Por Alexandre Borges
Se você sente náuseas
com blogueiros bancados por estatais, espere até assistir um filme "baseado em
fatos reais" patrocinado por elas. Bem vindo à era da história reescrita pelo
cinema nacional chapa-branca.
Como filme, "Getúlio" não inova em nada. A fotografia é óbvia, a trilha é
burocrática, a narrativa é claramente inspirada em "A Queda - As Últimas Horas
de Hitler (2004)", as atuações esquemáticas, com momentos constrangedores como
quando os atores tentam falar com sotaque gaúcho. Como registro histórico, "Getúlio" é um acinte a serviço de uma agenda política.
Para não deixar
dúvidas, João Jardim, diretor e co-roteirista do filme, disse: "é bom lançar o
filme em ano de eleição, para fazer com que as pessoas reflitam antes de
votar". Em diversas entrevistas, Jardim deixa claro que vê similaridades entre
o momento político atual brasileiro e aqueles 19 dias que separaram o atentado
a Carlos Lacerda na Rua Tonelero e o suicídio de Vargas.
O Getúlio Vargas de João Jardim é o defensor dos trabalhadores que criou a
Petrobras, uma das patrocinadoras do filme, o que teria colocado o
ex-presidente em oposição aos militares. Em que país João Jardim foi encontrar
militares opositores de estatais? No Brasil é que não foi. O regime militar
iniciado em 1964 encontrou um país com 50 estatais e devolveu com mais de 500.
Se esses são os militares que não gostam de estatais, imagino o que fariam se
gostassem.
A Petrobras foi criada a partir de uma campanha ultranacionalista encabeçada
pelo general Felicíssimo Cardoso, que entrou para a história como o "general do
petróleo". Felicíssimo esteve à frente da campanha "O Petróleo É Nosso", criou
um think tank (Centro de Estudos e Defesa do Petróleo e da Economia Nacional) e
uma revista com o objetivo explícito de pressionar o governo a criar a estatal.
Se alguém pode ser considerado o "pai" da Petrobras é o general Felicíssimo
Cardoso, mas como ele é também tio do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso
fica fácil entender porque seu nome está sendo apagado da história e não é lembrado
nos filmes que a Petrobras hoje patrocina.
De todos os crimes e licenças do roteiro, o mais grave é relativizar algo que é
fato (o atentado a Carlos Lacerda, que vitimou o major Rubens Vaz) e dar como
certa a inocência de Vargas, o que está longe de ser um ponto pacífico da
história brasileira. O diretor de "Getúlio" tem todo direito de não acreditar
que o ex-ditador, líder de um dos regimes mais autoritários e sangrentos da
história do país, o famigerado Estado Novo, não estava diretamente envolvido
com o atentado, mas colocar a questão como resolvida e Vargas como inocente é
reescrever a história.
O cinema praticamente nasceu produzindo libelos políticos. O clássico "O
Nascimento de uma Nação" (D. W. Griffith, 1915) já defendia a agenda política
racista do Partido Democrata americano e do presidente da época, Woodrow
Wilson, colocando negros como uma sub-raça e enaltecendo a Ku Klux Klan.
Griffith inspirou Serguei Eisenstein, seu fã confesso e cineasta-militante do
bolchevismo soviético. Desde então, o cinema nunca parou de defender,
explicitamente ou não, causas políticas, especialmente os produzidos com
patrocínio direto ou indireto de governos.
Em "Getúlio", o roteiro pretende resolver uma das maiores polêmicas da história
do Brasil: Vargas estava envolvido ou não na tentativa de assassinato de Carlos
Lacerda? Para o filme, não estava e pronto. Não satisfeito, o roteiro dá
piscadelas para teorias conspiratórias lisérgicas como sugerir que Lacerda
pudesse ter simulado o próprio atentado, algo que nem o getulista mais
empedernido ousaria pensar.
O filme quer passar a ideia de que Vargas, defensor do povo e das estatais, foi
vítima de uma armação política suja com o apoio da imprensa golpista. O
protagonista do filme tem pouca noção do que seus auxiliares mais próximos
faziam dentro do palácio e sua boa fé acabou por custar seu governo. O Getúlio
de João Jardim é, evidentemente, o Lula do ideário petista, um pai dos
pobres vilipendiado por uma trama que unia a imprensa e a direita inescrupulosa,
antidemocrática e sedenta de poder.
Ao colocar Tony Ramos no papel principal, logo o ator mais querido e popular do
Brasil, João Jardim buscou criar uma identificação imediata do público com
o ex-presidente, uma opção para que o espectador não tivesse qualquer dúvida de
quem apoiar desde o início. Já nos créditos finais, o filme subestima mais uma
vez a capacidade do público de tirar suas próprias conclusões e coloca uma
frase de Tancredo Neves, num didatismo gritante, afirmando que o suicídio de
Vargas em 1954 atrasou o golpe militar em dez anos.
"Getúlio" é uma peça de propaganda ideológica dissimulada, com uma leitura
muito particular e ideológica da história do Brasil, que faz escolhas que
tentam recontar a época torcendo episódios para que se encaixem na narrativa
que interessa ao diretor e aos patrocinadores do filme.
Se "Getúlio" for o marco inicial de uma safra de filmes militantes, é mais um
motivo para arrumar as malas e buscar o Galeão que tanto assombrava Vargas, um
mártir da própria consciência que levou para o túmulo a verdade sobre a
tentativa de assassinato de um opositor, o único crime comprovadamente ocorrido
naqueles 19 dias de agosto de 1954.
Alexandre Borges é diretor do Instituto Liberal
Fonte: "Mídia Sem Máscara"
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