Todavia, o poeta
Osório Duque Estrada logo se contradiz e, numa espécie de ato falho, chama o
Brasil de "gigante pela própria natureza", como se confessasse que nele habita
uma humanidade anã que não merece ser cantada. A quase totalidade do Hino
Nacional é uma loa às belezas naturais do Brasil - um sestro deste país para
inglês ver. Machado de Assis dizia que essa "adoração da natureza" era "um modo
de pisar o homem e suas obras" e ironizava todos aqueles que viviam elogiando a
natureza brasileira: "Eu não fiz, nem mandei fazer o céu e as montanhas, as
matas e os rios. Já os achei prontos".
Como
escrevi há quase dois anos, em artigo sobre a educação brasileira datado de 19
de agosto de 2012, "se Machado de Assis encarnasse uma de suas criaturas, o
defunto-autor Brás Cubas, e se fizesse cronista póstumo deste Brasil da Copa e
das Olimpíadas, haveria de notar que as coisas pioraram ainda mais e que já não
é apenas a geografia do país que se conforma em ser cartão-postal - hoje, é a
própria alma da nação que se entrega feito natureza morta ao olhar
estrangeiro".
Através
do carnaval e do futebol, o brasileiro é convocado a encarnar em sua própria
alma a aparência que o mundo espera dele - um ser feito exclusivamente de
sentidos, em que o instinto é muito maior do que a razão. É como se não
fôssemos indivíduos, mas exóticas paisagens sociais. E a Copa do Mundo,
especialmente agora que está sendo realizada no país, reforça esse papel. Daí a
imagem recorrente do negrinho jogando bola nas ruas da periferia, que se tornou
o símbolo por excelência do Brasil, desde que o ex-presidente Luiz Inácio Lula
da Silva encarnou o espírito do general Emílio Médici e decidiu quebrar o país
para realizar a Copa do Mundo.
Chutando o futuro do País
A "Pátria de Chuteiras", cantada por deslumbrados sociólogos burgueses como
Roberto DaMatta, tornou-se a essência do Estado nacional, capaz de justificar
até os R$ 25 bilhões gastos com a Fifa, a Globo e as empreiteiras, dos quais
mais de R$ 20 bilhões saíram diretamente dos cofres públicos. É o futuro do
país literalmente chutado por uma elite moralmente pusilânime, que, incapaz de
abdicar de sua cara diversão (90% dos que vão aos jogos da Copa são das classes
A e B), reforçam nas massas o gosto pelo futebol, obrigando até as mulheres -
mais de 50% da nação - a suportarem esse esporte que nunca lhes disse nada, a
despeito de elas fingirem que diz, sobretudo para agradar maridos e namorados,
como costuma acontecer com a alma feminina em todos os setores da vida, desde a
mulher bem-sucedida que sacrifica a profissão para manter o casamento (coisa
que um homem raramente faria) até a operária que sacrifica a própria vida e a
liberdade para sustentar o companheiro criminoso na cadeia.
O
indefectível negrinho de periferia com a bola nos pés, presente em toda
publicidade, reflete o arraigado preconceito das elites letradas e endinheiradas,
que, esquecendo-se de Cruz e Sousa e Lima Barreto, tratam o negro como um ser
descerebrado, incapaz de aparecer com um livro nas mãos. Mas, de todas as
nefastas propagandas do gênero, a que mais me indignou foi a de um banco ou
cartão de crédito em que um negrinho aparecia beijando a bola com uma frase
asquerosa que traduzia o gesto indecoroso: "Este amor é para toda a vida".
Não sei
se a frase é exatamente essa e, felizmente, não lembro o nome do anunciante,
numa prova de que, ao menos comigo, essa propaganda asquerosa não surtiu
efeito. Mas a frase, em essência, transformava a relação do negrinho com a bola
num amor exclusivista e eterno, acima de pátria e família, e não sei por que -
aliás, sei muito bem, mas fica para outro artigo - me remete à aposentadoria
precoce do ministro Joaquim Barbosa, que, a seu modo, encarnou aquele pequeno
escravo da bola, ao literalmente chutar para escanteio a sua missão no Supremo,
ainda por cima alegando que ela lhe tirava a privacidade para frequentar bares.
A
imagem do negrinho beijando a bola e declarando a ela seu amor eterno chega a
ser moralmente criminosa. Ela reforça a ideia de que o futebol é o único meio
de ascensão dos negros pobres de periferia, quando, na realidade, é justamente
o contrário - o futebol é uma extensão virtual e festiva da visão que os
escravocratas tinham do negro, como se ele continuasse não tendo alma e, ao
invés de almejar ser um cérebro que pensa, se reduzisse a um corpo que joga. O
que, no caso de uma criança pobre, é quase uma condenação.
A ilusão do futebol e das artes
Assim
como as artes (teatro, música, dança, literatura etc.), o futebol é uma ilusão.
Dependente do talento, da criatividade, muitas vezes do acaso, o futebol é uma
atividade de risco para quem resolve transformá-lo numa profissão e
dificilmente capacita alguém a ganhar a vida e criar família, a não ser os
raros craques que se tornam profissionais de grandes times e, mesmo depois de
aposentados, podem continuar vivendo à custa dos milhões que ganharam nos
poucos anos de atividade futebolística.
Assim
como a maioria dos que se dedicam à literatura, ao teatro, às artes plásticas
raramente conseguirão viver dessas atividades, também a maioria dos jogadores
de futebol vegeta em clubes falidos, que atrasam salários durante meses,
levando o profissional a viver numa situação de crônica instabilidade. Por
isso, quando os filhos demonstram propensão para atividades que dependem da
criatividade, como as artes, os pais costumam ficar preocupados e lhes
aconselham que não abandonem os estudos e aprendam uma profissão.
Na
biografia dos grandes artistas, são frequentes os casos de resistência familiar
à vocação artística. O que não deixa de ser bom, pois ajuda a filtrar os
verdadeiros talentos. Geralmente só se dispõe a fazer grandes sacrifícios
pela arte, sujeitando-se até à fome, quem está convicto de seu próprio talento
e trabalha diuturnamente para aprimorá-lo. Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, mesmo
sendo filho de Januário, o maior sanfoneiro de "Taboca a Rancharia, de
Salgueiro a Bodocó", como diz a canção "Respeita Januário", teve de vencer a
resistência da mãe, praticamente fugindo de casa, para poder dedicar-se à
música.
Mas a dedicação integral à arte é sempre um risco, uma incerteza, uma
possibilidade de tudo dar errado. Na história da dupla Zezé di Camargo e Luciano, que caiu na estrada muito cedo, há a trágica história do irmão que
fazia dupla com Zezé e morreu num acidente. Até o divino Mozart pagou um alto
preço por se dedicar visceralmente à sua arte, morrendo precocemente aos 35
anos sem ter alcançado a independência e a estabilidade financeira com que
tanto sonhava.
Os pais
quase nunca aceitam que o filho se dedique apenas à arte - geralmente exigem
que ele nunca abandone os estudos, o que leva a maioria a transformar em
passatempo o talento, quando ele não é suficientemente forte para enfrentar as
intempéries. O mesmo ocorre - ou deveria ocorrer - com o futebol, que não pode
ser imposto às crianças como um ideal de vida, como fazem, hoje, as propagandas
governamentais e também das empresas privadas, sempre ciosas de agradar o
governo. O futebol é ainda mais incerto do que as artes. Ele chega a ser nocivo
para as crianças pobres, justamente as que mais precisam do estudo se quiserem
ser alguém na vida, uma vez que não dispõem nem da herança familiar nem das
relações sociais dos ricos.
É
óbvio, por exemplo, que poesia não enche barriga de ninguém. Mas um adolescente
pobre que se interessa por poesia não precisa largar a escola para se dedicar à
sua arte. Pelo contrário, ainda que o amor pela poesia possa indispô-lo com uma
ou outra disciplina mais árida, geralmente ele irá se destacar nas ciências
humanas e, mesmo que nunca venha a ser um Drummond, sempre poderá ganhar a vida
com o jornalismo, a publicidade, o magistério ou qualquer outra atividade em
que seu talento com as palavras possa ser bem empregado. O mesmo vale para o
teatro, a música (especialmente a erudita) ou as artes visuais, que também são
compatíveis com os estudos e não impedem o indivíduo de se formar no tempo
certo e exercer uma profissão capaz de sustentá-lo caso sua arte não dê em
nada.
Afastando o jovem da escola
Com o
futebol é diferente. Ao contrário da literatura ou da música erudita, por
exemplo, atividades intrinsecamente relacionadas com a leitura e que favorecem
os estudos, a paixão pelo futebol tende a afastar o jovem dos livros -
especialmente as crianças pobres. E isso em sua fase de formação, o que é mais
grave. Os filhos dos ricos e da classe média podem se dedicar ao futebol sem
nenhum prejuízo, matriculando-se numa escolinha desse esporte da mesma forma
que se dedicam à dança, à música, à natação, às artes marciais, tudo com hora
marcada, tutores pagos e supervisão dos pais, sem atrapalhar os estudos.
Já as
crianças faveladas que aparecem jogando bola nas propagandas de televisão,
quando se apaixonam pelo futebol, tornam-se potenciais gazeteiras de aula para
se enturmar com os amigos nos campinhos de pelada da periferia, correndo o
risco de se encontrar até com traficantes de droga, que também adoram futebol e
frequentam as praças esportivas. Não é à toa que, em todo presídio, o futebol é
a sagrada religião dos presos, irmanando em seu culto os mais violentos
criminosos.
Todos
os governos, das prefeituras à União, passando pelos Estados, gastam montanhas
de recursos públicos no futebol, a fundo perdido, enchendo o bolso de cartolas
e políticos corruptos, pois o próprio jogador, se não for craque, é o que menos
ganha. Um dos argumentos para esse gasto é o falso pretexto de que o esporte
educa e afasta os jovens das drogas.
Ora, o
futebol é uma atividade intrinsecamente associada ao álcool - o que as
cervejarias já perceberam há muito tempo, transformando os jogadores da Seleção
Brasileira nos principais propagandistas de cerveja ao mesmo tempo em que são
alçados à condição de heróis dos jovens. As torcidas organizadas, com
financiamento dos próprios clubes, são um exemplo da mistura explosiva entre
futebol, violência e drogas, espalhando o terror não apenas nos campos de
futebol, mas nas próprias cidades, sobretudo quando estão voltando dos
estádios, com adrenalina em alta.
Um
estudo publicado em 2009 pelas pesquisadoras Liana Abrão Romera (Unicamp) e
Heloisa Helena Baldy dos Reis (Universidade Metodista de Piracicaba) mostrou
alta prevalência de uso e abuso de álcool entre torcedores masculinos de
futebol, de 15 a 25 anos, muito mais do que entre a população em geral, com
36,9% dos pesquisados apresentando um consumo de bebida alcoólica acima do
nível considerado moderado. E o que é mais grave: 15,3% dos torcedores menores
de idade (de 15 a 17 anos) revelaram grau médio de problemas com álcool,
enquanto 6,8% já apresentavam um grau elevado de problemas com a bebida.
Por sua
vez, no livro "Violências nas Escolas", a mais abrangente pesquisa já realizada
no País sobre o assunto, as pesquisadoras Miriam Abramovay e Maria das Graças
Ruas, que coordenam o estudo, reconhecem que o futebol é um propulsor da
violência nas escolas, uma vez que muitas brigas sérias entre alunos, que
chegam a resultar em feridos e até mortos, têm sua origem nas partidas de
futebol.
Depressão entre jogadores
O
futebol costuma afastar os meninos pobres não só dos livros, mas também do
aprendizado profissional, justamente naquela fase da vida em que deveriam se
dedicar à própria formação. E, como muitos que se envolvem com o futebol nunca
se tornam jogadores bem-sucedidos, quando o jovem percebe que não poderá fazer
do esporte uma profissão, geralmente já é tarde para voltar atrás e recuperar o
tempo perdido na escola.
Um
estudo sobre o estresse psicológico dos jogadores de futebol, realizado em 2003
na Universidade Federal de Pernambuco, mostrou que 49% dos atletas pesquisados
não estavam estudando e 72% não tinham o ensino fundamental completo. Essa
realidade, felizmente, vem mudando, principalmente para jogadores oriundos de
famílias mais abastadas, que conseguem conciliar o futebol e os estudos,
sobretudo quando se profissionalizam e contam com o apoio de seus respectivos
clubes.
Mesmo
assim, é preciso considerar que o futebol oferece ao atleta uma carreira muito
curta, em que a invalidez profissional chega entre os 35 e 40 anos. Se o atleta
não conseguir ganhar muito dinheiro no seu curto período de atividade,
tornando-se um rico empreendedor após a aposentadoria, sem dúvida terá
dificuldades de sobrevivência nos muitos anos de vida que lhe restam após
deixar os estádios.
Segundo
pesquisa realizada neste ano pelo Sindicato Mundial de Jogadores de Futebol,
26% dos jogadores em atividade relataram que sofrem com ansiedade e depressão;
entre os que encerraram a carreira, esse índice salta para 39%. Isso faz com
que as drogas, especialmente o álcool, também sejam um grave problema entre
jogadores de futebol. De acordo com a pesquisa, 19% dos jogadores em atividade
sofrem com o alcoolismo, índice que sobe para 32% entre jogadores aposentados.
Também pudera: se parar de trabalhar aos 65 anos já não é fácil e leva muitos
aposentados à depressão, o que dizer de se sentir inválido aos 35 anos de
idade, vivendo de glórias passadas pelos próximos 35 anos de vida?
Esses
dados mostram que, por mais que o futebol seja uma paixão nacional (ou uma
paixão nacional do Brasil masculino, o que é mais correto), os jogadores jamais
deveriam ser vistos como exemplo de futuro para a juventude brasileira. O
futebol é um esporte e não pode ser transformado em religião, como acontece no
Brasil, a ponto de desarmar todos os espíritos críticos do país quando a
seleção entra em campo.
É
inacreditável, por exemplo, como a grande imprensa ousa afirmar que a Copa do
Mundo no Brasil está sendo um inegável sucesso. Ora, como ela pode ser um
sucesso se está custando, até agora, cinco vezes mais do que o previsto
inicialmente, chegando a um custo R$ 25 bilhões, repita-se, dos quais mais de
R$ 20 bilhões saíram diretamente dos cofres públicos, num país em que os
pacientes morrem nos corredores dos hospitais por falta de atendimento médico?
O
balanço da Copa é, sem dúvida, totalmente negativo. O país gastou o que não
podia; o investimento privado não veio; as obras estruturais não saíram das
planilhas; os voos ficaram aquém do esperado; o comércio vendeu menos do que no
Dia das Mães; obras foram feitas a toque de caixa, irresponsavelmente, chegando
a cair um viaduto em Belo Horizonte. Até as prostitutas ficaram decepcionadas
com o movimento da Copa.
Tudo isso, por sinal, era previsível desde que a Fifa,
para gáudio de Lula e a sanha dos governadores, anunciou o evento no Brasil.
Por isso, diante desse capítulo de negativas da Copa, que supera de longe o
capítulo das negativas das "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de
Assis, não resta dúvida que a Copa - do ponto de vista do planejamento estatal,
que é o que interessa, foi um completo fracasso. Resta saber quem vai gritar
isso na cara do governo, já que até a oposição se esqueceu do Brasil e torce
pela Seleção.
José Maria e Silva é jornalista e
sociólogo
Fonte: "Mídia Sem Máscara"
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