Por Ruth de Aquino
Deixa que digam, que pensem, que falem. Você comemorará
cada gol brasileiro na Copa, se emocionará a cada vitória, sofrerá se nossos
craques pisarem na bola, vai gritar e até chorar. Isso não significa que, fora
do estádio ou do sofá, você precise parar de criticar o péssimo planejamento
deste Mundial, a inadmissível quebra de promessas para a população, a aparente
roubalheira nas obras superfaturadas e o inferno dos serviços públicos. O
Brasil tem abusado de nossa cordialidade, nossa paciência e nosso otimismo, ano
após ano.
Na
semana passada, foi comovente o esforço do governo e das autoridades para
derreter o coração canarinho e evitar protestos durante a Copa. A reação
nacionalista a "acusações" de estrangeiros foi uma tentativa patética de
transformar críticos em traidores da pátria. A presidente Dilma Rousseff
afirmou, com orgulho cara-pálida, que os aeroportos do Brasil não são "padrão
Fifa" mas "padrão Brasil". Lindo. A gente sabe que padrão é esse quando precisa
ir ao banheiro, pegar uma escada rolante ou aguardar a chegada das malas.
O
secretário de Turismo do Rio de Janeiro e homem de confiança do prefeito
Eduardo Paes, Antônio Pedro Figueira de Mello, disse que "o Rio não é a Suíça",
ao se referir às longas filas que os turistas terão de enfrentar na cidade.
Antônio Pedro também reconheceu que o Rio não se preparou para receber
deficientes porque, na Copa do Mundo, "não há tanto esse público". Depois pediu
desculpas pela bola fora.
Talvez
por o Rio não ser a Suíça, o Exército tenha sido convocado para dar segurança
aos turistas nas praias, nas ruas, no Maracanã. As duas polícias, PM e Civil,
não dariam conta. Sabe como é, esse é nosso padrão. No padrão Brasil,
professores manifestantes cercam o ônibus da Seleção, em protesto contra baixos
salários. Mas não torcem contra a Seleção. Torcem por um Brasil à altura de
nossa Seleção, por uma Educação à altura de nosso futebol. Deu para entender ou
precisa desenhar?
Tudo
se encaixa no padrão Brasil. Na capital, Brasília, índio flecha PM, arcos
enfrentam a cavalaria. Nos arredores de estádios da Copa, em diversas cidades,
há cenários lastimáveis. Lixo entulha a favela que fica a 300 metros do
Maracanã, como mostrou o jornal O Globo. Comunidades junto
aos novíssimos estádios convivem com água de poço, esgoto a céu aberto, zona de
prostituição baixa, luz de vela, invasões de sem-teto. Digamos que na África
também é assim. Mas a gente espera mais do Brasil.
Esperávamos
que o governo de Dilma e Lula cumprisse uma promessa para estimular o
ecoturismo no Brasil. Foi anunciado há quatro anos que o governo federal
investiria R$ 668 milhões na infraestrutura de 23 parques federais. Eram os "Parques da Copa", uma parceria dos ministérios do Turismo e do Meio Ambiente.
Do total de R$ 668 milhões, quanto foi investido? Apenas R$ 1 milhão. Mas,
sabe, esse é o padrão Brasil. É para se orgulhar?
Não
é só o governo federal. Segundo o jornal Valor Econômico, Dilma
colocou à disposição de governadores e prefeitos R$ 12,4 bilhões para obras de
mobilidade urbana, ônibus e metrôs. Só R$ 479 milhões foram sacados por Estados
e municípios. É muita incompetência. Devemos nos conformar? Ou podemos almejar
um outro padrão? Agora, o governo pede ao povo que se comporte. Os gringos não
podem falar mal do país do sol, da alegria, da cachaça, do Carnaval e do
futebol.
Nessa
reta final antes da Copa, apareceu até uma "miss" padrão Brasil. É a filha do
ex-todo-poderoso da CBF Ricardo Teixeira e neta de João Havelange,
ex-comandante da Fifa. Joana Teixeira Havelange tem 37 anos, é do Comitê
Organizador Local da Copa e publicou um texto em apoio ao Mundial, "até porque
o que tinha que ser gasto, roubado, já foi". Joana tem linhagem. Seu pai
renunciou em meio a denúncias de corrupção depois de 23 anos à frente da CBF.
Joana é formada em administração e ganha cerca de R$ 80 mil por mês, ou R$ 100
mil, incluindo extras e bônus, segundo dizem. Joana é ou não a cara do
padrão Brasil?
Nem
os mais céticos imaginavam que, a poucos dias da Copa, o país ainda estivesse
nessa correria para maquiar os equipamentos essenciais. O cenário mais
pessimista previa um legado maior para a população. Infelizmente, a ficha ainda
não caiu para os governantes. As autoridades não fizeram mea-culpa de nada. Só
se preocupam com o vexame e com "o que os outros vão dizer" se os brasileiros
lavarem a roupa suja diante dos convidados. É muita cara de pau.
Vamos,
sim, torcer para que o Brasil seja hexacampeão. Vamos torcer também para que,
fora do gramado, o Brasil honre suas cores e sua gente. E mude de padrão.
Fonte: Revista "Época"
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