polícia Militar informou, no começo da noite de sexta-feira, 10 de fevereiro, segundo o jornal "O Globo", que 145 policiais militares tinham sido detidos, sete dos quais em flagrante por incitamento a motim. Outros 129 policiais iriam responder a inquérito administrativo por se negaram a deixar os quartéis em função da greve. Já o porta-voz da PM minimizou os fatos, informando que apenas 16 policiais tinham sido presos.
Quaisquer que sejam os números verdadeiros, eles mostram que o governador Sérgio Cabral resolveu endurecer a repressão aos policiais grevistas. E, em tese, está certo. Se policial não pode fazer greve, sua paralisação, ainda mais com manifestações de protesto, pode ser interpretada como motim. O problema é: com que autoridade um governante brasileiro pode reprimir policiais em greve? Governos que só pensam em Carnaval e futebol e não hesitam em torrar bilhões de reais com a Copa do Mundo não têm credibilidade alguma para dizer a policiais ou professores que não há dinheiro para aumentar salários. Mesmo que seja verdade, como, de fato, é. Os policiais merecem um salário melhor, mas de acordo com a realidade de seus estados. Essa sanha por vincular salários nacionalmente, ainda por cima na Constituição, é a fórmula mas eficaz de trazer a inflação de volta.
Por outro lado, a dura repressão dos governos fluminense e baiano aos líderes da greve vai deixar ainda mais sequelas na corporação, com reflexos no resto do país. O problema está apenas sendo adiado e, mais cedo ou mais tarde, voltará a eclodir. Situação e oposição acreditam que basta garantir o Carnaval que a imagem do Brasil será refeita no mundo e, com isso, a Copa de 2014 estará garantida. O que não percebem é que a convulsão das policiais militares pode levar o país a uma crise institucional. Com o apoio do Governo Federal, os estados estão se acostumando a chamar o Exército em vez de valorizar suas polícias. É a sutil militarização da democracia - com a assinatura do governo petista. Na oposição, a esquerda plantava vento; no poder, se beneficia, domando tempestades. Essa fórmula é tão antiga quando a Revolução Russa - Lênin também semeava o caos, para mais facilmente impor sua ordem.
Publicado no jornal "Opção".
José Maria e Silva é sociólogo e jornalista.
Fonte: "Mídia Sem Máscara"
O Brasil está em transe. E o caos começou pela Bahia, logo após o Ceará. Em apenas onze dias de greve da Polícia Militar baiana, o número de homicídios em Salvador e arredores superou a marca de homicídios ocorridos em todo o mês de fevereiro de 2011. Até sexta-feira, 10 de fevereiro, ocorreram 154 homicídios na capital do Estado contra 137 de todo o mês de fevereiro do ano passado. Salvador, que já estava entre as cidades mais violentas do mundo, tornou-se ainda mais violenta sem a polícia nas ruas. Além dos homicídios, também aumentaram os furtos e roubos de veículos, que totalizaram 752 ocorrências de maior relevância, além de roubos no transporte coletivo, sem contar a destruição de dezenas de lojas.
Segundo reportagem do jornal "A Tarde", de Salvador, mesmo depois que os policiais militares em greve resolveram deixar a Assembleia Legislativa, o clima de tensão nas ruas da capital baiana não diminuiu. As pessoas continuam evitando sair de casa e parte do comércio mantém as portas fechadas. Os 10 mil policiais em greve - de um contingente de 32 mil homens - levaram o caos à cidade, justamente quando a Bahia se preparava para o Carnaval. E o que é mais grave: a situação da Bahia pode se repetir em seis outros Estados, segundo previsão do setor de inteligência do Governo Federal. Em um deles, essa previsão já se confirmou: na noite de quinta-feira, 9 de fevereiro, policias civis, militares e bombeiros do Rio de Janeiro decidiram pela greve.
Como o Brasil não é um país sério, o que mais preocupa o Governo Federal e os governos da Bahia e Rio de Janeiro não é exatamente a segurança do cidadão. Para a presidente da República, Dilma Rousseff, o governador da Bahia, Jaques Wagner (PT), e o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB), os assassinatos em Salvador durante a greve não passam de mera estatística - o que importa mesmo é garantir o rebolado das mulatas nos dois maiores carnavais do país. Mas, para o desespero dos governos brasileiros, que sempre foram cafetões do nosso turismo sexual, a greve da Polícia Militar baiana já causou enormes danos ao Carnaval de Salvador. Dos 3 milhões de turistas esperados, cerca de 10% já cancelaram suas reservas de hotéis (N. do E: até o dia 12 de fevereiro) e os comerciantes baianos falam em prejuízos da ordem de R$ 400 milhões.
Oásis da PM de Brasília
De acordo com o levantamento do serviço de inteligência do Exército, além da Bahia e do Rio de Janeiro, os estados do Pará, Paraná, Alagoas, Espírito Santo e Rio Grande do Sul também podem vir a sofrer com uma greve de suas respectivas polícias militares. Também há descontentamento em Goiás, Mato Grosso e Tocantins. Trata-se de um levante nacional dos policiais militares, iniciado pela greve no Ceará, no início do ano, com o objetivo de aprovar a Proposta de Emenda Constitucional nº 300, de 2008, a chamada "PEC 300", de autoria do deputado federal Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), que cria um piso nacional de salários para a PM. A emenda modifica o parágrafo 9º do artigo 144 da Constituição Federal, estabelecendo que a remuneração dos policiais militares de todos os Estados brasileiros "não poderá ser inferior à da Polícia Militar do Distrito Federal", medida extensiva aos bombeiros e inativos.
Ocorre que os salários da Polícia Militar do Distrito Federal são pagos pela União, isto é, por todos os brasileiros. A Lei 10.633, de 27 de dezembro de 2002, criou o Fundo Constitucional do Distrito Federal, estabelecendo que a União deve custear a Polícia Civil, a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros do Distrito Federal, além de dar assistência financeira para a execução dos serviços de saúde e educação. O primeiro repasse da União para o Distrito Federal de acordo com a lei foi de R$ 2,9 bilhões, já em 2002, a ser corrigido anualmente segundo a variação da Receita Corrente Líquida da União. Em 2012, o Distrito Federal deve receber quase R$ 10 bilhões de reais da União para custear suas áreas de segurança pública, saúde e educação, o que torna sua situação francamente privilegiada em relação aos demais Estados.
Em 8 de maio de 2008, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por meio da Medida Provisória nº 426 (depois transformada na Lei 11.757, de 28 de julho do mesmo ano), concedeu um generoso aumento de salário para os policiais militares e bombeiros do Distrito Federal, mediante um reajuste linear de 14,2% na Vantagem Pecuniária Especial (VPE) de todos os níveis hierárquicos da corporação. A referida vantagem sobre o salário passou a variar de R$ 1.199,54 para o soldado de 2ª classe a R$ 6.192,73 para o coronel. De acordo com uma tabela elaborada pelo deputado distrital Cabo Patrício (PT), o menor salário da PM do Distrito Federal em 2008 passou a ser de R$ 3.029,17, para o soldado de 2ª classe, enquanto o salário de um soldado de 1ª classe ficou em R$ 4.117,78. Já o coronel da PM do Distrito Federal passou a receber um salário de R$ 15.244,25.
Palanque fardado de Lula
Ao conceder esse reajuste para a Polícia Militar do Distrito Federal, Lula armou um verdadeiro palanque ao lado do então governador José Roberto Arruda, que acabaria sendo defenestrado do poder devido a denúncias de corrupção. A solenidade de assinatura da medida provisória foi realizada num ginásio em Brasília, completamente lotado pelos policiais, que ovacionaram Lula quando ele questionou até a carga horária da corporação, dizendo que os policiais precisavam trabalhar menos e ganhar mais. "Nós vamos contratar mais gente, vamos pagar melhor e o povo vai estar muito mais seguro porque vai saber que vai ter policial 24 horas por dia nas ruas", disse Lula. E com uma irresponsabilidade incompatível com qualquer cargo público, ainda mais com o de presidente da República, acrescentou textualmente: "Mas essa é uma tarefa para os próximos quatro anos. Eu já não estarei na presidência, mas estarei torcendo, quem sabe apoiando o sindicato a pressionar o governo para que ele faça o que não consegui fazer".
Como se vê, se José Serra tivesse sido eleito presidente em 2010 e os governos da Bahia e do Rio de Janeiro não estivessem nas mãos do PT, Lula estaria apoiando as greves dos policiais, como fez o próprio Jaques Wagner nas greves da PM baiana quando o Governo do Estado estava nas mãos do PFL, hoje DEM. Aliás, é o que o PT e seus aliados da esquerda têm feito nos estados governados pelo PSDB, como São Paulo. Prova disso é que membros do partido, bem como de outros partidos de esquerda, continuam defendendo a sindicalização dos policiais militares. O próprio presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia (PT), defendeu a sindicalização dos policiais militares na imprensa, ainda que o governo petista condene as greves da Bahia e do Rio de Janeiro - Estados governados por seus aliados. Essa simpatia com que a esquerda apóia a sindicalização de policiais está na própria raiz da PEC 300, em que pese ela não ter sido apresentada por um parlamentar do partido.
Ao assinar a medida provisória que concedeu reajuste salarial para os policiais do Distrito Federal em 2008, o próprio presidente Lula, no discurso para milhares de policiais, admitiu que a medida seria o estopim de reivindicações da corporação em todo os estados. E acabou sendo, com a PEC 300, que, nos últimos três anos, vem mobilizando policiais de todo o país. Mas como os estados não dispõem das benesses da Capital da República e não podem arcar com o custo da equiparação salarial com os policiais de Brasília, a PEC 300 acabou sendo emendada. De acordo com a emenda, caberá à União arcar com o que falta nos cofres dos Estados para pagar o piso nacional dos policiais militares. Obviamente, o governo federal não quer ver essa medida aprovada. Além do seu altíssimo custo, ela poderia ter um efeito cascata em relação a outras categorias essenciais, como médicos e professores, por exemplo, que também poderiam iniciar mobilizações por um piso nacional com base nos salários de Brasília.
Lavagem moral do crime
A verdade é que os policiais ganham muito mal. E justamente nos estados onde a criminalidade urbana é mais forte e exige muito mais deles. É o caso da própria Bahia e, especialmente, do Rio de Janeiro. Há pouco mais de um ano, um soldado fluminense de 1ª classe ganhava R$ 1.137,49, perdendo apenas para o policial gaúcho em termos de baixa remuneração, que, na mesma época, recebia R$ 966,20. Só na última semana, com reajustes acumulados de 107% entre 2007 a 2013, é que o salário-base da PM carioca passará a ser de R$ 1.669. E, no sítio oficial da Polícia Militar do Rio de Janeiro, em matéria veiculada na segunda-feira, 6, é o próprio governador Sérgio Cabral quem se vangloria desse piso, afirmando, com base no reajuste, que não acreditava na eclosão de uma greve entre os policiais fluminenses. É espantoso que um estado rico como o Rio de Janeiro pague ao seu soldado de primeira classe quase R$ 1 mil reais a menos do que ganha um recruta em Sergipe, estado que paga o dobro do Rio (R$ 3.306,96) para o soldado de primeira classe.
Como se vê, o profundo descontentamento dos policiais militares é compreensível. Sobretudo porque, além de não ter salário, eles não têm prestígio. No Rio de Janeiro, por exemplo, tirando o capitão Nascimento do primeiro "Tropa de Elite", qual foi o policial de carne e osso que já mereceu um perfil laudatoriamente embasbacado como o que a revista "Época" dedicou a um traficante, assinado pela jornalista Ruth de Aquino e com o sintomático título de "Meu encontro com Nem"? O próprio conceito de Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), que Sérgio Cabral implantou no Rio e a presidente Dilma Rousseff quer espalhar pelo Brasil (se o seu governo algum dia sair do papel) é, em si mesmo, um conceito criminoso. Só se pode propor a paz num conflito legítimo entre nações soberanas. Se ao se referir ao tráfico, o próprio governo usa o verbo "pacificar" em vez de "reprimir", é óbvio que ele está legitimando a atuação criminosa do bandido, dando a ele o mesmo status institucional do policial militar. A UPP é a lavagem moral do crime feita pelo próprio Estado.
Diante dessa institucionalização da criminalidade, que motivação um policial pode ter para arriscar sua vida enfrentando bandido? Ainda mais que, se der a sorte de sair vivo do confronto, matando o criminoso, é ele quem terá de se explicar para promotores públicos, pesquisadores universitários e ongueiros dos direitos humanos. Para a maioria dos formadores de opinião do país, toda bala perdida, paradoxalmente, tem endereço - saiu sempre da arma do policial. Por isso, as Unidades de Polícia Pacificadora do Rio de Janeiro são tão enaltecidas nas universidades e na imprensa, enquanto a Polícia Militar de São Paulo é a grande vilã de jornalistas e acadêmicos. A cobertura que a imprensa fez da desocupação da favela de Pinheirinho, em São José dos Campos, e do desmonte da Cracolândia, na capital paulista, foi uma verdadeira incitação ao crime e à desordem, com respaldo direto dos intelectuais universitários, que se esmeram em criticar a PM paulista, apesar de sua atuação modelar nos dois episódios, especialmente em Pinheirinho. Até o governo federal estimulou esse verdadeiro assédio moral aos policiais de São Paulo.
Velha fórmula de Lênin
Mas a esquerda está aprendendo que politizar a segurança pública é brincar com fogo. Só que quem pode se queimar é o próprio país. O correto é a polícia jamais fazer greve - quando faz, é porque a situação já está saindo do controle. No Rio de Janeiro, por exemplo, o Estado-Maior da Polícia Militar informou, no começo da noite de sexta-feira, 10 de fevereiro, segundo o jornal "O Globo", que 145 policiais militares tinham sido detidos, sete dos quais em flagrante por incitamento a motim. Outros 129 policiais iriam responder a inquérito administrativo por se negaram a deixar os quartéis em função da greve. Já o porta-voz da PM minimizou os fatos, informando que apenas 16 policiais tinham sido presos.
Quaisquer que sejam os números verdadeiros, eles mostram que o governador Sérgio Cabral resolveu endurecer a repressão aos policiais grevistas. E, em tese, está certo. Se policial não pode fazer greve, sua paralisação, ainda mais com manifestações de protesto, pode ser interpretada como motim. O problema é: com que autoridade um governante brasileiro pode reprimir policiais em greve? Governos que só pensam em Carnaval e futebol e não hesitam em torrar bilhões de reais com a Copa do Mundo não têm credibilidade alguma para dizer a policiais ou professores que não há dinheiro para aumentar salários. Mesmo que seja verdade, como, de fato, é. Os policiais merecem um salário melhor, mas de acordo com a realidade de seus estados. Essa sanha por vincular salários nacionalmente, ainda por cima na Constituição, é a fórmula mas eficaz de trazer a inflação de volta.
Por outro lado, a dura repressão dos governos fluminense e baiano aos líderes da greve vai deixar ainda mais sequelas na corporação, com reflexos no resto do país. O problema está apenas sendo adiado e, mais cedo ou mais tarde, voltará a eclodir. Situação e oposição acreditam que basta garantir o Carnaval que a imagem do Brasil será refeita no mundo e, com isso, a Copa de 2014 estará garantida. O que não percebem é que a convulsão das policiais militares pode levar o país a uma crise institucional. Com o apoio do Governo Federal, os estados estão se acostumando a chamar o Exército em vez de valorizar suas polícias. É a sutil militarização da democracia - com a assinatura do governo petista. Na oposição, a esquerda plantava vento; no poder, se beneficia, domando tempestades. Essa fórmula é tão antiga quando a Revolução Russa - Lênin também semeava o caos, para mais facilmente impor sua ordem.
Publicado no jornal "Opção".
José Maria e Silva é sociólogo e jornalista.
Fonte: "Mídia Sem Máscara"
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