Dez anos após sua partida, André Setaro é lembrado por seu impacto no cinema e na cultura baiana
Por Lucas Fróes
No último dia 10 de julho, completamos dez anos sem o professor e crítico de cinema André Setaro. Dez anos sem a presença de seu indefectível avatar que combinava obrigatórios óculos escuros, barba branca, camisa social e calça jeans.
No bolso da camisa estava sempre um maço de cigarro, seu “melhor amigo”, como dizia, horrorizado pelo anti-tabagismo da época que chamava de “maldita contemporaneidade”.
Dono de um boteco virtual, fazia-o presencial pelos bares de Salvador na companhia de amigos, alunos, ex-alunos e admiradores, com pontualidade mais do que britânica. Sua boemia não fazia concessões aos problemas de saúde.Quando esteve internado à espera de uma cirurgia de ponte de safena, seu quarto era tão frequentado que foi comparado ao de Glauber Rocha.
Dizia que, aos 14 anos, conseguiu entrar sorrateiramente no Cine Guarany — hoje rebatizado com o nome de Glauber — para assistir a estreia de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.
O certo é que conheceu um enjaquetado Glauber, quatro anos depois, levado por Walter da Silveira ao Curso Livre de Cinema em que Setaro estudava. Em 1976, os dois encontraram-se para uma entrevista que há quase meio século adormece numa fita.
Embora ela tenha estado em Salvador, os arquivos de A Tarde não registram, como ele contou, nenhum encontro de Setaro com Catherine Deneuve, com quem dizia ter feito impromptu dueto cantando o tema de “Os Guarda-chuvas do Amor”. Não faz mal, sua paixão sempre foi por Brigitte Bardot.
Mas uma foto do diretor Werner Herzog lhe dando comida na boca prova que a fronteira entre fantasia e realidade era tênue para o onírico, irônico e boêmio crítico de cinema.
Quando James Stewart veio ao Rio de Janeiro, em 1984, Setaro estava lá. Na sessão de “Vertigo”, na cabine da Paramount, por coincidência, quem sentou-se ao seu lado e permaneceu ali nos primeiros minutos da projeção foi o próprio Stewart, que Setaro via simultaneamente na tela e na poltrona vizinha. “Felizmente, para que eu pudesse assistir o filme, ele bateu no meu ombro: ‘I see you later’”.
E realmente encontraram-se, no saguão do hotel, com a intermediação de uma tradutora e de alguns whiskys. Antes, na coletiva, Setaro lhe perguntou qual era seu filme preferido. A resposta, que Ruy Castro aproveitou para publicar na Folha, foi “Janela Indiscreta”.
Setaro trabalhou em alguns filmes, mas preferia assisti-los. “Eu gosto de ver filmes, e não de fazê-los”, sentenciou em entrevista ao A Tarde. É autor do livro “Panorama do Cinema Baiano” e da trilogia “Escritos sobre Cinema”. O seu “Setaro’s Blog”, ainda no ar, é uma rica fonte de memória e conhecimento cinematográficos. Dizia que, no percurso para conhecer o cinema, era preciso sofrer para aprender.
Polido, mas provocador, não alterava o tom solene da fala, o que tornava tudo mais insólito e engraçado. Em 1985, na TV Manchete, detonou os cineastas da Nova República. Era contra hagiografias, inclusive a sua.
Alain Resnais era a exceção à regra. Setaro já não analisava suas obras criticamente, apenas celebrava cada nova produção do veterano cineasta francês. Os dois faleceriam no mesmo ano.
"Ah, não! André Setaro, não!”, lamentou Inácio Araujo na Folha, há dez anos. “Desta vez a perda é nossa: da observação, da análise, do discurso sobre o cinema”.
André Setaro foi uma “avis rara”, como dizia para referir-se a alguém que merecesse sua distinção. Gostava sempre de citar um verso de Alphonse de Lamartine, “Ó, tempo, suspende teu voo”, porque intimamente sofria sabendo que o tempo andava cada vez mais célere para vir buscá-lo e levá-lo para o infinito.
Fonte: https://atarde.com.br/
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