Por J. R. Guzzo
Um jogo de futebol, mesmo
um jogo de abertura de Copa do Mundo e com o time brasileiro em campo, é apenas
um jogo de futebol. Para a maioria da população brasileira, as aflições da luta
diária e silenciosa pela sobrevivência são bem maiores, na prática, do que
qualquer tristeza esportiva; ninguém tem tempo para ficar chorando quando é
preciso encarar, logo na madrugada seguinte, três horas de ônibus, metrô e trem
para ir até o trabalho. O ex-presidente Lula pode achar que é uma "babaquice"
pensar em transporte público de primeira classe para quem vive na terceira,
nesta bendita Copa que inventou de trazer para o Brasil sete anos atrás. Pode
achar o que quiser, mas não vai aliviar em um grama a selvageria imposta à
população para que ela exerça seu direito constitucional de ir do ponto A ao
ponto B - e muitos outros prometidos em troca dos 30 bilhões de reais que
custará a Copa mais cara da história, num país onde a classe média começa nos
290 reais de renda por mês. Do mesmo modo, as alegrias da vitória são apenas
momentos que brilham, depois de leve oscilam, e se desfazem num prazo médio de
48 horas.
A vitória do Brasil sobre a
Croácia por 3 a 1, em sua estreia na mais grandiosa e emocionante disputa
esportiva do planeta, foi um desses momentos que valem enquanto duram. Não
garante nada, é claro, numa competição de alpinismo em que cada passo rumo ao
topo é mais difícil que o passo anterior; garante mais, em todo caso, que uma
derrota. Mas para a vida do Brasil e dos brasileiros é apenas um intervalo que
não muda nada – justamente numa hora em que é urgente mudar tanto. É urgente
porque o Brasil se encontra, neste mês de junho de 2014, em estado de
desgoverno. A questão, a esta altura, não é dizer que o governo da presidente
Dilma Rousseff tem tudo para ficar entre os piores que o país jamais teve. Isso
muita gente, e cada vez mais gente, já está cansada de saber - segundo a última
pesquisa do Pew Institute, organização americana de imparcialidade e
competência indiscutíveis, mais de 70% dos brasileiros estão hoje descontentes
com o governo; eram 55% em 2013. Esse nível de frustração, segundo o instituto, "não tem paralelo em anos recentes". Que mais seria preciso dizer? O problema
real, seja qual for o resultado final da Copa, é que o governo federal deixou
de existir como autoridade responsável; traiu os eleitores, suprimindo o seu
direito de ser governados sob o império da lei, e passou a agir no mundo da
treva. Não se sabe se os donos do poder estão sonhando em arrastar o Brasil
para uma aventura totalitária. Mas certamente dão a impressão de quererem algo
muito parecido com isso.
Lula, Dilma, o PT e as
forças postas a seu serviço não aceitam, por tudo o que dizem e sobretudo pelo
que fazem, a ideia de perder a eleição presidencial de outubro. Por esse
objetivo, mandaram a governança do país para o diabo e empregam 100% de suas
energias, sua capacidade de cometer atos ilegais e seu livre acesso ao dinheiro
público para impedir que a massa dos insatisfeitos possa eleger para a
Presidência qualquer candidato que não se chame Dilma Rousseff. Uma greve ilegal
e abusiva dos agentes do metrô de São Paulo, armada na zona escura dos apoios
clandestinos ao governo, fez algo inédito: montou piquetes para impedir que os
passageiros chegassem aos trens - dentro da estratégia de impor a desordem nos
serviços públicos paulistas e, com isso, prejudicar candidatos da oposição. Um
decreto da presidente criou, e quer tornar efetivos, uns "conselhos populares"
com poderes e competências acima dos do Congresso Nacional e do Judiciário. Num
país com 55 000 assassinatos por ano, o governo nega aos cidadãos o direito
fundamental à vida, ao tornar-se cúmplice dos criminosos com sua tolerância
máxima ao crime - em quase doze anos de governo, Lula e Dilma não disseram uma
única palavra contra esse massacre, e muito menos tomaram a mínima providência
a respeito. Ambos tiveram, ou compraram, o apoio de 70% do Congresso; o que
fizeram de útil com essa imensa maioria? Zero. Ela foi usada apenas para
impedir investigações sobre seus crimes, como na espetacular sequência de
escândalos na Petrobras, por exemplo, e encher o PT e seus aliados com empregos
públicos, verbas e oportunidades de negócio. O uso sistemático da mentira tornou-se
a forma mais praticada de ação política. A presidente da República não fala ao
público na abertura da Copa - fica num discurso pré-fabricado de elogio a seu
governo.
Um Brasil como esse perde
se perder e perde se ganhar.
Fonte: Edição
impressa da revista "Veja"
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