Por Mário
Chainho
Aristóteles ensinava que um
discurso retórico era composto por três elementos: 'logos', 'ethos' e 'pathos'.
O 'logos' é a racionalidade do discurso, embora possa o termo possa ser
entendido como o próprio discurso. No caso retórico, a argumentação é composta
de exemplos e entimemas. O 'ethos' refere-se ao carácter e à força de persuasão
do orador, e o 'pathos' aos sentimentos e crenças do auditório.
Estes três elementos não estão realmente separados, por isso os
oradores usam gestos, olhares, sorrisos e certos tons de voz para reforçar o
seu 'ethos' ou eventualmente ridicularizarem o do adversário. Por outro lado,
algumas das passagens dos discursos de Cícero nos tribunais ou no senado
parecem-nos hoje de mau gosto, mas na altura eram necessárias para ir de encontro
ao 'pathos' da plateia.
Quando analisamos a carreira de Churchill podemos ver como o peso
relativo destes três elementos se alterou. Nas primeiras décadas do séc. XX
Churchill discursou várias vezes para um parlamento ou para um público hostil,
mas a força do seu carácter e da sua argumentação conseguiram colocar a
esmagadora maioria a seu favor no final. Contudo, gradualmente isto tornou-se
cada vez difícil de acontecer, não porque Churchill tenha perdido qualidades
mas porque as pessoas estavam cada vez menos dispostas a ouvir e a deixarem-se
vencer pelos argumentos e pela autoridade de orador mas apenas pretendiam ver
defendidas as suas crenças iniciais. Os discursos de Churchill na Segunda
Guerra Mundial, como o famoso "sangue, suor e lágrimas", só tinham
eficácia por se viver numa situação excepcional, dado que em situações normais
aquilo já não funcionava.
Note-se que Churchill tentou adaptar-se sempre à alteração das
circunstâncias. Muito cedo ele começou a fazer comunicações pela rádio que tinham
muito populares. Mas frequentemente ele era um homem sozinho não apenas na sua
luta contra o totalitarismo mas também sendo ostracizado da política do seu
país. As máquinas partidárias e de militância naturalmente que aproveitavam
também o novo meio de comunicação de massas, e apesar de Churchill ainda ser
eficaz quando comunicava, o efeito acabava por se diluir num processo precursor
da 'espiral do silêncio', aparecendo múltiplas fontes submergindo os seus
discursos.
Em 1960 deu-se uma outra alteração de monta, quando os debates
passaram a ser também transmitidos pela televisão. O famoso debate entre
Kennedy e Nixon foi assistido por uma minoria de pessoas através da rádio e
pelas restantes na televisão. As primeiras acharam que Nixon tinha ganho o debate,
mas as segundas não tiveram dúvidas em atribuir a vitória a Kennedy. A rádio
permite a transmissão do 'logos' e uma parte do 'ethos'. Contudo, uma segunda
parte do 'ethos', ligada à imagem, mostrou que podia facilmente sobrepor-se a
estes factores. Nixon vinha recuperando de uma doença, ainda estando magro e
suava também, e Kennedy aparecia calmo e confiante. Isto foi o suficiente para
um candidato parecer muito melhor do que o outro.
Desde então o elemento "imagem" foi muito trabalhado
para convencer as pessoas a certas atitudes a partir dos mínimos indícios. Isto
nem sempre é feito pela positiva, porque também é corrente seleccionar certas
imagens para denegrir os adversários. Podemos considerar que a imagem se tornou
num sucedâneo inferior ("erzats") do 'ethos'. O verdadeiro 'ethos' é
uma comunicação entre pessoas reais, que ainda é mantido em parte na rádio,
embora o elemento de retorno já seja mais difícil de obter. A televisão já está
num plano à parte, aparecendo o orador mais como um símbolo de uma grande
máquina que trabalha para aquilo acontecer. O espectador também já não faz
parte de um auditório real, ele é um pequeno electrão cuja a função é ficar
orbitando à volta do núcleo do átomo. É também interessante notar que a rádio é
ainda uma espécie de último reduto dos conservadores em muitas partes do mundo,
enquanto a televisão é dominada quase a 100% por esquerdistas.
Mas ocorreu ainda outra transformação fundamental na retórica
moderna, desta vez ligado ao 'pathos'. O caminho já estava aplanado com a
redução dos indivíduos "à sua insignificância". Depois, com a
concentração dos meios de comunicação social, trabalhando em conjunto com a
industria do cinema e do espectáculo, tornou-se possível fabricar um novo
'pathos' com enorme velocidade. Assim, as pessoas passaram a incorporar novas
ideias e reacções quase instintivas a certas palavras simplesmente porque
aquilo vem imerso na linguagem e em incontáveis símbolos distribuídos na
cultura.
É neste contexto que devemos encarar o confronto entre Hillary
Clinton e Donald Trump. Ele tinha, desde o início, uma missão quase impossível.
As pessoas que dominam o novo 'ethos' (imagem) e o novo 'pathos' estão
totalmente e abertamente ao lado de Hillary. Contudo, não há empreendimento
humano que seja invencível e infalível. Assim, uma das primeiras coisas que
Trump fez foi mostrar desprezo pelo "politicamente correcto", o que era também
uma forma de dizer às pessoas que elas podiam recuperar alguma dignidade humana
e deixar de ser bichinhos insignificantes face às divindades da política.
Cheios de desprezo, os comentadores chamam a isto de "populismo", certamente
que temendo pela continuidade dos seus lugares bem pagos.
Sem descurar totalmente o elemento de imagem, Donald Trump tentou
recuperar ao longo da campanha os elementos clássicos da retórica, nomeadamente
o foco no ‘logos’, falando das dificuldades reais das pessoas, e o seu 'ethos' pessoal, ligado à sua actividade empresarial e não a uma máquina de propaganda.
O resultado foi espantoso. Considerado inicialmente apenas como uma notícia
humorística, Trump fez a sua escalada e chegou ao primeiro debate entre
candidatos à presidência com um empate nas sondagens.
Contudo, aqui chegados, coloca-se a questão de saber quais são os
limites para o procedimento "invulgar" de Donald Trump, que quase teve de
concorrer à margem do Partido Republicano. Uma coisa é ir conquistando
eleitorado enfrentando colegas de partido, mas outra coisa é enfrentar
directamente uma Hillary Clinton suportada por uma imensa máquina de propaganda,
ou melhor, de controlo mental.
É necessário admitir que a estratégia de Clinton para este
primeiro debate foi adequada para os seus fins, o que não é muito difícil de
perceber porquê à luz das notas que avancei aqui. Em primeiro lugar, Hillary não
apareceu cansada ou mesmo com ar tão alienado como aconteceu em várias
ocasiões. Ela assumiu a imagem de uma pessoa madura que debate com um
adolescente inconsciente, fazendo constantes sorrisos de condescendência e de
superioridade. Ao mesmo, tempo, ela consegue mentir com toda a naturalidade do
mundo, aquilo a que os comentadores chamam de "confiança", enquanto Trump não
tem esta "virtude" e por vezes perdia alguma fluidez no discurso, também porque
foi colocado várias vezes na defensiva por um moderador que não sabia lá muito
bem qual era a sua função.
Mas talvez o mais relevante passou-se ao nível do 'pathos'. Quando
em comícios anteriores Trump discursou para o seu público, parecia que alguns
dos chamados "valores americanos" estavam bem vivos: industrialização,
empreendorismo, liberdade (sobretudo materializada na maior desregulamentação),
lei e ordem. Víamos o público exaltar com estas coisas e parecia que a América
ainda estava viva. Contudo, no ambiente do debate com Hillary sentia-se que
algo estava diferente. Apesar de haver um certo compromisso para o público não
se manifestar, ele acabou por fazer isto várias vezes, mas não quando Trump
apelava aos valores supostamente caros aos americanos.
As intervenções de Hillary acabaram por demolir quase totalmente a
pretensão de os valores americanos estarem vivos. Aqui convém recordar o que eu
disse anteriormente com o controlo do 'pathos', que em termos um tanto
simplistas podemos dizer que está relacionado com o "politicamente correcto".
No fundo, a campanha de Hillary Clinton é uma extensão do politicamente
correcto, que não é apenas uma série de ideias que estão inculcadas na cabeça
das pessoas mas um conjunto de reacções quase epidérmicas perante certas
palavras e frases.
Então, se Trump fala em desregulamentação, Hillary diz que tal foi
a causa da crise financeira (lá se vai a liberdade); se Trump fala em baixar
impostos, Hillary fala em aumentá-los para os ricos (e lá vem o socialismo para
os não ricos); se Trump fala em lei e ordem, Hillary contrapõe com o racismo da
polícia e dos americanos em geral, defendendo também o controlo de armas.
Hillary defende Obama contra Trump, e este nota que ela já disse coisas
horríveis sobre Obama, e que essa hipocrisia não pega mais, mas talvez não seja
bem assim, porque a frieza dos psicopatas impressiona muita gente. Nota-se que
nestas questões o público estava maioritariamente com ela, o que significa que
já desistiu do "sonho Americano", se é que alguma vez isso foi mais do que uma
fantasia a não ser para uns poucos. Obviamente que Trump percebeu que a
argumentação de Hillary era extremamente desonesta e suja, mas pouco podia
fazer numa ambiente de debate retórico, em que aquilo que candidata democrata
dizia já se transformou numa espécie de senso comum.
Para já, nada está decidido. Obviamente que os principais jornais
e comentadores disseram que Hillary ganhou o debate. Só podiam afirmar o
contrário se tivesse ocorrido alguma hecatombe. Convenientemente, a CNN
apresenta uma expressiva maioria de 62% dando a vitória a Hillary Clinton, mas
o público alvo pode estar longe de representar o conjunto nacional americano.
Algumas sondagens em sites importantes dão indicadores opostos, mas também eles
não serão indicadores confiáveis das intenções de voto por também não serem
amostragens aleatórias. Como é normal, a grande maioria os votantes não vai
alterar o seu sentido voto devido a este debate, nem sequer por qualquer outra
coisa ocorrida até ao fim da campanha, desde que não seja demasiado grave.
Contudo, isso pouco importa, porque as eleições serão decididas por curta
margem e o que interessa é quem terá o maior ascendente.
O caminho para Hillary Clinton é simples. Ele irá resguardar-se de
fazer muitas intervenções públicas, não só para não correr o risco de adoecer
mas também para não aparecer mais vezes com ar drogado, o que os jornalistas
têm tentado esconder, mas o retiro também servirá para ela preparar com o seu
batalhão de assessores os 'sound bytes', as frases condescendentes, os sorrisos
idiotas, a firmeza fingida, os olhares falsamente serenos e todas as demais
artimanhas, que são inegavelmente eficazes face a um público cada vez mais
infantilizado. Ele poderá contar com a ajuda maciça e sempre crescente de todos
os jornais, artistas e "líderes mundiais", que se irão desmultiplicar em
declarações de apoio à candidata democrata, ao mesmo tempo que irão dramatizar
cada vez mais os riscos mortais de Trump subir à presidência. Assim, a sua
vitória surgirá com "naturalidade".
O caminho para Donald Trump será inegavelmente mais tormentoso.
Ele terá de decidir se vai adocicar mais a sua linguagem, para conquistar algum
eleitorado mais moderado (também conhecido por "boiolas"), correndo o risco de
nem conseguir isto e de ao mesmo tempo perder algum do ser eleitorado inicial
por parecer que já desistir das suas intenções iniciais. Claro que se Trump
voltar a um tom mais áspero também corre o risco de perder algum eleitorado,
que pode começar a achar que ele é de facto um risco. Seja como for, ele não
pode dar-se ao luxo de se retirar como Hillary pode fazer, porque não tem toda
uma máquina trabalhando para ele 24 horas por dia. Assim, vai ter que continuar
a fazer comício atrás de comício, correndo o risco de vir a ter alguma quebra
física entretanto.
Uma vitória de Trump dependerá de vários factores. Por um lado,
ele de tem continuar a fazer com que cada vez mais gente acredite no seu
desígnio de "tornar a América grande outra vez", e para isso vai ter que impor
o seu 'ethos' pessoal sobre a imagem fabricada de Hillary. Por outro lado, ele
tem que mostrar a forma absolutamente tendenciosa como são empoladas as
suspeitas de ele ser racista ou de ter fugido aos impostos, enquanto os
jornalistas não querem destacar coisas incomparavelmente mais graves em relação
a Clinton, que tem afirmações onde praticamente faz uma declaração de guerra
contra a Rússia, mas também já declarou guerra à religião, ao mesmo tempo que
recaem sobre ela suspeitas de crimes de alta traição, financiamento ao Daesh e
ligação a todo o tipo de pessoas obscuras. Aparentemente, tudo isto não vai
entrar nos próximos debates entre os candidatos (entrou a questão dos e-mails
apagados, porque não deu para esconder), e se Trump levantar as questões será
considerado lunático. Portanto, será necessário forçar que estes temas entrem
em debate, nomeadamente através da pressão através da Internet. Provavelmente,
isto não será suficiente mas ao menos servirá para apontar como todo
establishment está profundamente corrompido. A hegemonia esquerdista à volta do
mundo não é plena e há muita gente que está farta de ser permanente enganada
por um sistema que repete sempre as mesmas coisas e atormenta sempre com os
mesmos receios. Poderá Trump capitalizar este descontentamento?
Fonte: "Mídia Sem Máscara"