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domingo, 24 de novembro de 2024

Vale muito a pena ler "A valsa entre cactos"


Por Romildo Alves

Este é o segundo livro que leio de Conceição Carvalho. Um romance ambientado em espaços e tempos cruciais da nossa história, a Bahia, diversa como nosso país e povoada de atores da luta contra as páginas de repressão da nossa história. Espaço também cheio de mistérios, que vão das entranhas da terra da Chapada Diamantina ao infinito dos céus, da religião e dos O.V.N.Is.

O romance é dividido em quatro partes e não segue uma cronologia linear. A primeira parte se passa entre os anos de 1965 a 1970, e é a partir dela que se desencadeia a metafórica valsa entre cactos do título. 

Do baile de 15 da personagem Cândida, ocasião em que ocorre a tradicional valsa, à dança, jogo de corpo e de passos, arte que contorna e ludibria os cactos espinhentos de um sistema agressivo, fonte de ameaças e dores agudas. São os cactos da Ditadura Militar, instalada há um ano antes do seu aniversário. Eles perfuram o coração apaixonado de Cândida, amante da jovem flor, Oscar Ferrier, que teima em se abrir em meio aos espinhos. O jovem militante em oposição aos ditadores é ausência certa na festa oferecida pela família de Cândida, mas é o par perfeito da aniversariante, numa dança silenciosa que se dá em meio ao barulho dos convidados. É o espinho da paixão que faz com que Cândida, filha de uma abastada família radicada em Feira de Santana, rebele-se, ano seguinte, para estudar no Colégio Central de Salvador, onde passa a se envolver nas lutas dos estudantes secundaristas contra a repressão militar. A coincidência de origem da personagem Cândida e da autora, Conceição, não retrata uma linha autobiográfica do romance. Embora o amor de cândida por Oscar Ferrier também dialogue com aspectos da vida amorosa de sua autora, vale ressaltar que são lampejos, motes para construção de sua trama, que vão se aliar a outros advindos de pesquisas, e da imaginação com que se pode pintar uma garota apaixonada, do que esta era capaz de fazer por amor. Definitivamente, as ações e atitudes de Cândida são meramente fictícias. 

A segunda parte, compreende os anos de 1971 a 1974 e é marcada pelos efeitos repreensivos do AI5, com a intimação, condenação e prisão de militantes ou qualquer suspeito de ato subversivo ao sistema. Nela, vemos a amizade de Cândida e Moema Duarte, professora presa sob falsa acusação de agitação ideológica. A peregrinação e luta de Cândida por justiça é outra dança arriscada por entre os curtos e estreitos espaços de uma lei fora da lei. Mas também, em paralela a esta, permanecia a dança do seu coração, os movimentos sutis e arriscados para encontrar-se com seu amor. Numa dessas manobras da paixão, a autora descreve um casamento tropical que se deu em Feira de Santana, ficcionaliza um evento real, o casamento do poeta e jornalista Franklin Maxado e a atriz Maria Helena. A propósito, a personagem Moema e sua prisão são elementos do mundo real, a professora Yara Cunha, que a exemplo do advogado e político Chico Pinto, foi alvo da ditadura no cenário feirense. Novamente, não se trata de um relato fiel aos fatos, apesar de uma real amizade da autora com a professora Yara, que se daria anos depois. À época da sua prisão, ainda não se conheciam.  

A terceira parte, faz um retrospecto temporal de 1945 a 1951. A reviravolta no tempo se dá por demanda da reviravolta na vida da personagem Cândida. A partir da descoberta de sua adoção, sua história precisa ser revista, remontada. Cândida lê e/ou relê suas origens na hostilidade do garimpo, onde sua verdadeira mãe, no anseio de uma pepita, reconstitui o sentido da sua vocação na luta pela emancipação feminina e humana na hostil ditadura militar. 

A quarta e última parte, retoma a marcha do tempo, interrompida com as mudanças de rumos causadas pela ditadura e pelos ditames de sua nova realidade: Cândida vê-se filha de uma outra mãe e de um outro pai e prestes a ser mãe de um filho cujo pai está na conta dos desaparecidos e provavelmente mortos pelo regime militar. 

Ambientado no ano de 1974, o desfecho de "A valsa entre cactos" transpõe as fronteiras, faz um voo para o outro lado do Atlântico, e forma par cadencioso e triunfante, no encontro com seu pai biológico e no reencontro com seu amado, num exílio em si mesma. 

Tantos outros aspectos poderiam ser explorados, nesse texto, dada a riqueza desta obra: sua amizade com Lara, uma misteriosa garota que buscava se comunicar com OVNIs, a descrição cheia de simbolismo da morte de Morena, a mãe biológica de Cândida, e a dimensão poética da pedra preciosa que ela garimpa enquanto gestava a filha. São alguns exemplos. 

Neste livro, bailam Cândida e Oscar e cada brasileiro e brasileira que apostaram nos seus ideais, na força do amor e na verdade diante de tantas falsas narrativas, de tantos inescrupulosos ideias e do ódio destilados pela Ditadura Militar. 

Ao final dessa leitura e dessa reflexão fica-nos uma pergunta: O que é nesta vida que não são cactos (misto de muitos espinhos e rara flor), proposta desafiadora de uma dança? 

Vale muito a pena ler "A valsa entre cactos". 

#Viva a literatura! #Viva a leitura

Romildo Alves é professor de Literatura, poeta e cordelista



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