Por José Roberto Guzzo, na "Veja", edição desta semana
O que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso poderia ter feito de tão ruim assim em sua vida, pública ou particular, para ser tão malquisto nessa escura nebulosa que é o mundo político brasileiro? O fato é conhecido já faz bom tempo, mas tende a ficar mais evidente em épocas de campanha eleitoral. Seus adversários, no PT e no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tentam demonstrar diariamente que Fernando Henrique continua sendo, oito anos após deixar a Presidência, o inimigo número 1 do povo brasileiro.
Quase todos os que deveriam estar do seu lado fazem tudo o que podem para esconder que têm, ou tiveram, alguma coisa em comum com ele, qualquer que seja. Por que isso? A hipótese mais provável é talvez a mais simples: o que não se perdoa ao ex-presidente é o seu sucesso. O Brasil, por força de teimosa tradição, em geral não convive bem com o êxito; na célebre defi nição do compositor Tom Jobim, sucesso, por aqui, é “insulto pessoal”, tanto para inimigos como para amigos de ocasião. Em vez de admiração, provoca ressentimento. Em vez de afeto, atrai inimizades. Produz inveja, despeito, rancor, mesquinharia - enfim, põe em modo operacional toda uma coleção de traços que estão entre os menos atraentes da personalidade humana.
Falar mal de Fernando Henrique Cardoso tornou-se, ao longo dos últimos anos, um esporte nacional, sobretudo entre o que se chama de “elite brasileira”. É um dos passatempos preferidos da maioria dos nossos mais lustrosos capitães de indústria (ou de comércio, ou de finanças), fornecedores do estado ou empreiteiros de obras públicas - algo que transparece, aliás, nas doações de quase 45 milhões de reais feitas entre janeiro e julho para a candidatura oficial, mais do que o dobro do que se deu à oposição. A popularidade do ex-presidente é igualmente baixa entre os colossos do nosso mundo político, a começar pelos que têm as quilometragens mais longas, e os prontuários mais grossos, nesse tipo de ocupação.
Não gostam dele, de modo geral, professores universitários, cientistas políticos, analistas da imprensa, economistas, grandes vultos da cultura nacional - e possivelmente, como diria a socialite-celebridade Eleonora Rosset, o resto da intelligentsia brasileira, “de Marilena Chaui a Hebe Camargo”. O desapreço por Fernando Henrique, enfim, acabou se tornando um fenômeno interpartidário. Começou com o PT e o “fora FHC”, por questões de estratégia e marquetagem política - era preciso “desconstruí-lo”, pois era ele o inimigo a abater. Com o tempo, os seus próprios aliados passaram a acreditar no que dizia o PT - e, por questões de estratégia e marquetagem política, decidiram afastar-se dele, convencidos de que “FHC custa votos”. Resulta que estamos na terceira campanha eleitoral seguida em que a prioridade do PSDB é fazer de conta que não tem nada a ver com Fernando Henrique. Ele foi o único presidente que o partido elegeu até hoje - já no primeiro turno, por sinal, das duas eleições que disputou. Mas desde janeiro de 2003 não serve mais; tornou-se, politicamente, uma espécie de portador de doença contagiosa.
Os pecados dos quais Fernando Henrique é acusado pelos que sempre foram seus inimigos políticos e pelos que deixaram de ser amigos são numerosos demais para caber numa mera página de revista. Há alguma coisa errada no Brasil? Deu problema? Está com defeito? A culpa é dele, e ainda não deu tempo para consertar. Entende-se melhor o espírito da coisa quando se verifica que a acusação talvez mais repetida descreve o ex-presidente como “arrogante” ou “vaidoso” - uma escolha realmente infeliz de palavras, pois comparado ao seu sucessor nesse quesito, justo nesse, o homem chega a parecer um monge trapista.
Mais que tudo, porém, foi vendida e comprada a lenda segundo a qual ele deixou o país “em ruínas” e passou uma “herança maldita” para o presidente atual. Mas o que aconteceu no mundo dos fatos foi exatamente o contrário. A verdade é que pouco do que existe de positivo no Brasil de hoje não está ligado, de alguma forma, aos dois períodos de Fernando Henrique na Presidência. Não é preciso complicar as coisas. Foi seu governo que finalmente encarou e venceu a inflação no Brasil - ou teria sido algum outro?
Em cima desse alicerce, no qual não se mexeu em nada, foi construída a casa que está de pé até hoje, a começar pelos aumentos reais de renda que tiraram milhões de brasileiros da pobreza e que agora são descritos como a maior conquista da história nacional.
Para isso não há perdão.
* José Roberto Guzzo é colunista da revista "Veja", membro do Conselho Editorial da Abril
Quase todos os que deveriam estar do seu lado fazem tudo o que podem para esconder que têm, ou tiveram, alguma coisa em comum com ele, qualquer que seja. Por que isso? A hipótese mais provável é talvez a mais simples: o que não se perdoa ao ex-presidente é o seu sucesso. O Brasil, por força de teimosa tradição, em geral não convive bem com o êxito; na célebre defi nição do compositor Tom Jobim, sucesso, por aqui, é “insulto pessoal”, tanto para inimigos como para amigos de ocasião. Em vez de admiração, provoca ressentimento. Em vez de afeto, atrai inimizades. Produz inveja, despeito, rancor, mesquinharia - enfim, põe em modo operacional toda uma coleção de traços que estão entre os menos atraentes da personalidade humana.
Falar mal de Fernando Henrique Cardoso tornou-se, ao longo dos últimos anos, um esporte nacional, sobretudo entre o que se chama de “elite brasileira”. É um dos passatempos preferidos da maioria dos nossos mais lustrosos capitães de indústria (ou de comércio, ou de finanças), fornecedores do estado ou empreiteiros de obras públicas - algo que transparece, aliás, nas doações de quase 45 milhões de reais feitas entre janeiro e julho para a candidatura oficial, mais do que o dobro do que se deu à oposição. A popularidade do ex-presidente é igualmente baixa entre os colossos do nosso mundo político, a começar pelos que têm as quilometragens mais longas, e os prontuários mais grossos, nesse tipo de ocupação.
Não gostam dele, de modo geral, professores universitários, cientistas políticos, analistas da imprensa, economistas, grandes vultos da cultura nacional - e possivelmente, como diria a socialite-celebridade Eleonora Rosset, o resto da intelligentsia brasileira, “de Marilena Chaui a Hebe Camargo”. O desapreço por Fernando Henrique, enfim, acabou se tornando um fenômeno interpartidário. Começou com o PT e o “fora FHC”, por questões de estratégia e marquetagem política - era preciso “desconstruí-lo”, pois era ele o inimigo a abater. Com o tempo, os seus próprios aliados passaram a acreditar no que dizia o PT - e, por questões de estratégia e marquetagem política, decidiram afastar-se dele, convencidos de que “FHC custa votos”. Resulta que estamos na terceira campanha eleitoral seguida em que a prioridade do PSDB é fazer de conta que não tem nada a ver com Fernando Henrique. Ele foi o único presidente que o partido elegeu até hoje - já no primeiro turno, por sinal, das duas eleições que disputou. Mas desde janeiro de 2003 não serve mais; tornou-se, politicamente, uma espécie de portador de doença contagiosa.
Os pecados dos quais Fernando Henrique é acusado pelos que sempre foram seus inimigos políticos e pelos que deixaram de ser amigos são numerosos demais para caber numa mera página de revista. Há alguma coisa errada no Brasil? Deu problema? Está com defeito? A culpa é dele, e ainda não deu tempo para consertar. Entende-se melhor o espírito da coisa quando se verifica que a acusação talvez mais repetida descreve o ex-presidente como “arrogante” ou “vaidoso” - uma escolha realmente infeliz de palavras, pois comparado ao seu sucessor nesse quesito, justo nesse, o homem chega a parecer um monge trapista.
Mais que tudo, porém, foi vendida e comprada a lenda segundo a qual ele deixou o país “em ruínas” e passou uma “herança maldita” para o presidente atual. Mas o que aconteceu no mundo dos fatos foi exatamente o contrário. A verdade é que pouco do que existe de positivo no Brasil de hoje não está ligado, de alguma forma, aos dois períodos de Fernando Henrique na Presidência. Não é preciso complicar as coisas. Foi seu governo que finalmente encarou e venceu a inflação no Brasil - ou teria sido algum outro?
Em cima desse alicerce, no qual não se mexeu em nada, foi construída a casa que está de pé até hoje, a começar pelos aumentos reais de renda que tiraram milhões de brasileiros da pobreza e que agora são descritos como a maior conquista da história nacional.
Para isso não há perdão.
* José Roberto Guzzo é colunista da revista "Veja", membro do Conselho Editorial da Abril
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