Fotos e filme de Benjamin Abrahão criariam o gênero "Nordestern" e decretariam o fim de Lampião
Por Albenísio Fonseca
Em 1936, Lampião e seu cotidiano na caatinga é fotografado e filmado pelo fotógrafo libanês-brasileiro Benjamin Abrahão Botto, antecipando o"Nordestern", um misto do cangaço no Nordeste com o Western dos bang-bang norte-americanos.
A repercussão das fotos do bando nas capas dos jornais, em pleno Estado Novo, indignaram o presidente e ditador Getúlio Vargas. As cenas do documentário mudo de Benjamin Abrahão Botto se convertem no pretexto final para por fim ao banditismo no Nordeste. A filmagem mostrava ao país a rotina do bando de Lampião na caatinga, com cangaceiros alegres, bem vestidos e a exibir joias. Em nada pareciam fugitivos.
Sentindo-se afrontado, Getúlio Vargas ordena aos interventores nos estados do Nordeste, notadamente ao de Alagoas, Osman Loureiro, que "parassem de fazer vista grossa e aniquilassem o rei do cangaço".
Conforme o historiador Frederico Pernambucano de Mello, "Lampião vivia fora da lei, mas mantinha excelente relacionamento com os poderosos. Era protegido por coronéis e políticos. O governador de Sergipe, Eronildes Ferreira de Carvalho, tinha amizade com Lampião e lhe fornecia armamento e munição".
O Brasil deixava de ser agrário
A instalação do Estado Novo, em 10 de novembro de 1937, segundo Pernambucano de Mello, "pôs fim à promiscuidade entre poder público e banditismo. Uma das bandeiras da ditadura era a modernização do país. Nesse novo Brasil, que deixava de ser agrário para se tornar urbano e industrial, o cangaço era uma mancha a ser apagada".
Para o professor Jorge Luiz Mattar Villela, da Universidade Federal de Santa Catarina, contudo, a morte de Lampião e a extinção do fenômeno do cangaço "estão muito menos relacionadas com o advento do Estado Novo do que é frequentemente suposto".
A afirmação dele, conforme argui, é apoiada "não só pela documentação da época e pelos relatos de ex-cangaceiros, mas também pela comparação dos modos de vida de Lampião no período de coexistência de cangaceirismo e Estado Novo e períodos anteriores (entre 1927 e 1928)". Villela sustenta que "muito mais importante do que as interferências dos estratos políticos superiores são, no que concerne à morte de Virgulino Ferreira da Silva, os valores socioculturais sertanejos e, no que diz respeito à extinção do cangaço, às modificações na paisagem e na organização espacial sertaneja".
O "beijo quente" da morte
28 de julho de 1938. O bando de Lampião é cercado na Fazenda Angico, no sertão de Sergipe. Uma tropa de 48 policiais de Alagoas, comandada pelo tenente João Bezerra e munida com quatro metralhadoras Hotkiss (beijo quente), dispara contra os 34 cangaceiros presentes. Onze morrem ali mesmo, entre eles Lampião e sua companheira, Maria Bonita.
Alguns cangaceiros conseguem escapar. Todos os mortos tiveram suas cabeças cortadas. Maria foi degolada viva. O fim dramático do bando de Lampião repercutiria negativamente entre outros cangaceiros e, a partir de então, muitos bandos se desfizeram e alguns se entregaram.
Filme mimetiza personagens
Em "Revoada", filme sob roteiro e direção do cineasta José Umberto, uma ficção que calça as mesmas alpercatas de couro da realidade do cangaço, os protagonistas Lua Nova e Jurema (maravilhosamente interpretados pelos atores baianos Jackson Costa e Analu Tavares) mimetizam as figuras de Corisco e sua mulher Dadá.
O casal de cangaceiros, ele morto e ela presa em 1940, não puderam sequer ostentar o marco histórico do fim do cangaço.
Conforme estudiosos do tema, "costuma-se situar em 1940 o fim do cangaço. Este é na verdade o ano da morte de Corisco e da prisão de sua mulher, Dadá. O dado de Corisco ser considerado o último cangaceiro, decorre do fato de que todos os demais tinham sido presos, exterminados ou aproveitado a anistia ofertada pelo Estado Novo".
Arreios também significa Cangaço
Ao ser morto pelo aspirante José Rufino, Corisco já não era um cangaceiro. De fato, ele recusou-se a entregar-se, mas já não tinha qualquer condição física de seguir na vida árdua do cangaço.
Antes de sua fuga, Corisco cortara os longos cabelos - moda entre os cangaceiros desde que Lampião deixara os seus crescerem - livrara-se de seus arreios e era um homem impossibilitado de sustentar sequer uma arma longa devido aos ferimentos recebidos nos braços. Arreios era o termo empregado pelos cangaceiros para se referirem aos equipamentos de armas e munições, que também era chamado de cangaço.
Corisco estava migrando para Minas Gerais, atravessando a Chapada Diamantina (local onde "Revoada" foi filmado), o que fazia dele um mero retirante ou um fugitivo desesperado, porém, não mais um cangaceiro.
Três Cactos de Ouro
Exibido no 10° Encontro de Cinema e Vídeo dos Sertões, em Floriano, no Piauí, "Revoada" - última película rodada em super 16mm na Bahia - fatura o Cacto de Ouro para Melhor Atriz, Melhor Figurino e Melhor Maquiagem.
Fenômeno sociocultural, o cangaço foi uma forma de banditismo peculiar no nordeste brasileiro, vivida por sertanejos pobres que encontravam nessa prática proteção contra a exploração e a fome, ainda que sendo um modo de vida marginal e criminoso.
Muitos homens e mulheres ingressam no cangaço, e passam a viver vagando pelo sertão em busca de dinheiro, comida, armas e munição num espírito de vingança contra o domínio dos latifundiários e do governo.
Os cangaceiros tinham, muitas vezes, apoio da população mais pobre que lhes fornecia abrigo e informações que os ajudavam a escapar das forças policiais, conhecidas como "volantes".
Origem no século 19
O cangaço ganharia força inicial ainda no século 19, como resultado das condições impostas pelas secas cruciantes de 1877-1878, mas o banditismo somente atingiria o clímax, já sob a liderança de Lampião, na década de 1920.
O primeiro bando de cangaceiros de que se tem conhecimento foi o de Jesuíno Alves de Melo Calado, apelidado "Jesuíno Brilhante" que, entre 1871 e 1879, agia entre os estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba, até ser morto em uma emboscada.
O pernambucano Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião (1898-1938) seria o mais bem-sucedido líder cangaceiro da história, o que lhe contemplaria com o título de Rei do Cangaço. Até os 20 anos de idade Virgulino trabalhava como artesão de couro. Era alfabetizado e usava óculos para leitura, características bastante incomuns para a região sertaneja e pobre onde ele morava.
Apelido e razões de vingança
Uma das versões a respeito de seu apelido é que sua capacidade de atirar seguidamente, iluminava a noite com seus tiros, levando a que recebesse o apelido de lampião. Lampião entra para o cangaço junto com mais dois irmãos, movidos pelo propósito de vingar a morte do pai em confronto com a polícia.
Em 1922, torna-se líder do bando e, desde então, percorre praticamente todos os estados do nordeste. Ataca fazendas e cidades além de praticar roubo de gado, saques, sequestros, assassinatos, torturas, mutilações e estupros. Sua passagem causava terror e indignação nos moradores.
Ainda assim, Lampião e seu bando eram frequentemente protegidos por coiteiros, entre fazendeiros, pequenos sitiantes ou mesmo autoridades locais que ofereciam abrigo e alimentos aos bandos por curto tempo nos limites de suas terras, facilitando o deslocamento dos cangaceiros pelo Nordeste e sua fuga das forças volantes do Estado.
Luta contra a Coluna Prestes
Há o registro histórico de que em 1926, por ocasião do avanço da Coluna Prestes (1925-1927) na cidade de Juazeiro do Norte, Lampião foi cooptado pelo governo do Ceará para enfrentar e derrotar os homens da coluna. A recompensa prometida é a patente de Capitão da Guarda Nacional, título que Lampião acaba adotando.
Em 1929, ele conhece, no sertão da Bahia, a jovem Maria Gomes de Oliveira, então com 18 anos, chamada desde a infância de Maria de Déa, com quem se casaria um ano depois. Somente após sua morte é que ela passaria a ser identificada como Maria Bonita, primeira mulher a ingressar no cangaço.
Era noite, chovia muito
27 de julho de 1938. Lampião e seus homens acampam na fazenda Angicos, no sertão de Sergipe. Mesmo questionado por líderes dos seus sub bandos com os quais se reunira no local, por dispor de apenas uma saída, o esconderijo era tido por Lampião como o de maior segurança.
Era noite, chovia muito e todos dormiam em suas barracas. Os policiais comandados pelos tenente João Bezerra e sargento Aniceto Rodrigues da Silva chegam silenciosamente e sequer são percebidos pelos cães. O ataque ocorre ao amanhecer.
O bando é pego totalmente desprevenido, sem chance de se defender dos tiros das metralhadoras disparados durante cerca de vinte minutos. Dos 34 cangaceiros presentes, 11 morrem ali mesmo. Lampião é um dos primeiros a morrer. Logo em seguida, Maria Bonita.
Os policiais degolam os mortos e apreendem todo o dinheiro, o ouro e as joias dos cangaceiros. As cabeças são salgadas e colocadas em latas de querosene contendo aguardente e cal. Os corpos mutilados e ensanguentados são deixados a céu aberto, como alimento para urubus.
Cabeças cortadas e expostas
Na cidade de Piranhas, em Alagoas, para onde foram conduzidas inicialmente, as cabeças chegaram a ser arrumadas na escadaria da Prefeitura, junto com armas e apetrechos dos cangaceiros, e fotografadas.
O féretro macabro seguiria depois por diversas cidades do Nordeste onde as cabeças degoladas são expostas atraindo muita gente.
São levadas, finalmente, para Salvador, onde permanecem, primeiro na Faculdade de Odontologia da Ufba e, depois, no Museu Antropológico localizado no prédio do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, na antiga Faculdade de Medicina, no Centro Histórico da capital baiana.
As cabeças de Lampião, Maria Bonita e demais integrantes do bando, sob relutância de dirigentes do museu e graças aos esforços de Sílvio Hermano de Bulhões (1936 - 2024) - filho de Corisco e Dadá que foi criado por um padre –-somente seriam sepultadas em fevereiro de 1969.
Fonte: https://bahiarevista.home.blog/
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