Por Demétrio Magnoli
Santiago
Ilídio Andrade era nossos olhos e nossos ouvidos. Sem o trabalho dele, e de
tantos colegas seus, cinegrafistas, jornalistas, funcionários de apoio, não
teríamos notícias - ou só teríamos versões das partes interessadas.
O
assassino de Santiago e seus cúmplices diretos, que compraram, transportaram e
acenderam o rojão de vara, provavelmente não miravam o cinegrafista, mas os
policiais. Contudo, sabemos pela palavra deles que devotam um mesmo ódio a
jornalistas e policiais. Faz sentido: eles odeiam a democracia - e,
deploravelmente, não estão sozinhos.
Santiago
não é uma vítima "acidental". Santiago é um cadáver circunstancial, mas
anunciado desde as jornadas de junho. O que faziam, na periferia e na fímbria
das manifestações, os vândalos, os depredadores, os mascarados? Eles abriam
picadas no rumo de seu El Dorado: o sangue de alguém, qualquer um, policial,
transeunte, jornalista, cinegrafista ou manifestante.
"Abaixo
a ditadura 2.0", leio numa página de Facebook consagrada à propagação do
vandalismo. Os covardes, rosto escondido, precisavam provar a tese que
justificaria sua própria existência: a democracia é uma farsa, a máscara da
ditadura.
Santiago
teve seu crânio destroçado por um foguete ideológico. Os autores da tese não
acenderam o rojão de vara, não o transportaram e não o compraram. Esses
intelectuais de araque, que são as fontes de inspiração do assassinato, talvez
nunca tenham se misturado a uma manifestação de rua.
Eles
circulam em esferas sanitizadas: universidades, ongs, movimentos sociais,
partidos políticos. Mas, enquanto a investigação policial desvenda os nomes de
quem pode ser indiciado, cabe a nós decifrar as ideias que os mobilizam. O
perigo está nelas: os pavios imateriais de foguetes ainda não lançados.
Santiago
morreu porque, atrás dos assassinos, renasce uma velha teoria sobre a política
e a democracia. As páginas eletrônicas dos black blocs definem a nossa
democracia como um "Estado policial". Um professor da FGV-SP, Rafael Alcadipani
da Silveira, atribuiu a "estratégia da violência" aos "jovens das periferias", "vítimas da violência cotidiana por parte do Estado".
A
expressão "contraviolência" foi difundida por intelectuais radicais nas décadas
de 1970 e 1980 para celebrar o método de "ação direta" empregado por
organizações extremistas que, cindidas, dariam origem a agrupamentos
terroristas como o Baader-Meinhof, na Alemanha, e as Brigadas Vermelhas, na
Itália. As fórmulas incendiárias daqueles intelectuais ressurgem entre nós,
como frutos podres de uma crise política e moral.
Santiago
está morto porque a fronteira entre a violência "simbólica" e a violência "real" só existe no pensamento depravado dos cultores da violência "simbólica".
Bruno Torturra, o chefão do Mídia Ninja, um "instituto" informal financiado com
recursos públicos, definiu o Black Bloc como "uma estética" e fez a defesa da
violência nas manifestações, "desde que dirigida aos bancos".
O
filósofo-ativista Pablo Ortellado, um herdeiro ideológico dos arautos europeus
da "contraviolência", declarou sua paixão pela "ação simbólica" de depredação
de uma agência bancária, um simulacro da "ruína do capitalismo" situado "na
interface da política com a arte".
Mas
por que eles nutrem uma obsessão exclusivista pelos bancos? O linchamento de um
policial não poderia ser descrito como símbolo da "ruína da repressão de
Estado"? O assassinato de um jornalista não anunciaria o almejado "controle
social da mídia"?
Santiago
morreu de excesso de violência "simbólica", mas não apenas disso. "Não vamos
parar, o poder é nosso!", escreveu o Black Bloc RJ na hora da notícia do
falecimento do cinegrafista. A causa mortis tem ramificações complexas, que
deitam raízes na condescendência nacional com a violência "justa".
A
imprensa apressou-se, com razão e cumprindo seu dever, a denunciar as
truculências policiais contra manifestantes pacíficos nos primeiros protestos
de junho - mas custou a usar a palavra "vândalos" para qualificar os idiotas
mascarados que se movem em busca de sangue.
Um
certo número de sindicalistas, alguns deles ligados ao Psol, firmaram um pacto
de aliança com os Black Blocs na greve dos professores do Rio de Janeiro. Numa
nota asquerosa, mas típica, o Sindicato dos Jornalistas do Rio omitiu a origem
do projétil que vitimou Santiago. Fora algumas honrosas exceções, não se ouviu
uma palavra de condenação ao vandalismo sair da boca dos célebres "intelectuais
de esquerda".
Santiago
é uma vítima, entre tantas outras não ligadas a manifestações, da inclinação do
governo a produzir rimas entre "pobreza" e "violência". Três meses atrás, o
ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, anunciou
que buscava "interlocutores" entre os black blocs para "compreender este
fenômeno social" e entender "até que ponto a cultura da violência vivida na
periferia já emigrou para esse tipo de ação".
O
poderoso ministro, representação onipresente de Lula no governo Dilma, fala uma
linguagem paralela à dos intelectuais engajados na justificação dos black
blocs. "Cultura da violência"? "Fenômeno social"? Não, de jeito nenhum: o rojão
que matou Santiago é um projétil político dirigido contra o alvo da democracia.
Santiago
morreu porque damos ouvidos a Gilberto Carvalho, não a Reynaldo Simões Rossi, o
coronel da PM espancado por uma chusma de covardes durante uma manifestação em
São Paulo. Rossi disse que seu dever era respeitar os manifestantes e isolar a "minoria de criminosos e vândalos" que "se apropriam de manifestações
legítimas".
Há
algo de profundamente errado com um país incapaz de enxergar a face do mal,
quando ela se esconde atrás da máscara de uma ideologia. A memória de Santiago
exige que, finalmente, separemos os manifestantes dos vândalos - tanto nas
palavras quanto nas ações.
Demétrio Magnoli é sociólogo.
Fonte: "O Globo"
Nenhum comentário:
Postar um comentário